segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Fotografia - Paulo Cesar Corrêa

    Começo dizendo que este é um pequeno relato sobre a minha vida. Talvez seja algo muito pessoal, mas tenho de escrever, nem que seja para que as memórias se materializem em letras numa tela de computador.
    Sobre o criado mudo, ao lado da minha cama, tenho um pequeno suvenir de um pedaço da minha história que deduzo ter sido o mais feliz.
    É uma fotografia...
    De Letícia.
    Ela está de costas, um forte ao fundo, a água da praia roçando-lhe nos quadris, o cabelo esvoaçando ao vento. Não posso ver, mas sei que ela tem um sorriso no rosto. Primeiramente tímido, depois uma curva meiga — até mesmo sensual — que lhe empresta uma beleza radiante à face. É uma foto antiga e quando a examino de perto, vejo uma mancha marrom-escura no canto superior direito, cortesia de uma espanhola louca que tentou tacar fogo na foto, muitos anos atrás.
    Seguro a foto, só por um instante, e lembro-me de tudo, nos mínimos detalhes:
    (...)
    Quando eu tinha 15 anos, sonhava em ser fotógrafo e viajar pelo mundo.
    Estávamos nas férias de dezembro, em Cabo Frio, eu e minha família. O sol ardia, inclemente, e o vento litorâneo trazia o cheiro de sal para o continente.
    Todos estavam sob guarda-sóis, esparramados em cadeiras de praia, tomando água de coco ou comendo camarões. Meus pais e meu irmão não pareciam se mover, alheios a tudo o que acontecia ao redor.
    Aquilo tudo parecia chato para mim. Eu havia visto uma loja de máquinas fotográficas perto de onde estávamos e não perdi tempo. Fui até lá, a passos largos, indo ao encontro do meu sonho. A máquina da vitrine que eu nem sabia a marca. A máquina que eu não fazia ideia do preço, nem de como se usava. Ela estava lá, me seduzindo, chantageando-me, chamando-me e, aos poucos, minha testa foi-se apoiando ao vidro e comecei a sonhar acordado.
    Não sei por quanto tempo eu fiquei neste devaneio. O que sei foi que escutei uma voz feminina, bem suave e melodiosa, perguntando-me:
    — Você sabe qual é a máquina?
    Afastei minha cabeça e vi o reflexo da menina na vitrine. Ela tinha cabelos negros, lisos em cima e cascateavam, encaracolados, abaixo dos ombros. Os olhos eram como o céu noturno e a pele, leitosa e lisa, refletia a luz do sol. A menina parecia ter a minha idade.
    — Não sei. — Disse, desviando o olhar.
    — Parece uma Nikon D3100 — ela disse.
    — Como você sabe?
    A menina abriu uma bolsa que parecia grande demais para o tamanho dela. Tirou de lá a máquina e me mostrou. Parecia pesar como um tijolo. Mas era bonita.
    — Gosta de fotos? — Ela me perguntou com uma sobrancelha arqueada.
    Simplesmente meneei a cabeça. Nunca fui bom em falar perto de meninas bonitas e minhas bochechas enrubesceram. Mal consigo olhá-la, mas vejo um lampejo de um sorriso, os dentes perfeitamente encaixados.
    Ela suspirou. — Quer que eu te mostre como usar?
    Lembro-me que meus olhos adquiriram um brilho travesso e disse que sim. Que era tudo o que eu mais queria. Ela deu uma risada e disse que se chamava Letícia. Cumprimentei-a, dizendo o meu nome: Douglas. Ela tem as mãos macias, aveludadas e um calor confortável.
    — Você já tirou alguma foto antes?
    — Não — eu disse — Não com uma câmera dessas.
    Letícia resolveu que seria bom que eu tirasse a minha foto na Praia do Forte. Ela me mostrou todas as ferramentas da câmera, dizendo sobre o ajuste da abertura da lente, da velocidade e do ISO. Também me disse que era bom eu ter um ponto de apoio, para que a foto não ficasse tremida.
