sábado, 21 de fevereiro de 2015

O amante da mulher-loucura - Fran Valdivino

A loucura é mulher apaixonada, é ignorante e não sabe coisa alguma.
Assenta-se a porta de sua casa, nas alturas da cidade, toma uma cadeira,
para dizer aos que passam e seguem direito o seu caminho:
Quem é simples, volte-se para aqui. E aos faltos de senso diz:
as águas roubadas são doces, e o pão comido às ocultas é agradável.
Eles, porém, não sabem que ali estão os mortos,
que os seus ouvidos estão nas profundezas do inferno.
-Provérbios de Salomão (cap. 9, vers. 13 á 18)

Quando abriu os olhos, foi banhado pela luz do sol e por uma sensação nova e estonteante. Daniel, sempre tão acostumado à escuridão do seu cômodo, demorou a entender o que era todo aquele brilho, até que lembrou: não estava em casa; estava na prisão.
Sua mente vagueou, viajou e, sabe-se lá porque, lembrou-se, ao que lhe parecia, de um russo: Alexandre Soljenítsin, preso como ele, “Detenção! Será necessário dizer que isso representa uma brusca reviravolta em toda a sua vida? Que é como a queda de um corisco sobre sua cabeça? Que é uma comoção espiritual insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente leva à loucura?” Grande porcaria! De que lhe serviria isto, agora? Vagueou...
Amabelle, agora ele sabia, era este o nome da menina de pele clara e cabelos negros, que há alguns dias atrás lhe lançara aquele olhar apavorado. Não que nunca tivesse presenciado aquele olhar, no entanto, dessa vez havia sido diferente. “Ela só tinha 13 anos! Meus Deus! 13 anos! Ela só tinha 13 anos!” Já havia matado outros da mesma idade, mas não como aquela e não daquela forma. Ela era pequena e pura, não espancava garotos menores e nem desfilava com armas pelo bairro como aqueles pequenos delinquentes.  
Daniel nasceu com o crânio ferido, fruto dos chutes que o pai acertara na barriga de sua mãe no meio de uma briga. As cenas de tapas, chutes e socos eram frequentes naquela casa, já que as habilidades do pai de família se resumiam a esvaziar canecos e espancar mulheres. Pouco tempo depois, matou a esposa com 21 golpes de facão. É claro que, na primeira oportunidade, Daniel se vingara. Sua vingança havia sido cruel, pois além das 22 facadas, arrancara o coração do homem maltrapilho e depois de mastigar uma parte, cuspira-o, satisfeito. Sentado ali na beirada do beliche, sorriu prazerosamente ao recordar do gosto do sangue em sua língua.
Levantou-se e olhou o companheiro de cela que dormia na cama de cima. Passou os olhos rapidamente pelos outros dois do outro beliche e foi até o banheiro da cela. Sentiu a água gelada correr pelo rosto, pela barba sem fazer. De repente, sentiu também o suor brotar do couro cabeludo, sabendo que esta era a forma como sua amada o chamava. Sentia a sua falta, pois somente ela era capaz de compreendê-lo. “Preciso de você! Preciso te ver Sofia, preciso dos seus conselhos, preciso!”
Aos 15 anos, Daniel conheceu o grande amor de sua vida, no mesmo dia em que o garoto com olhos negros, cor de piche, oferecera-lhe o pó branco. Às vezes, a luz mais brilhante vem dos lugares mais escuros. Chamava-o de pó mágico, pois quando estava sob seu efeito, enxergava Sofia. Nestes momentos, encontrava paz, alívio para sua dor, pois somente ela o compreendia e o aconselhava. Ela havia lhe dito que as pessoas como seu pai precisavam ser destruídas, que não mereciam viver.
Daniel ou “Matador”, como era conhecido, acumulava em sua “capivara” mais de 100 homicídios, mas só assassinava outros criminosos. Nas noites que voltava para seu cômodo com o cheiro do sangue ainda entranhado na roupa, sentia-se bem consigo mesmo. “Eu sei que o que eu faço não está certo, posso parar quando eu quiser, mas eu amo fazer.” Tomava um banho demorado para tirar de si qualquer cheiro de morte e depois queimava as roupas no balde de metal que escondia em baixo da cama. Nestes momentos usava o pó mágico e sua amada lhe sussurrava no ouvido “é um favor para a sociedade”.
Agarrou-se na beirada da pia, tentando manter-se em pé, mas o peso do corpo logo cedeu ao chão. Ainda conseguiu ouvir alguém dizer “tá na nóia da falta” e a parte lúcida de sua mente sabia que esse alguém tinha razão. Há três dias que estava encarcerado e não usava o pó. Sem pó, nada de Sofia!
Ali, no chão frio da cela, esperou a crise passar. A abstinência era dolorosa e a fissura, aquela vontade insuportável, era a pior parte. “Sofia!” Sentiu que se não a visse morreria em poucos minutos. O coração batia descontrolado dentro de seu peito e o suor escorria como um rio pelo pescoço, encharcando seu uniforme de prisioneiro. Não durou mais que sete minutos, mas Daniel não sabia quantas mais dessas crises poderia suportar.
No meio de seu desespero, lembrou-se de que Sofia já havia lhe falado de algum russo que também conhecera a casa dos mortos: Dostoisvsky, ou alguma merda assim. Mas, droga, outro russo?! Sinceramente, detestava essas viagens e memórias cheias de frescuras.
Começou a pensar no dia em que matara Amabelle. Havia esgotado toda a sua reserva de pó e no desespero havia invadido uma casa, na esperança de achar alguma coisa de valor que pudesse vender e repor seu estoque. Não esperava encontrar ninguém na casa, por isso se surpreendeu com o grito. Era uma senhora magra e de cabelos brancos que, ao vê-lo, gritou e logo desmaiou no chão da sala. Sem perder tempo, pois poderia haver outras pessoas em casa, começou a puxar os fios do aparelho DVD que estava na estante. Foi nesse momento que percebeu uma garota encarando-o com olhos apavorados. Ela era tão parecida com Sofia…Precisava tocá-la! Tentara ser gentil, mas ela gritava e era preciso fazê-la calar. Apertou-lhe a garganta. “Não era para matá-la, era só para que se aquietasse”, dizia a si mesmo, ciente de que mais uma crise estava começando.

