quarta-feira, 9 de março de 2011

Pacto com o Diabo - Henrique Donancio

Há homens que tem a fé como norte de suas vidas. Guiam-se pelas palavras interpretadas de livros sagrados, doam-se inteiramente aquilo que nunca viram, mas pressentem sentir. O pescador Américo, o Sr. Américo, era um desses homens. Dedicava seus domingos a família, e claro, a religião. Fazia todos que morava debaixo do seu teto seguir os mesmos hábitos, rezavam, pediam ao bom Deus proteção, agradecia a saúde, a comida no prato, o dinheiro no fim do mês para pagar as contas, e tudo que mais dele parecia provir. Quando a pesca lhe rendia algum a mais, doava uma boa fatia do excedente para a caridade. Américo era um homem generoso.
Quando sua filha mais nova Maria Lúcia de cinco anos adoeceu, Américo parecia padecer junto a ela. A menina, a mais nova de sete filhos, já era a que tinha lhe tinha mais apreço. Levava-a na boleia do barco para a pesca todas as manhas, pois a garota tinha mais necessidade de estar junto ao pai, do que dormir o sono da jovialidade, essencial para seu crescimento. A tosse incessante que lhe acometia além de a cada dia expelir um pouco mais da sua vivacidade punha fora também a vontade de viver de seu velho. O médico que raramente visitava a vila dos pescadores já fora categórico: “Não tem oração que a salve desta”.
No lado norte da cidade corria o boato que Zeferina, uma velha corcunda, enrugada, queimada de sol, praticava milagres. Habitava uma casa que caía aos pedaços, que dava de frente para um lado lúgubre do mar. Se a procurasse a noite e desconhecesse aquela região, dificilmente encontraria seu barraco, que era iluminado a velas. Américo sempre soube de sua fama, e por isso a evitava, diziam que os poderes eram devidos a parte com o diabo.
Alguns meses se passaram e cada vez mais a pequena Maria chegava próxima ao fim. Toda a reza e fé depositadas na melhora da garota não surtiam efeito algum. Foi quando Sebastiana pediu que o marido deixasse ver a velha do lado norte, talvez sua fé fosse grande demais e que nada pudesse contra, argumentava que o pacto com o cão pudesse ser só conversa daquele povo.
Depois da última visita do médico Américo atendeu aos apelos da mulher, e foi ter com Zeferina. Foi à noite, em lua cheia, conhecia bem aquela parte da cidade, fora criado ali, e a velha do barraco de madeira, bem, era sua tia Zeferina.
- Então enfim procurastes sua velha tia meu rapaz.
- Deixe de conversa sua moribunda, sabes bem por que vim.
A velha riu, num sorriso de escárnio, levantou os olhos, fixou-os bem no rosto do sobrinho e respondeu-lhe. – Certamente seu bastardo, certamente.
- Então ande logo que não estou para conversas.
- Não se afoite meu jovem, não se afoite, quero que me preste um favor antes.
- Seja lá o que for, ande, desembuche.
- Quero que tenhas o mesmo fim que sua velha tia aqui. Deslaçando o pano estampado que a cobria, pôs as vistas do sobrinho um par de seios murchos e enrugados, caídos, pendendo como um saco escrotal.
- Velha desgraçada! Vamos faça-o e rápido, não quero dar tempo ao arrependimento.
Zeferina, irmã de Consolação quase fora casada uma vez com o pai de Américo. Porém véspera do casamento se viu abandonada pelo noivo que a trocou pela irmã mais nova. Fugiram para o oeste algum tempo, mas logo tornaram quando estava grávida do primeiro filho. Zeferina se entregou a beatitude, desde que fizera um pacto com seu novo amante, o diabo, que lhe prometeu tirar a vida da irmã em troca de se guardar do gozo dos prazeres até o fim da sua existência no plano espiritual que se encontrava, e assim o fez. Consolação faleceu uma semana depois, pois escorregou bateu a cabeça numa pedra pontiaguda, quando lavava roupas no riacho que cortava a vila.
Maria Lúcia, sofregamente resistiu por duas semanas, até que por fim se viu curada de vez. O médico mostrou-se impressionado com sua recuperação, coisa jamais vista em toda sua carreira. Pouco tempo depois lá estava ela na boleia do barco de seu pai que agora se mostrava apático a radiação de seu sorriso.
Américo viu mulher e filhos morrer de velhice e outros infortúnios, só lhe restando Maria Lúcia, que agora se perdia nas esquinas das ruas que davam para o cais. Diziam ser a melhor mulher da vida daquela região, já velha e moribunda como sua tia, mas ainda competente no que fazia.
Pouco tempo depois, também morreu, vítima do vírus HIV, só restando o velho Américo com alguns netos e bisnetos, fruto de bons e maus casamentos, e também da profissão de Maria Lúcia. Em Outubro de 1953, o velho faleceu de infarto.
No julgamento final, foi posto junto a uma mesa frente a Deus, alguns anjos, Maria e outros santos. O Diabo assistia de longe numa espécie de camarote celeste, a mais um julgamento de seus filhos bastardos.
Deus então disse. – És acusado, Américo, de se juntar, de dar parte ao Diabo, para gozar de benefícios próprios, de contrariar a lei, a minha lei, de que todos os seres tem um inicio e fim determinado, que cada um tem sua hora de partir, e o senhor, que tão crente se mostrou aos meus legados desrespeitou, desrespeitou a mim!
- O senhor é injusto!
- Injusto! Dei-lhe da maior saúde, do amor de uma mulher fiel, filhos trabalhadores e honestos, e por querer tirar-lhe uma prostituta, uma mulher da vida, me chamas de injusto!
- Sim injusto, não cumpres com tua palavra.
- Cale-se seu ser medíocre! Minhas palavras deixaram-lhe até registrada, e dizes ainda que não a cumpro?! Seguistes ela e recompensei-lhe, então desandastes e terá sua pena por isso, arderá no calor, junto com quem lhe é justo.
- Pois seja assim, mas justo é ele, que dá riqueza aos seus devotos, veja, e olhe, quantos ricos são do seu feitio? Só pobres que ardem no sol para trabalhar que lhe são fieis, e como é que lhes recompensa por isso?! Dando lhes pobrezas, pragas, doenças que não tem cura! E promete-lhes um dia ser recompensados por isso? Já vivi no inferno uma vez meu senhor, duas não será demais.

Um comentário:

  1. Que ousado!
    Seu Américo não tem medo do perigo.
    haha, eu teria medo até de escrever esse conto.
    show Henrique!

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