sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Pena - Caio Machado


O autor se pergunta o tempo todo se vale a pena passar seus últimos dias com animais mais estúpidos do que burros, e mais sujos do que porcos.

O seu sôfrego caminhar determinava a velocidade que seus dias se arrastavam. Pés descalços e extremamente calejados. Um mirrado galo garnisé e quinze aves distribuídas e amontoadas em um pequeno cercado com folhas secas forradas, no meio de suas próprias fezes e dejetos.

Noventa e três anos. Viúva há uma década e exilada de tudo: família e possivelmente civilização. A solidão e as lembranças da fazenda remetia ela a momentos felizes com seu falecido marido. Uma maneira de se manter fiel à solidão e infiel ao seu estimado esposo.

Milho pelas manhãs. Ração sempre à tarde. Água trocada de dois em dois dias.

As galinhas mordiscavam suas pernas abarrotadas de varizes como uma maneira de expressarem suas fomes. Um desabafo faminto e por parte da senhora tido como forma de afeto.

O autor não sabe nada sobre raças de galinhas e, portanto, utilizará recursos darwinistas (formatos de bicos e cores de penugens) para uma breve descrição.

Penas marrons, brancas e pretas. Bicos de um tom amarelo fosco, curtos e achatados. Cristas bastante avermelhadas de formatos que variam entre ondas perfeitas a meros chicletes mastigados. Muito ruído por parte dos pios. Aves gordas e repletas de penas engorduradas e empoeiradas.

A vida daquela senhora estava acabando e a única coisa que ela ainda fazia era alimentar suas galinhas, recolher ovos, lavar seus vestidos e cozinhar mingau de fubá. Seus dias correndo pelo avesso e nenhum Homo sapiens ao seu redor.

(...)

Ela morreu no meio da porta do galinheiro, que ainda estava entreaberta e caiu de costas com sua face voltada para o céu. Felizmente ela tinha acabado de servir os animais com ração. Nenhuma ave percebeu. A porteira ficou bloqueada com seu corpo sem vida.

Inicialmente as galináceas ciscavam o chão em busca de minhocas e também destruíam todas as plantas a disposição no cercado. Depois de certo período não havia mais nada para ser ingerido pelas paupérrimas aves.

As aves agora passavam por cima do corpo da mulher e invadiam o casebre onde a pobre alma residia de maneira parca. Barras de sabão foram seus primeiros alimentos. Em seguida, os sacos de arroz empilhados ao lado do fogão à lenha.

Fezes estampavam agora todo o chão do casebre. A fome estampava também a face das aves agora desesperadas.

O corpo da senhora começava agora a decompor paulatinamente e o odor desvanecia rápido devido aos constantes temporais e ventanias. A reserva de arroz e sabonete já estava chegando ao seu fim.

Os ovos que anteriormente eram recolhidos agora chocavam e os primeiros filhotes faleciam, por falta de recursos alimentares, e serviam de alimento para as aves veteranas. Um excêntrico canibalismo, mas de extrema urgência para a sobrevivência delas.

Animais que se apegam a você pelo simples fatos de alimentá-los. Animais que traem você pelo simples fato de não alimentá-los.

O cheiro fétido daquele corpo não poderia incomodar mais do que a fome das galinhas. A primeira bicada cortou seu braço direito. Já não havia mais sangue naquele corpo, mas aquela abundante carne roxa serviria por ora.

A mutilação ocular assistida no filme de Buñuel com repulsa em sua juventude se assemelhava ao estrago feito naquela bicada desferida pelo galo garnisé. Acelerava-se assim o processo de deterioração de seu corpo. Os olhos eram saboreados de melhor grado para as aves e não tardaria que as galinhas encontrassem algum vestígio cerebral.

Quanto tempo aquilo as alimentaria? Se aquela cena era mais horripilante do que a própria fome em graus extremos?

O tempo transformaria todas elas em carrascos de si próprias.