Sentiu que o carregavam e o colocavam na cama de novo. Ouviu gritos, parece que chamavam um médico. Mas de que lhe serviria um médico? Precisava mesmo era de Sofia, só mais uma vez…O frio abraçou-lhe suavemente, junto com o suor que escorria abundante por seus poros e quando a escuridão começou a lhe envolver, fechou os olhos e entregou-se à queda no vazio.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Luas Negras - Paulo Cesar Corrêa

Noite 1
    Era uma daquelas noites em que não se podia enxergar nada; uma dessas bem escuras, caro leitor, em que a lua é nova e as estrelas insistem em não brilhar.
    A maioria das pessoas de Frutal tem medo de andar pelas ruas em noites assim. Mas eu não. Sinto uma necessidade de caminhar, pois são nesses momentos em que revelo quem realmente sou: um devaneador.
    Saio do meu cubículo quando todos voltam de seus trabalhos com a expectativa de encontrarem seus entes em casa, tomar uma ducha ou fazer qualquer besteira que lhes venha à cabeça. Ponho meu chapéu e sigo o caminho que faço todos os dias. Já moro nesta cidade há nove anos e não mantive relações de amizade com ninguém, mas começo a me preocupar com isso. Minha vida parece medíocre e os únicos diálogos que tive nesta última década foram com casas.
Sim, casas. Alguns anos atrás, uma delas me chamou a atenção na esquina da Avenida Cel. Delfino Nunes com uma ruela que agora não me recordo o nome. Estava toda pichada e me reclamava de como as pessoas eram más e sem juízo. Mês passado, quando passei por esse mesmo lugar, ela estava pintada de azul, com o portão branco.
    — Hoje estou feliz! — Exclamou.
    Não lembro o que respondi, mas deve ter sido algo como “Que bom!” e segui meu caminho.
   Ontem, outra casa, próxima à Biblioteca Municipal, disse-me que hoje começariam a reformá-la. Seriam dois quartos e uma suíte. Fariam também um jardim de inverno e, antes de despedir-me, convidou-me para tomar uma xícara de café quando a reforma estivesse finda.  
   Parece bobo, eu sei, talvez até estranho. Porém, para mim, isto é belo; e prefiro minha bela estranheza que a estranha beleza ditada por este mundo. Mas, não sou completamente antissocial. Todas as noites, durante minhas caminhadas, encontro sempre um senhor de braços dados à sua senhora. Cumprimento-os com um sorriso amigável, porque acho que é disso que as pessoas mais precisam na nossa época. Pelas minhas contas, daqui a cinco minutos passarei por eles. Existe certo conforto na previsibilidade e na rotina. Talvez todos sejamos um pouco Aspergers. 
   Ouço o vento chacoalhar as folhas das árvores e caminho assobiando, com as mãos nos bolsos. Devo parecer um vulto assustador para as pessoas que olham de dentro de suas casas para fora. Como disse, é noite de lua nova e tudo está escuro, pois a iluminação pública da cidade é precária.
    O casal de senhores passa por mim, como o previsto, e sorrio-lhes. Até este momento, tudo ocorria perfeitamente normal. Mas acho que as estrelas (que nesta noite pareciam estar adormecidas) tinham preparado algo novo para mim. O que você pensa quando falo “algo novo”, amigo leitor? Para mim, essa novidade está relacionada a moças, diante das quais sempre fui tímido e muitas vezes fiz papel de bobo.
   Ela estava sentada num dos bancos da Praça Presidente Vargas ― que eu costumava chamar de praça do capeta ―, enquanto eu seguia meu rumo de volta para casa. Como de costume, passei por ela sem prestar muita atenção, até ouvi-la falando comigo.
    — São muito tristes as noites em que a lua não é cheia, não acha, senhor?
    Fui pego de surpresa. Nunca nenhuma moça havia puxado assunto comigo e admito que, dentro de mim, meu coração sorriu.
