quarta-feira, 13 de abril de 2011

E se não houvesse funeral? - Caio Machado

Seu subconsciente sempre te trai.
Breno sempre vinha com uma história de que durante os últimos dois anos morou em Lages, uma cidadezinha no interior de Santa Catarina e que por lá cursava Engenharia Ambiental em uma universidade particular, sendo colega de um tal de Marcos, com quem ele jogava basquete nas terças e mantinha um princípio de amizade. Além de ser alto, corpulento e dispor de um puta fôlego, o tal do Marcos ainda era gaitista e tocava em uma banda de blues. Diziam que ele era o único gaitista do pedaço e por mais que surgisse outro ele continuaria sendo a única referência local, porque ele era o melhor no que fazia. Segundo Breno era muito comum existirem bandas de blues naquela cidade, o que dava um toque verossímil a toda aquela anedota sobre seus estudos. Depois de uns oito meses de curso Marcos resolveu trancar a faculdade e se dedicar somente a música, se integrando num tal de Circuito Fora do Eixo e participando ativamente da maioria das bandas da cidade, tanto na parte de performance, quanto na parte de produção. Para o Breno aquilo foi um baita choque, porque ele era seu único companheiro e ele dificilmente se socializava com as demais pessoas da faculdade. Dessa maneira seu rendimento começou a cair na faculdade e ele se encontrava constantemente envolvido em discussões com colegas e professores, que em muitas das vezes se sentiam humilhados pela tamanha eloqüência e capacidade de argumentação de Breno, que em contrapartida na maior parte das vezes se mostrava distante e desconexo com o ambiente acadêmico. Com esse pretexto da saída de Marcos e pelo seu péssimo relacionamento com a sociedade ele voltou para casa de seus pais no interior de Minas Gerais e por lá começou a espalhar essa história. Foi aí que surgiu na cidade sua fama de esquizofrênico ou mesmo de lunático, pois todo mundo sabia ou ao menos pensava que sabia que ele jamais morou em Santa Catarina e que dificilmente Marcos ou qualquer outra pessoa citada por ele pudessem existir. Enfatizando o detalhe de que ninguém sabia o que acontecia com o dinheiro que os pais de Breno depositavam para ele quando ele estava fora, apenas sabiam que era investido em seus estudos e no aluguel de um quarto barato em uma pensão. Seus pais nunca se preocuparam com a integridade ou mesmo com o comportamento do filho enquanto ele esteve ausente.
Na primeira clínica psiquiátrica ele quase não falava mais no assunto. Dizia que detestava o comportamento preconceituoso das pessoas que se depararem com um esquizofrênico e que vinha bolando um método que derrubaria tudo que Freud e os atuais especialistas afirmavam sobre o tema. Vou quebrar as barreiras e parâmetros da psicanálise, era o que ele sempre repetia. Os enfermeiros nunca levavam isso a sério, mas já percebiam que se tratava de um rapaz comum. Enquanto esteve internado passou a estudar freneticamente São Tomaz de Aquino na biblioteca da clínica, mas ainda sim insistia na questão da psicanálise sem se deixar influenciar pela fé ou pela sua respectiva filosofia. Não demorou que a diretora da clínica movida pelo fervor de sua fé se comovesse deixando que ele retornasse para a casa dos pais, alegando um ótimo desempenho e progresso da parte de Breno. Lá estando subitamente o rapaz passou a frequentar o AA e se dizia um alcoólatra irreversível, compartilhando a experiência de ter iniciado o vício após um único gole de vodca. Por ser de conhecimentos de muitas pessoas na cidade de que ele era abstêmio declarado, não tardou que ele fosse desmascarado dois meses após seu ingresso na instituição. Esse ato pueril foi responsável pelo desencadeamento de um enorme conflito de alguns frequentadores que acreditavam estarem vivendo um enorme teatro e Breno acabou quase sendo preso, porém sua fama de lunático o afastou do cárcere. Seus pais foram informados e novamente a suspeita de esquizofrenia pairava pela casa motivando-os a uma nova internação do rapaz que dessa vez alegava sim beber e que fariam um enorme mal o retirando dali.
Me acho legal o bastante para conversar comigo mesmo, dizia Breno para sua mãe. Era essa a sua justificativa mais cabível quando se mostrava irritado por desacreditarem de algum nexo relacionado aos seus laços de afeto com Lorena, sua suposta primeira amiga imaginaria. A garota apareceu de maneira rápida em sua vida sendo sua primeira amiga de infância e mesmo antes de completar dez anos vivenciou suas primeiras experiências eróticas com ela, que por sua vez já tinha treze anos e se mostrava bastante emancipada, experiente, flertando fluentemente com a puberdade que a esculpia primorosamente. Ao retornar de Santa Catarina Breno afirmou estar namorando com a moça, mas curiosamente a mesma nunca fora apresentada aos pais, familiares ou amigos. Sequer os dois já haviam sido vistos juntos. