A loucura é mulher
apaixonada, é ignorante e não sabe coisa alguma.
Assenta-se a porta de
sua casa, nas alturas da cidade, toma uma cadeira,
para dizer aos que
passam e seguem direito o seu caminho:
Quem é simples,
volte-se para aqui. E aos faltos de senso diz:
as águas roubadas são
doces, e o pão comido às ocultas é agradável.
Eles, porém, não sabem
que ali estão os mortos,
que os seus ouvidos
estão nas profundezas do inferno.
-Provérbios de
Salomão (cap. 9, vers. 13 á 18)
Quando abriu os olhos, foi banhado pela luz do sol e por uma sensação
nova e estonteante. Daniel, sempre tão acostumado à escuridão do seu cômodo,
demorou a entender o que era todo aquele brilho, até que lembrou: não estava em
casa; estava na prisão.
Sua mente vagueou, viajou e, sabe-se lá porque, lembrou-se, ao que lhe
parecia, de um russo: Alexandre Soljenítsin, preso como ele, “Detenção! Será
necessário dizer que isso representa uma brusca reviravolta em toda a sua vida?
Que é como a queda de um corisco sobre sua cabeça? Que é uma comoção espiritual
insuportável, a que nem todas as pessoas podem adaptar-se, e que frequentemente
leva à loucura?” Grande porcaria! De que lhe serviria isto, agora? Vagueou...
Amabelle, agora ele sabia, era este o nome da menina de pele clara e
cabelos negros, que há alguns dias atrás lhe lançara aquele olhar apavorado.
Não que nunca tivesse presenciado aquele olhar, no entanto, dessa vez havia
sido diferente. “Ela só tinha 13 anos! Meus Deus! 13 anos! Ela só tinha 13
anos!” Já havia matado outros da mesma idade, mas não como aquela e não daquela
forma. Ela era pequena e pura, não espancava garotos menores e nem
desfilava com armas pelo bairro como aqueles pequenos delinquentes.
Daniel nasceu com o crânio ferido, fruto dos chutes que o pai acertara
na barriga de sua mãe no meio de uma briga. As cenas de tapas, chutes e socos
eram frequentes naquela casa, já que as habilidades do pai de família se
resumiam a esvaziar canecos e espancar mulheres. Pouco tempo depois, matou
a esposa com 21 golpes de facão. É claro que, na primeira oportunidade, Daniel
se vingara. Sua vingança havia sido cruel, pois além das 22 facadas, arrancara
o coração do homem maltrapilho e depois de mastigar uma parte, cuspira-o, satisfeito.
Sentado ali na beirada do beliche, sorriu prazerosamente ao recordar do gosto
do sangue em sua língua.
Levantou-se e olhou o companheiro de cela que dormia na cama de cima. Passou
os olhos rapidamente pelos outros dois do outro beliche e foi até o banheiro da
cela. Sentiu a água gelada correr pelo rosto, pela barba sem fazer. De repente,
sentiu também o suor brotar do couro cabeludo, sabendo que esta era a forma
como sua amada o chamava. Sentia a sua falta, pois somente ela era capaz de
compreendê-lo. “Preciso de você! Preciso te ver Sofia, preciso dos seus
conselhos, preciso!”
Aos 15 anos, Daniel conheceu o grande amor de sua vida, no mesmo dia em
que o garoto com olhos negros, cor de piche, oferecera-lhe o pó branco. Às
vezes, a luz mais brilhante vem dos lugares mais escuros. Chamava-o de pó
mágico, pois quando estava sob seu efeito, enxergava Sofia. Nestes momentos,
encontrava paz, alívio para sua dor, pois somente ela o compreendia e o
aconselhava. Ela havia lhe dito que as pessoas como seu pai precisavam ser
destruídas, que não mereciam viver.
Daniel ou “Matador”, como era conhecido, acumulava
em sua “capivara” mais de 100 homicídios, mas só assassinava outros criminosos.
Nas noites que voltava para seu cômodo com o cheiro do sangue ainda entranhado
na roupa, sentia-se bem consigo mesmo. “Eu sei que o que eu
faço não está certo, posso parar quando eu quiser, mas eu
amo fazer.” Tomava um banho demorado para tirar de si qualquer cheiro de morte
e depois queimava as roupas no balde de metal que escondia em baixo da cama.
Nestes momentos usava o pó mágico e sua amada lhe sussurrava no ouvido “é um
favor para a sociedade”.
Agarrou-se na beirada da pia, tentando manter-se em
pé, mas o peso do corpo logo cedeu ao chão. Ainda conseguiu ouvir alguém dizer
“tá na nóia da falta” e a parte lúcida de sua mente sabia que esse alguém tinha
razão. Há três dias que estava encarcerado e não usava o pó. Sem pó, nada de Sofia!
Ali, no chão frio da cela, esperou a crise passar.
A abstinência era dolorosa e a fissura, aquela vontade insuportável, era a pior
parte. “Sofia!” Sentiu que se não a visse morreria em poucos minutos. O coração
batia descontrolado dentro de seu peito e o suor escorria como um rio pelo
pescoço, encharcando seu uniforme de prisioneiro. Não durou mais que sete
minutos, mas Daniel não sabia quantas mais dessas crises poderia suportar.
No meio de seu desespero, lembrou-se de que Sofia
já havia lhe falado de algum russo que também conhecera a casa dos mortos:
Dostoisvsky, ou alguma merda assim. Mas, droga, outro russo?! Sinceramente,
detestava essas viagens e memórias cheias de frescuras.
Começou a pensar no dia em que matara Amabelle.
Havia esgotado toda a sua reserva de pó e no desespero havia invadido uma casa,
na esperança de achar alguma coisa de valor que pudesse vender e repor seu
estoque. Não esperava encontrar ninguém na casa, por isso se surpreendeu com o
grito. Era uma senhora magra e de cabelos brancos que, ao vê-lo, gritou e logo
desmaiou no chão da sala. Sem perder tempo, pois poderia haver outras pessoas
em casa, começou a puxar os fios do aparelho DVD que estava na estante. Foi
nesse momento que percebeu uma garota encarando-o com olhos apavorados. Ela era
tão parecida com Sofia…Precisava tocá-la! Tentara ser gentil, mas ela gritava e
era preciso fazê-la calar. Apertou-lhe a garganta. “Não era para matá-la, era
só para que se aquietasse”, dizia a si mesmo, ciente de que mais uma crise
estava começando.
Sentiu que o carregavam e o colocavam na cama de
novo. Ouviu gritos, parece que chamavam um médico. Mas de que lhe serviria um
médico? Precisava mesmo era de Sofia, só mais uma vez…O frio abraçou-lhe
suavemente, junto com o suor que escorria abundante por seus poros e quando a
escuridão começou a lhe envolver, fechou os olhos e entregou-se à queda no
vazio.
Fran e seus contos trágicos! A versão feminina de Edgar Allan Poe rsrs
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