    — Talvez. — Me virei em sua direção. — Eu gosto das noites tranquilas. Ou seja, todas, menos as de sexta e sábado.
    A minha nova companheira deu uma risadinha e disse: — Tenho pena do senhor. Amanhã é sexta-feira. — E afastou-se para o canto do banco, convidando-me para sentar.
   — Eu gosto da lua cheia. — Ela continuou. — Me faz pensar que posso tocar nela. — A moça olhou para mim como se me conhecesse há muito tempo. — Mas em noites como essa tudo fica triste. As pessoas têm medo de sair de casa por causa da violência ou, talvez, porque tenham pavor do escuro. O fato é que gosto de ver as pessoas caminhando, sei lá... jovens casais namorando, pais levando filhos para passear. Coisas do gênero. E o senhor? — Ela fez uma pausa — Suponho que seja diferente dos outros.
   — Depende do que você define como “diferente”. Eu gosto de ficar sozinho para pensar. Ou costumava gostar. Moro aqui há muito tempo e não tenho amigos, a não ser algumas casas.  
    — Eu tenho reparado o senhor há alguns dias. Sempre taciturno e sério. — E desatou a rir, como se tivesse contado uma piada.
   Fiquei surpreso com o que ela me disse. “Eu tenho reparado o senhor...”. Nunca a tinha visto antes. E as qualidades que ela me deu? Taciturno e sério! Faz com que eu me sinta velho, embora tenha somente 27 anos.
    — A propósito, pode me chamar de Atalaia.
    — Atalaia?
    — Sim. Porque eu observo as pessoas.
    — Bom, é Atalaia e só isso? Sem sobrenome? — Perguntei.
    — Sim. E isso basta por enquanto. Mal o conheço.
  — Me desculpe se fui intrometido. É que não sou acostumado a conversar com mulheres. — Revisei o que falei e achei melhor corrigir. — Na verdade, não costumo conversar muito.
    — Não se preocupe. Está indo muito bem. — Ela sorriu para mim. — Exceto por um detalhe.
    — Qual?
    — Ainda não me disse o seu nome.
    — Ah! — Suspirei, aliviado. — Pode me chamar de Devaneador.
  — Interessante. Você me faz lembrar o personagem principal do livro que estou lendo. Noites Brancas, de Fiódor Dostoievski. Conhece?
   — Conheço. Mas não acho que pareço com ele. Não precisei te salvar de um estuprador nem algo do tipo. E também não sou o herói da minha própria história.
   Atalaia suspirou. — Você me salvou do tédio de ficar sozinha aqui. — Ela deu uma risadinha. — E sobre ser herói, não se preocupe. Ainda vai chegar a ocasião. É isso o que dizem, não é? “A ocasião faz o herói”.
   — Eu nunca ouvi essa expressão. Acho que você a inventou.
   — Talvez, amigo Devaneador. — Ela fez algo estranho com a boca, tipo um muxoxo. — Preciso ir. Meu avô deve estar preocupado.
   Meu semblante deve ter desvanecido. Estava gostando da companhia de Atalaia. Nesses poucos minutos de diálogo, pude perceber o quanto perdi escondendo-me em meu cubículo.  
   — Gostaria de conversar mais. — Eu disse, surpreendendo-me de tal forma que tive medo do que ela pensaria de mim e de qual seria sua resposta.
   Mesmo com o breu dominando tudo ao redor, consegui ver seus dentes quando ela sorriu. Eram belos e tão alvos como a neve que cai do céu.
   — Eu também gostaria. Amanhã — ela respondeu —, nesse banco, à mesma hora. — E estendeu-me a mão para que a cumprimentasse. Não me lembro da última vez que havia tocado na mão de uma mulher. Era macia e quente.
   — Até mais, caro Devaneador. — E ela se virou antes que eu pudesse dizer “até”.
   Não me lembro do caminho de volta para casa. Nem de ter aberto e trancado a porta. A única coisa que me recordo foi de ter sonhado com belos dentes e mãos macias e quentes.
(...)
Noite 2
    ― Acho que sei qual é a minha missão na terra! ― Atalaia exclamou, logo ao me ver na segunda noite. Dessa vez eu estava com uma lanterna e consegui reparar nos seus detalhes. Olhos escuros, cabelos avermelhados. A boca fina estava curvada num sorriso e vi suas mãos ― que constatei como macias e quentes na noite anterior ―, pequenas e delicadas.
    ― Qual é? ― Indaguei.
    ― Ajudar você. Tirar você da solidão antes que fique velho e mofe conversando com casas.
    Eu tentei ficar bravo, mas não consegui. Tentei me sentir magoado, mas percebi que aquilo não me magoou. Ao invés disso, eu sorri.
    ― Como planeja fazer isso?
    ― Obviamente, fazendo algo mais inteligente do que fizemos ontem à noite.
    ― “Mais inteligente” como, senhorita Atalaia? Para mim, conversa à toa é algo mais inteligente e despretensioso que existe. E aproveito muito bem.
    Ela riu e admitiu que de fato aquela conversa havia sido proveitosa e ainda acrescentou:
    ― Preciso falar que pensei muito no senhor durante o dia.
    ― E?
   ― E... nada. É isso que me preocupa. O senhor Devaneador é um desconhecido, embora eu o observe. Eu proponho que recomecemos.
    ― Como?
    Ela revirou os olhos e imagino que, em seus pensamentos, chamou-me de besta.
    ― Olá, meu nome é Atalaia. Qual é o seu?
    ― Devaneador ― respondi, entrando no joguinho dela.
    ― Belo nome. Posso chama-lo de Dev?
    Pensei um pouco naquilo e, por fim, decidi deixar.
    ― Pois bem, Dev, conte-me a sua história.
    ― Quem disse que eu possuo história? Eu não tenho história.
   ― Desculpe-me, caro Dev, mas se o senhor não tem história, como viveu até hoje? Ou o senhor nasceu ontem na forma de um adulto?
    Ela me divertiu com esse comentário e decidi falar. Você deve saber, caro leitor, que sou natural de uma cidade desconhecida chamada Onirismo. É um lugar belo, ainda rural, com montanhas no horizonte. Eu acordava cedo todos os dias e caminhava com meu pai até um pequeno riacho com águas transparentes. Víamos pequenas tilápias. Nossa diversão era tentar pescá-las com a mão. Contei isso a ela.
     ― Parece um lugar bom. E seu pai também.
     ― Sim. Passei uma boa parte da minha vida dessa forma. Nessa rotina. Vim para Frutal depois da morte do meu pai. Úlcera. Minha mãe mora aqui com o quinquagésimo namorado. Não suportava viver naquele lugar. Hoje moro sozinho.
    ― Onde o senhor mora?
    Decidi fazer mistério. ― Ainda não te conheço bem para te dar meu endereço.
   Ela sorriu e olhou para o céu. Era a segunda noite de lua nova e, daquela vez, as estrelas haviam aparecido. Pareciam lantejoulas penduradas num longo vestido preto.
    ― Agora é sua vez ― disse, tomando coragem. ― Quem é você?
    Ela demorou a responder. Por um instante, parecia-se como eu: uma devaneadora. De repente, ela apontou para a região austral do céu.
   ― Está vendo aquela constelação? A Constelação Fênix? Sim? Vê? Está vendo a estrela mais brilhante? Ela se chama Ankaa. É de lá que eu vim.
    Eu realmente quis rir. Mas tive medo de ferir os sentimentos dela, pois havia dito tão seriamente e seu semblante possuía algo como uma nostalgia verdadeira.
    ― Então você é como o Pequeno Príncipe? Veio de um astro?
   Atalaia deu uma cotovelada nas minhas costelas e gargalhou profundamente e disse que eu era muito fácil de ser enganado e que minha ingenuidade tornava-me um fofo.
   Ela se levantou e foi caminhando. Fiquei confuso. ― Ei! É só isso? Você não vai me falar a verdade?
    Ela se virou e gritou: Amanhã! Neste mesmo horário e lugar.
   Segui a silhueta de seu corpo com os olhos e senti uma pontada de dor quando ela despareceu. Eu tive medo. Mas ainda não sabia de/do quê.
(...)
Noite 3