    — Vai ficar uma foto perfeita — Ela comentou. — Com essa paisagem e tudo o mais.
    — Quase perfeita. — Eu disse. — Precisamos de um tema.
    Fiquei surpreso comigo mesmo quando disse aquilo e vi um leve rubor nas bochechas de Letícia. Um tom de vermelho que me fazia lembrar o blush que minha mãe usava.
    Ela contestou, dizendo que não podia fazer isso e ficamos argumentando por algum tempo e a menina, finalmente, acabou cedendo. Letícia tirou as sandálias, pondo os pés delicados na areia compacta. Depois, tirou o pequeno short e a camiseta, revelando um biquíni branco, como o leite. Seguiu em direção ao mar, lentamente. As ondas rebentavam contra algumas pedras. Vários surfistas estavam levando “caldos” vergonhosos e, ao horizonte, o céu se encontrava com a terra num abraço infinito. Ela tentou, em vão, arrumar os cabelos, pois o vento os fazia balançar. Era perfeita, para mim, aquela imagem. Então, ela se virou para trás e me disse:
    — Conte até 35, ok?!
    Virou-se outra vez para o mar. Eu não havia entendido o porquê de contar até 35, mas supus que ela quisesse tempo para arrumar a melhor pose. Ajoelhei-me, fazendo de um dos meus joelhos o meu ponto de apoio.
    Um... dois... três... quatro...
    (...)
    Estou deitado na cama, as persianas fechadas, mas consigo ver o rosto de Alejandra. Uma caixa de pizza está no chão e alguns copos sujos, jogados pelo quarto do hotel. Eu a havia conhecido no dia anterior, num pub em Zaragoza. Espalhadas pelos lençóis da cama estão as fotos de minhas viagens que mostrei para Alejandra. Fotos de Varanasi, Sidney, Montevidéu, Buenos Aires e Paris. Mostro as fotos de um congresso que fui, em Zurique. Outra que tirei de vários skinheads, em Viena. Alejandra observa que não estou em nenhuma das fotos.
    — Eu prefiro ficar atrás das lentes — explico e é verdade.
    Oito... nove... dez... onze...
    Alejandra apoia-se nos cotovelos em cima da cama e encosta-se a mim. Estende a mão até um maço de cigarros Marlboro, pega um e acende. Eu estava cansado e disse que, se ela quisesse, podia olhar as fotos enquanto eu descansava.
    Depois de meia hora, sinto uma cutucada nas costelas. Abro os olhos, atordoado, sentindo o cheiro forte do cigarro.
    — ¿ Esta chica es tu novia, hã? — pergunta, em espanhol. Ela havia encontrado a foto de Letícia na praia. Alejandra queria saber se a menina da foto era minha namorada.
    — No. — Respondo.
    — ¿ Su cohabitación o hermana? — Perguntou se era a minha amasiada ou irmã.
    Simplesmente nego com a cabeça. Alejandra fica a olhar para a foto e para mim. — Creo que ella es tu esposa! — E, depois de falar isso, pega o isqueiro e começa atear fogo na foto. Entro em desespero. Pego as fotos, minhas coisas e saio.
    Quinze... Dezesseis... Dezessete... Dezoito...
    De repente, mando o motorista do ônibus parar e dar meia volta, pois tinha esquecido algo em Jerusalém. Ele murmura qualquer coisa em hebraico, mas não consigo entender. Depois, em inglês, diz que é inviável, pois o risco de ataques dos palestinos é muito grande.
    — It’s really important!— Digo que é muito importante, mas ele nega com a cabeça. Desço do ônibus, determinado a não deixar nada para trás.
    — What is so important? — Ele me questiona enquanto pego minhas malas.
    — Uma fotografia.
    Eu a tinha esquecido na recepção do hotel, pois havia tirado da minha carteira, para olhar e, por alguma razão, não devolvera ao lugar. Quando cheguei, a fotografia ainda estava sobre a poltrona de couro. Fiquei aliviado. 
    Vinte e sete... vinte e oito... vinte e nove... trinta...
    Em Pequim, durmo sob viadutos. Amsterdã, num albergue junto com viciados em LSD. Às vezes, esbanjo um pouco e vou para um hotel, tomar banho e fazer a barba. A fotografia sempre comigo.
    No Minato Mirai, em Yokohama, vejo o sol se por, deixando um reflexo chamejante nas águas do Pacífico. Conheço dois alpinistas que escalaram o Everest, no Nepal. Recuso uma refeição de insetos, na Tailândia.
    Em Los Angeles, vejo as estrelas brilharem. Em Montreal, tremo com o frio da noite, mas o pensamento daquele dia ensolarado numa praia de Cabo Frio me aquece e consigo dormir.
    Trinta e um... trinta e dois... trinta e três...
    Acordo num lugar que me parece ser um hospital. O ar está pesado e cheirando a remédios. Um ventilador de teto mal refresca o ambiente e, pelos murmúrios ao redor, sei que muitas pessoas estão esperando para serem atendidas. Pergunto para um enfermeiro onde estou e ele diz, em urdu, que estou na Somália. Pela sua vestimenta, sei que ele é um muçulmano e, depois de um tempo, pergunto o que estou fazendo naquele hospital.
    — Malária. — Ele respondeu. — Mas se Deus quiser o senhor ficará bem. Allah u Akbar. — Ele diz que Alá é grande, em urdu.
    Pergunto sobre as minhas coisas. Que coisas?, pergunta o muçulmano. Todas as minhas coisas sumiram. Minhas roupas, máquina fotográfica, meu dinheiro. Tateio o meu bolso e suspiro. A foto ainda está lá.
    — Quando eu vou sair daqui?
    Ele olha para baixo e diz que, provavelmente, eu não saia.
    Pego a foto. Letícia, seu cabelo esvoaçado, os pés descalços, o biquíni branco. O Atlântico furioso, lançando ondas espumantes contra as pedras. O forte. Sinto um nó na garganta. “Não quero morrer aqui”, pensei, “longe dela”.
    Passa-se uma semana e melhoro. Os remédios respondem bem e recebo alta.
    Vou à Irlanda, Noruega e Dinamarca. Ando nos belos ônibus avermelhados de Londres e nos riquixás coloridos de Nova Délhi.
    Só então, finalmente, volto para casa.
    Trinta e quatro... trinta e cinco.
    Clico no botão e a foto é tirada.
    (...)
    Não sei o que dizer dos meus sentimentos sobre a menina da foto. Nunca mais a encontrei depois daquelas férias de verão e admito que foi minha culpa. Eu devia ter dito alguma coisa, qualquer coisa que a fizesse saber que ela era importante para mim. Mas não fiz.
    A história está chegando ao fim. Desligo o meu notebook e me levanto da escrivaninha. Minhas costas doem. Como doem!Deito-me na cama e passo os lençóis por cima de mim. Neste momento — sempre neste momento — tudo vem para mim com uma força colossal: eu estou com a máquina nas mãos, Letícia está tirando as sandálias, lentamente, como se fosse numa slow motion. Tira o short, a camiseta. Seu andar é sublime. Ela põe os pés na água. Um pelicano voa ao horizonte e vários pássaros marinhos alçam voo ao mesmo tempo, formando um imenso V no céu. O biquíni branco parece ser algo celestial, os cabelos de Letícia se agitam. O farfalhar do vento é como uma música. Sim. Uma música. E lá em cima, perto das nuvens, uma pipa plaina, suavemente. As águas já batem nos quadris dela e, então, estagna. Letícia se vira e me pede para contar até 35. Eu conto, tiro a foto e ela volta para mim. Sorri. Põe a mão direita na minha face e, inclinando-se um pouco, me dá um beijo agridoce.
    É com esta sensação que fecho os olhos, vagarosamente, e durmo.







sexta-feira, 17 de maio de 2013

Download do Livro Corsário Solitário

Acabo de lançar meu primeiro livro em formato digital. A obra Corsário Solitário trata-se de alguns textos que escrevia anos atrás em um blog e que resolvi unificar e transformar em livro. A arte da capa foi feita pelo meu grande amigo e designer Rafael Maciel. A revisão da obra foi feita de maneira colaborativa por amigos e familiares. O grande mérito da produção do livro foi o aprendizado e a experiência adquirida ao revisar e diagramar todo o material. Devo um enorme agradecimento a todos os envolvidos nesse projeto. A seguir o link para download:

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um borrão preto percorria aquele marrom intenso - Caio Machado



Não esperava nada além do tédio. Anualmente nos encontrávamos na casa de Rodolfo para celebrarmos a existência de nossa família. Ou algo relacionado à união dela, que eu particularmente não conseguia notar. Rodolfo Couto era o quinto irmão de meu pai. Sete anos mais novo do que ele, fez carreira militar no Rio de Janeiro e se casou bem moço. Não fosse pela suposta união da família ele jamais teria retornado para Maringá, onde o resto todo dos Couto ainda residia. O casarão que ele morava ocupava uma área nobre da cidade e de comum acordo de todos era o melhor lugar para sediar a celebração. Chacotas e bajulações à parte, o que mais me agradava nisso tudo era a comida em abundância e em estrondosa qualidade. As enormes panelas postadas no forno à lenha davam um ar mineiro. O bucolismo existia pelo fato que a festa ocorria sempre no enorme quintal do casarão. Infelizmente, o almoço só seria servido às quatro da tarde e no decorrer do dia beberíamos e comeríamos alguns petiscos.
Mônica Kaneshiro era a esposa de outro tio meu. O casal vinha do Japão, de onde não regressavam desde 1997. Mônica entrou na casa acompanha de Fausto Couto e de uma moça que até o momento eu sequer sabia sobre sua existência. Aparentando seus dezoito anos, a garota tem o cabelo negro azulado em um liso irregularmente ondulado. Os traços do rosto são bem arredondados e orientais. Os olhos eram bastante puxados e grandes, protegidos por uma estreita e corredia sobrancelha. Os lábios eram curtos e rosados. Seu corpo tinha curvas sinuosas o bastante para que a moça pudesse ser confundida com uma típica brasileira formosa. Senti-me estupefato com o ar indiferente que ela carregava e com sua beleza desnorteante. Dei-me por convencido de que iria conhecê-la naquela tarde. E não perdi um segundo sequer. Após todos cumprimenta-los tratei de encaminhá-los pelo casarão arranjando-lhes um lugar um pouco mais isolado de todos. Sentei-me junto ao trio à mesa. Tio Fausto estava satisfeito com a atenção que eu prestava a eles. Parecia que eu era o único ali interessado em conversar com eles, o que de certa forma os agradava muito. Mônica era mais reservada, limitando-se a apenas responder o que eu perguntava e a sorrir quando necessário. A garota não deu um pio e olhava para os lados frequentemente. Seu nome era Clarice e ao nos apresentarmos ela me fitou de maneira tão fixa que senti um estranho desconforto. Contei para eles que abandonei a faculdade de Física quando recebi uma proposta de trabalhar como gerente de uma agência de encomendas e eles ficaram surpresos. Não dei maiores detalhes, mas a partir daí Clarice não desgrudou mais seus olhos de mim. Ela disse que iria até a cozinha buscar algo para beber que lhe agradasse e eu decidi acompanha-la. Novamente a satisfação evidenciou-se no casal e eu de certa forma senti que isso representava um sinal verde para nos dois.
