sábado, 21 de fevereiro de 2015

O amante da mulher-loucura - Fran Valdivino

A loucura é mulher apaixonada, é ignorante e não sabe coisa alguma.
Assenta-se a porta de sua casa, nas alturas da cidade, toma uma cadeira,
para dizer aos que passam e seguem direito o seu caminho:
Quem é simples, volte-se para aqui. E aos faltos de senso diz:
as águas roubadas são doces, e o pão comido às ocultas é agradável.
Eles, porém, não sabem que ali estão os mortos,
que os seus ouvidos estão nas profundezas do inferno.
-Provérbios de Salomão (cap. 9, vers. 13 á 18)

Quando abriu os olhos, foi banhado pela luz do sol e por uma sensação nova e estonteante. Daniel, sempre tão acostumado à escuridão do seu cômodo, demorou a entender o que era todo aquele brilho, até que lembrou: não estava em casa; estava na prisão.
Sua mente vagueou, viajou e, sabe-se lá porque, lembrou-se, ao que lhe parecia, de um russo: Alexandre Soljenítsin, preso como ele, “Detenção! Será necessário dizer que isso representa uma brusca reviravolta em toda a sua vida? Que é como a queda de um corisco sobre sua cabeça? Que é uma comoção espiritual insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente leva à loucura?” Grande porcaria! De que lhe serviria isto, agora? Vagueou...
Amabelle, agora ele sabia, era este o nome da menina de pele clara e cabelos negros, que há alguns dias atrás lhe lançara aquele olhar apavorado. Não que nunca tivesse presenciado aquele olhar, no entanto, dessa vez havia sido diferente. “Ela só tinha 13 anos! Meus Deus! 13 anos! Ela só tinha 13 anos!” Já havia matado outros da mesma idade, mas não como aquela e não daquela forma. Ela era pequena e pura, não espancava garotos menores e nem desfilava com armas pelo bairro como aqueles pequenos delinquentes.  
Daniel nasceu com o crânio ferido, fruto dos chutes que o pai acertara na barriga de sua mãe no meio de uma briga. As cenas de tapas, chutes e socos eram frequentes naquela casa, já que as habilidades do pai de família se resumiam a esvaziar canecos e espancar mulheres. Pouco tempo depois, matou a esposa com 21 golpes de facão. É claro que, na primeira oportunidade, Daniel se vingara. Sua vingança havia sido cruel, pois além das 22 facadas, arrancara o coração do homem maltrapilho e depois de mastigar uma parte, cuspira-o, satisfeito. Sentado ali na beirada do beliche, sorriu prazerosamente ao recordar do gosto do sangue em sua língua.
Levantou-se e olhou o companheiro de cela que dormia na cama de cima. Passou os olhos rapidamente pelos outros dois do outro beliche e foi até o banheiro da cela. Sentiu a água gelada correr pelo rosto, pela barba sem fazer. De repente, sentiu também o suor brotar do couro cabeludo, sabendo que esta era a forma como sua amada o chamava. Sentia a sua falta, pois somente ela era capaz de compreendê-lo. “Preciso de você! Preciso te ver Sofia, preciso dos seus conselhos, preciso!”
Aos 15 anos, Daniel conheceu o grande amor de sua vida, no mesmo dia em que o garoto com olhos negros, cor de piche, oferecera-lhe o pó branco. Às vezes, a luz mais brilhante vem dos lugares mais escuros. Chamava-o de pó mágico, pois quando estava sob seu efeito, enxergava Sofia. Nestes momentos, encontrava paz, alívio para sua dor, pois somente ela o compreendia e o aconselhava. Ela havia lhe dito que as pessoas como seu pai precisavam ser destruídas, que não mereciam viver.
Daniel ou “Matador”, como era conhecido, acumulava em sua “capivara” mais de 100 homicídios, mas só assassinava outros criminosos. Nas noites que voltava para seu cômodo com o cheiro do sangue ainda entranhado na roupa, sentia-se bem consigo mesmo. “Eu sei que o que eu faço não está certo, posso parar quando eu quiser, mas eu amo fazer.” Tomava um banho demorado para tirar de si qualquer cheiro de morte e depois queimava as roupas no balde de metal que escondia em baixo da cama. Nestes momentos usava o pó mágico e sua amada lhe sussurrava no ouvido “é um favor para a sociedade”.
Agarrou-se na beirada da pia, tentando manter-se em pé, mas o peso do corpo logo cedeu ao chão. Ainda conseguiu ouvir alguém dizer “tá na nóia da falta” e a parte lúcida de sua mente sabia que esse alguém tinha razão. Há três dias que estava encarcerado e não usava o pó. Sem pó, nada de Sofia!
Ali, no chão frio da cela, esperou a crise passar. A abstinência era dolorosa e a fissura, aquela vontade insuportável, era a pior parte. “Sofia!” Sentiu que se não a visse morreria em poucos minutos. O coração batia descontrolado dentro de seu peito e o suor escorria como um rio pelo pescoço, encharcando seu uniforme de prisioneiro. Não durou mais que sete minutos, mas Daniel não sabia quantas mais dessas crises poderia suportar.
No meio de seu desespero, lembrou-se de que Sofia já havia lhe falado de algum russo que também conhecera a casa dos mortos: Dostoisvsky, ou alguma merda assim. Mas, droga, outro russo?! Sinceramente, detestava essas viagens e memórias cheias de frescuras.
Começou a pensar no dia em que matara Amabelle. Havia esgotado toda a sua reserva de pó e no desespero havia invadido uma casa, na esperança de achar alguma coisa de valor que pudesse vender e repor seu estoque. Não esperava encontrar ninguém na casa, por isso se surpreendeu com o grito. Era uma senhora magra e de cabelos brancos que, ao vê-lo, gritou e logo desmaiou no chão da sala. Sem perder tempo, pois poderia haver outras pessoas em casa, começou a puxar os fios do aparelho DVD que estava na estante. Foi nesse momento que percebeu uma garota encarando-o com olhos apavorados. Ela era tão parecida com Sofia…Precisava tocá-la! Tentara ser gentil, mas ela gritava e era preciso fazê-la calar. Apertou-lhe a garganta. “Não era para matá-la, era só para que se aquietasse”, dizia a si mesmo, ciente de que mais uma crise estava começando.

Sentiu que o carregavam e o colocavam na cama de novo. Ouviu gritos, parece que chamavam um médico. Mas de que lhe serviria um médico? Precisava mesmo era de Sofia, só mais uma vez…O frio abraçou-lhe suavemente, junto com o suor que escorria abundante por seus poros e quando a escuridão começou a lhe envolver, fechou os olhos e entregou-se à queda no vazio.

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