    Atalaia quis fazer algo diferente de conversar. Disse-me que gostava de filmes e perguntou-me se eu tinha um favorito. Respondi que não assistia à televisão.
   ― Você é um chato, Dev. Vamos fazer o seguinte: esta noite atuaremos partes dos meus filmes favoritos. Vamos pichar como em Toda Forma de Amor e ficar deitados na rua como em O Diário de uma Paixão.
   ― Isso parece perigoso. ― Respondi, mas ela nem deu atenção. ― Pichar é ruim, Atalaia. É depredação.  ― Eu acrescentei, em vão. Sabia que ela faria e me convenceria a fazer.
   Ela pegou sprays e começou a pichar o asfalto ― consegui convencê-la a não pichar casas. Eu a observava de longe, ainda nervoso. Ela agitava o spray vez ou outra e voltava à sua obra-prima.     Quando terminou, Atalaia me chamou para contemplar.

“24 de agosto de 1954: Vargas encontra o diabo”

    ― O que é isso?
    ― Pichação nerd. ― Ela respirou e me entregou o spray. ― Votre tour, mon ami.
    Caminhamos até à rua paralela a que estávamos. Respirei fundo, agitei o tubinho em minhas mãos e comecei:

“09 de agosto de 1943: Brasil vai à II Guerra Mundial”

    ― Você é realmente um cara sem criatividade, seu colão!
   Depois, fomos ao cruzamento entre as duas avenidas mais movimentadas da cidade. Eram quase onze horas da noite.
    Passamos a noite ali, deitados no cruzamento, olhando as estrelas.
(...)
Noites 4, 5 e 6

    Era agradável conversar com ela. Atalaia havia se tornado a melhor coisa na minha vida desde quando vim de Onirismo para essa chata cidade. Eu ainda era um devaneador, ou como ela me chamava, Dev. Mas minhas “devaneações” ― por assim dizer ―, tinham um novo foco: Atalaia.
    Na quarta noite ela levou algo para comermos. Ela mesma havia criado a receita: uma mistura de bacon com uvas passas e pães asmos. Ficou saboroso.
   Nas duas noites seguintes, falamos sobre livros e artes. Ela era uma descobridora como Américo Vespúcio; uma bandeirante como Anhanguera. Conseguia desbravar os recônditos da minha alma como ninguém antes.
   Talvez porque nunca houvesse me aberto com alguém e, quando ela se despediu de mim na sexta noite, seus lábios roçando minha bochecha barbada, soube do que tive medo: de estar apaixonado.
(...)
Noite 7
            
