Há homens que tem a fé como norte de suas vidas. Guiam-se pelas palavras interpretadas de livros sagrados, doam-se inteiramente aquilo que nunca viram, mas pressentem sentir. O pescador Américo, o Sr. Américo, era um desses homens. Dedicava seus domingos a família, e claro, a religião. Fazia todos que morava debaixo do seu teto seguir os mesmos hábitos, rezavam, pediam ao bom Deus proteção, agradecia a saúde, a comida no prato, o dinheiro no fim do mês para pagar as contas, e tudo que mais dele parecia provir. Quando a pesca lhe rendia algum a mais, doava uma boa fatia do excedente para a caridade. Américo era um homem generoso.
Quando sua filha mais nova Maria Lúcia de cinco anos adoeceu, Américo parecia padecer junto a ela. A menina, a mais nova de sete filhos, já era a que tinha lhe tinha mais apreço. Levava-a na boleia do barco para a pesca todas as manhas, pois a garota tinha mais necessidade de estar junto ao pai, do que dormir o sono da jovialidade, essencial para seu crescimento. A tosse incessante que lhe acometia além de a cada dia expelir um pouco mais da sua vivacidade punha fora também a vontade de viver de seu velho. O médico que raramente visitava a vila dos pescadores já fora categórico: “Não tem oração que a salve desta”.
No lado norte da cidade corria o boato que Zeferina, uma velha corcunda, enrugada, queimada de sol, praticava milagres. Habitava uma casa que caía aos pedaços, que dava de frente para um lado lúgubre do mar. Se a procurasse a noite e desconhecesse aquela região, dificilmente encontraria seu barraco, que era iluminado a velas. Américo sempre soube de sua fama, e por isso a evitava, diziam que os poderes eram devidos a parte com o diabo.
Alguns meses se passaram e cada vez mais a pequena Maria chegava próxima ao fim. Toda a reza e fé depositadas na melhora da garota não surtiam efeito algum. Foi quando Sebastiana pediu que o marido deixasse ver a velha do lado norte, talvez sua fé fosse grande demais e que nada pudesse contra, argumentava que o pacto com o cão pudesse ser só conversa daquele povo.
Depois da última visita do médico Américo atendeu aos apelos da mulher, e foi ter com Zeferina. Foi à noite, em lua cheia, conhecia bem aquela parte da cidade, fora criado ali, e a velha do barraco de madeira, bem, era sua tia Zeferina.
- Então enfim procurastes sua velha tia meu rapaz.
- Deixe de conversa sua moribunda, sabes bem por que vim.
A velha riu, num sorriso de escárnio, levantou os olhos, fixou-os bem no rosto do sobrinho e respondeu-lhe. – Certamente seu bastardo, certamente.
- Então ande logo que não estou para conversas.
- Não se afoite meu jovem, não se afoite, quero que me preste um favor antes.
- Seja lá o que for, ande, desembuche.
- Quero que tenhas o mesmo fim que sua velha tia aqui. Deslaçando o pano estampado que a cobria, pôs as vistas do sobrinho um par de seios murchos e enrugados, caídos, pendendo como um saco escrotal.
- Velha desgraçada! Vamos faça-o e rápido, não quero dar tempo ao arrependimento.
Zeferina, irmã de Consolação quase fora casada uma vez com o pai de Américo. Porém véspera do casamento se viu abandonada pelo noivo que a trocou pela irmã mais nova. Fugiram para o oeste algum tempo, mas logo tornaram quando estava grávida do primeiro filho. Zeferina se entregou a beatitude, desde que fizera um pacto com seu novo amante, o diabo, que lhe prometeu tirar a vida da irmã em troca de se guardar do gozo dos prazeres até o fim da sua existência no plano espiritual que se encontrava, e assim o fez. Consolação faleceu uma semana depois, pois escorregou bateu a cabeça numa pedra pontiaguda, quando lavava roupas no riacho que cortava a vila.
Maria Lúcia, sofregamente resistiu por duas semanas, até que por fim se viu curada de vez. O médico mostrou-se impressionado com sua recuperação, coisa jamais vista em toda sua carreira. Pouco tempo depois lá estava ela na boleia do barco de seu pai que agora se mostrava apático a radiação de seu sorriso.
Américo viu mulher e filhos morrer de velhice e outros infortúnios, só lhe restando Maria Lúcia, que agora se perdia nas esquinas das ruas que davam para o cais. Diziam ser a melhor mulher da vida daquela região, já velha e moribunda como sua tia, mas ainda competente no que fazia.
Pouco tempo depois, também morreu, vítima do vírus HIV, só restando o velho Américo com alguns netos e bisnetos, fruto de bons e maus casamentos, e também da profissão de Maria Lúcia. Em Outubro de 1953, o velho faleceu de infarto.
No julgamento final, foi posto junto a uma mesa frente a Deus, alguns anjos, Maria e outros santos. O Diabo assistia de longe numa espécie de camarote celeste, a mais um julgamento de seus filhos bastardos.
Deus então disse. – És acusado, Américo, de se juntar, de dar parte ao Diabo, para gozar de benefícios próprios, de contrariar a lei, a minha lei, de que todos os seres tem um inicio e fim determinado, que cada um tem sua hora de partir, e o senhor, que tão crente se mostrou aos meus legados desrespeitou, desrespeitou a mim!
- O senhor é injusto!
- Injusto! Dei-lhe da maior saúde, do amor de uma mulher fiel, filhos trabalhadores e honestos, e por querer tirar-lhe uma prostituta, uma mulher da vida, me chamas de injusto!
- Sim injusto, não cumpres com tua palavra.
- Cale-se seu ser medíocre! Minhas palavras deixaram-lhe até registrada, e dizes ainda que não a cumpro?! Seguistes ela e recompensei-lhe, então desandastes e terá sua pena por isso, arderá no calor, junto com quem lhe é justo.
- Pois seja assim, mas justo é ele, que dá riqueza aos seus devotos, veja, e olhe, quantos ricos são do seu feitio? Só pobres que ardem no sol para trabalhar que lhe são fieis, e como é que lhes recompensa por isso?! Dando lhes pobrezas, pragas, doenças que não tem cura! E promete-lhes um dia ser recompensados por isso? Já vivi no inferno uma vez meu senhor, duas não será demais.
Que ousado!
ResponderExcluirSeu Américo não tem medo do perigo.
haha, eu teria medo até de escrever esse conto.
show Henrique!