No caminho até a cozinha, ela não disse nada. Entrou pegou um copo de limonada na geladeira e misturou com um chá mate que estava em outra jarra. Limitei-me a segui-la com um copo de refrigerante. A garota andava de forma majestosa e pausada. Ou eu estava bastante apaixonado ou seus pés que calçavam um par de sandálias fechadas mal tocavam ao chão. Ao invés de voltar para a mesa de seus pais ela sentou-se em uma mureta próxima a área de serviço da casa e me perguntou se eu queria saber por que ninguém a conhecia. Rapidamente ela se corrigiu dizendo que todos fingiam não a conhecer. Demonstrei interesse e acenei com a cabeça dizendo que queria saber mais sobre isso. Ela não me deu um detalhe sequer de sua vida. Disse-me apenas que ninguém da família tem fotos dela e que alguns prefeririam que ela nunca tivesse existido. Contou-me que nos anos que passou no Japão desenvolveu uma doutrina própria onde era necessário estender um lençol lilás por sobre todos os móveis da cozinha para que sua crença se estabilizasse. Além disso, sete contas feitas com bordado e conchas do mar deveriam estar ao redor de todos os vasos sanitários de sua casa. Feito isso ela atingiria seu singular nirvana num transe excêntrico e solitário, pois claro, só ela seguia sua doutrina. Naquele momento eu estava de fato fascinado com tudo aquilo que ela me dizia, mas meu interesse maior era apenas carnal. Ela me prendia pelo seu jeito único e claro, pela sua inalcançável beleza.
Repentinamente seu olhar se tornou estático ao notar que um gato caminhava pelo muro da casa. A parede era repleta de lodo e folhagens, o que sugeria um aspecto bem gótico e assustador. Aquele gato branco se arrastava suavemente pelas relvas. Como que se recitasse uma oração Clarice sibilou algumas palavras que remetiam a elegância e discrição do andar dos gatos. Algo sobre como eles sobreviviam em qualquer situação e repetia firmemente que viver pensando só em si próprio era a melhor qualidade que o homem poderia ter para si observando o estilo de vida gatos. Assim que o bichano pulou para a rua ela saiu de sua súbita hipnose e me disse que no seu bolso se encontrava a única foto que havia sido feito dela. Com sua pequena mão esquerda ela retirou um recorte amarelado de jornal e me entregou com um bizarro sorriso no rosto. Um torcer de lábios de um mistério tão vasto que só se via algo similar no quadro da Monalisa ou algo que o valha. A notícia do jornal era sobre o massacre de crianças em uma escola primária no Japão. A assassina era Clarice Couto Kaneshiro, que na foto carregava uma submetralhadora, trajava um uniforme escolar escuro e não ilustrava nenhuma feição em seu rosto. As cores gritantes e o mau gosto evidenciado pela escolha da foto acusava o caráter sensacionalista do jornal que noticiou o ocorrido. A nota curta não dava muitos detalhes e limitou-se a comparar a garota com os jovens assassinos do massacre de Columbine. Aquele foi o único jornal brasileiro a relatar o ocorrido, no Japão a imprensa foi totalmente barrada. Por incrível que pareça a notícia não me chocou nem um pouco e o sentimento que ardia em meu peito incrementou-se ao olhar novamente para Clarice após ler o jornal. Meu coração parecia que iria explodir, eu nunca havia sentido isso por ninguém. Clarice notou o que eu estava sentindo e se aproximou de mim. Nossos lábios se tocaram por automatismo e ela não se mostrou evasiva. Beijamo-nos longamente e ela não hesitou.