    ― Atalaia?
    ― Sim?
    ― Você não me contou sobre tua história, afinal.
   Ela estava estranhamente calada. Era a última noite de lua nova e eu esperava que ela fosse estar feliz. Mas não. Ela sorriu fracamente
    ― Eu não sou real.
    Eu não entendi o que Atalaia quis dizer. Como assim não era real? Quem ela era?
    ― Você não vai dizer que é natural de Ankaa, vai? Porque se for, eu te darei uma cotovelada.
Atalaia não riu. Nem mesmo sorriu.
    ― Sou uma criação da sua cabeça. Sou a resposta dos anseios da sua alma. Há uma semana você estava cansado de ser solitário e de falar somente com casas...
    ― ...
    ― ...
   ― Mas, se você não existe, como eu te vejo? Como falamos sobre tantas coisas? Como pichei, sendo que não gosto disso?
    ― Sou seu id, Dev.
    ― Como?
    ― Meu Deus, Dev! Para que tantos livros de Freud se você não os lê? Sou seu id. A parte de você que é selvagem e hiperativa.
    A melhor parte de mim era irreal ― ou surreal, tanto faz. 27 anos e tendo visões senis!
    Devo ser louco, amigo leitor. Penso nisso agora, 1 mês depois do sumiço de Atalaia. Mas eu ainda a perguntei o porquê de estar me contando aquilo e como ela partiria.
   ― Mas e agora? Uma serpente vai te morder e você vai voltar para o seu mundo? Como no Pequeno Príncipe?
    ― Você realmente gosta desse livro, caro amigo. Mas se você acha que será assim, então será. ― Ela pausou para respirar. ― Eu apareci porque você precisava e agora me vou, não porque não precisa mais de mim, mas porque é necessário que você se relacione com alguém real. Amores platônicos são bons porque ficam nas ideias e você tem medo de trazê-los para a vida real, pois acha que serão um desastre. Mas eu te digo, Dev, o real pode ser melhor.
    Quando disse isso, “o real pode ser melhor”, Atalaia sumiu. Não virou uma estrela. Nem foi para um asteroide ou coisa do gênero. Ela voltou para dentro de mim.
    A última noite de uma lua negra se findava. Eu estava pronto para quando a lua cheia chegasse.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Almas perdidas - Francinele Valdivino


"A infância é medida por sons, cheiros e sinais.
Antes que a sombria hora da razão cresça."
- John Betjeman

Sentia naquele momento a vida se esvaindo por todos os seus poros, enquanto aquela mão pesada impedia que sua respiração fluísse livremente fazendo o mundo não ter mais sentido e menos ainda perspectivas futuras.
Em um devaneio lhe voltou a mente a imagem da mãe que a algumas horas atrás havia lhe pedido para ir à casa da avó deixar os comprimidos e em seguida lhe repassara os milhares de conselhos que toda mãe parece saber decorados.
“Evite passar pela rua “tal”, tome cuidado com os carros, não converse com pessoas estranhas...”.
Amabelle, uma garotinha de treze anos, de pele clara e cabelos negros como qualquer outra que se vê vagando pelas ruas da grande São Paulo, semanalmente passava na farmácia do quarteirão onde morava, comprava remédios e levava a casa de sua avó. Hoje ela havia contrariado a mãe, tomando um atalho pela rua proibida e como sempre acontecia todas as vezes que por ali passava suas narinas foram invadidas pelo odor dos narcóticos que exalava da fumaça produzida pelo grupo acocorado na calçada. O cheiro lhe causara a familiar sensação de enjoo fazendo-a acelerar o passo para tentar faze-la desaparecer.
Ela lembrava-se de ter usado sua cópia da chave para abrir a porta e de estar á vista do estranho homem que sem perceber sua presença enrolava apressadamente os fios do aparelho DVD da avó. Lembrou-se de ver o corpo inconsciente de uma anciã jogado ao chão, mas o que lembrou mais nitidamente foi do cheiro. Era o mesmo da rua proibida, e com ele a mesma sensação de antes, só que desta vez mais forte e assustadora que a anterior, que a arrebatou numa mistura de medo e pavor.
Não havia tido tempo de reagir, pois de repente estava lutando contra uma mão poderosa que a prendia sufocando seu choro. Mas pior que a falta de ar havia sido a dor que estraçalhara seu corpo, ao ponto de agora já não sentir mais nada, apenas a sua própria mente que rodopiava em coisas vagas e desconexas. A voz de sua professora de literatura citando Lorde Byron...

“Entre dois mundos paira a vida como uma estrela.
Entre noite e manhã, em cima da linha do horizonte.
Quão pouco sabemos o que somos!
Quanto menos o que podemos ser!”

Era bem assim que se sentia neste momento, como uma estrela perdendo todo o seu brilho para o universo sem fim, sem saber o que é que significava tudo aquilo ou mesmo o que aconteceria nos próximos segundos.
Quando finalmente o peso moveu-se de cima de seu corpo frágil, facilitando a respiração, sentiu um pouco de esperança, mas foi apenas por um breve momento, pois a poderosa mão agora pressionava sua garganta. O teto ficou turvo e depois disso mais nada, só a escuridão e o silêncio.