            (...)

Clarice tomava seu chá gelado. Seus colegas de classe preferiam café. O gatinho marrom de Clarice se chamava Sembe. Já era habitual que o felídeo ficasse aos seus pés enquanto ela tomava seu chá. Por estranhar tanta gente na cozinha o gato deitou-se ao lado de um dos garotos que tomava café. Katsuhito era um garotinho muito efusivo e adorava traquinagens. Não se aguentou ao ver o gato bocejando de sono e derramou café no dorso de Sembe. O gato estremeceu e num berro de dor se jogou janela a fora num salto imenso. Todas as crianças se esbaldaram em risos de escárnio. Clarice mirou Katsuhito sem qualquer expressão facial. Espatifou sua xícara no chão e vociferou para que todos fossem embora dali.

 (...)

Clarice contou-me que após o ocorrido passou sete anos internada em clínicas, submetida a intensas sessões psicológicas perante ingestão de medicamento pesado. O curioso é que seu tratamento ocorria em paralelo ao de alguns colegas que sobreviveram e também com pais de alguns outros que ela havia assassinado. Ela sorriu sem som e disse que não sabia por que tinha feito aquilo. Disse que encontrou a arma no cofre da casa de uma colega enquanto brincava de pique-esconde. A garota era filha de um oficial, que por distração não havia trancado a caixa no dia em questão. Ela guardou a arma discretamente em sua mochila. Na manha seguinte, entrou na sala de aula e disparou contra alguns de seus colegas. Detalhou que quando atirava a pressão que a arma exerceu contra seu corpo à fez ver intensos clarões lilases e que foi a partir daí que passou a dar vazão a sua própria doutrina. Ela necessitava de sentir aquilo tudo de novo. Voltamos a nos beijar. Dessa vez por decisão minha. Clarice pareceu não estar gostando do rumo que isso estava tomando. Disse-me que assim seria mais fácil e correu para o interior da casa. O sentimento que passava pela minha cabeça é que eu realmente havia estragado tudo. Eu devia ter tentado entende-la, questionando-a mais sobre o ocorrido e sucessivamente mostrando-me interessado. Decidi não ir procura-la por agora e me juntar aos seus pais.
Novamente conversei com Fausto e afirmei que sua filha era uma rapariga muito especial. Ele me retribuiu com um riso sonoro e sincero. Seus olhos realmente brilhavam e assim faziam-se também os de Mônica. Um calafrio percorreu minha espinha, pois pela primeira vez naquela tarde passei a suspeitar de algo estranho, já que o casal trajava roupas com os mesmos tons escuros que os do uniforme usado pela filha na manhã do massacre. Tornei a mesa onde se encontravam meus pais e recordei-me amargamente do hostil terreno de “união” no qual me encontrava. Era evidente que todos ali buscavam apenas a herança de meu avô. O patriarca Dantas Couto já andava com um pé na cova. Dividir os bens com catorze filhos com certeza não será uma tarefa simples de resolver. Pra piorar o velho decidiu que sua família não necessitava de testamento já que todos se amavam por igual. Pudera eu me fazer de bobo de maneira tão hiperbólica.
O gato branco regressara ao muro e já era hora do almoço ser servido. O delicioso aroma recendia por todo o jardim. Meu estomago roncava e minha boca estava inundava de saliva. O mais engraçado é que o sentimento de paixão intensificava essa fome de uma maneira muito excêntrica. Eliza Ribeiro Couto, esposa do anfitrião da casa foi quem destampou as desmedidas panelas. Enquanto isso o marido agradecia a presença da enorme família e salientava o quanto estava feliz por ter uma família tão harmoniosa. O senil Dantas sentia-se bastante orgulhoso em sua cadeira de rodas e foi o primeiro a despregar um prato vazio da mesa para se servir. Ao puxar o pesado prato de porcelana um pedaço de papel revelou-se na mesa. A seguir, todos que pegaram um prato tiveram a mesma surpresa. Ao terminar de ler o papelucho, Dantas deixou o prato deslizar de sua mão e inesperadamente desmaiou causando imediata preocupação em todos os presentes no casarão. O velho estava morto. Um longo silêncio percorreu o jardim onde todos agora liam o papel que se encontrava debaixo de cada prato. Tratava-se de cópias do recorte de jornal que noticiava a chacina na escola de Clarice. Era evidente que os papeis haviam sido recortados de jornais, mas tudo soava meio falso, pois não havia nada nas costas dos recortes.
O longo silêncio foi cortado pelo som de passos vindos à direção da cozinha do casarão. Clarice calçava um sapato preto bastante lustrado, uma saia preta de brim e uma blusa azul escura. Tratava-se do mesmo uniforme que a garota usava no incidente da escola e também das mesmas cores que vestiam seus pais. A submetralhadora em suas delicadas mãos também parecia ser a mesma. Sua beleza continuava lá, intacta. Superior. Como se um marcador de livros em um álbum de fotos estivesse sido retirado da última imagem que tive de Clarice. Seus pais já não se encontravam mais na mesa e dessa vez três gatos postavam-se ao muro dos fundos. O gato branco, agora acompanhado de um casal de gatos negros, observava a família Couto por cima da parede. Clarice entrou repetindo uma frase curta de maneira estática e automática. Não parou de proclamá-la nem mesmo enquanto puxava o gatilho e dizimava sua família, que segundos antes a repudiava por provocar a falência de Dantas Couto. Sabia que sua suave voz seria a última coisa que ouviria e sequer senti medo. Que fim melhor todos nós poderíamos ter? A garota alvejava um por um e a assustadora indiferença em seu rosto novamente fazia com que meu coração chacoalhasse em meu peito. Os gatos assistiam ao banho de sangue com intensos miados e pareciam extasiados com um febril brilho lilás que refletia o vitral da cozinha com o clarão dos tiros disparados. Fui poupado pela moça e observava tremendo, o sangue se misturando por todo o chão do jardim. Os gatos se aproximaram e para que não se sujassem de sangue saltavam levemente de corpo em corpo pelo chão. O trio se aproximou de mim, mas logo saíram em disparada quando fui baleado no estomago por Clarice. Sua voz repetia a mesma coisa desde que saiu de dentro da cozinha.

            (...)

Sembe cortou-se ao pular da janela da cozinha, pois caiu bruscamente em cima de uma torneira que ficava no jardim da casa de Clarice. Não resistindo às dores da queimadura e do corte, o bichano morreu ali mesmo. A garotinha o encontrou enquanto ele solfejava seu último miado. Sua dor refletia a mesma dor que a de Clarice sofria por perdê-lo. Um borrão preto percorria aquele marrom intenso.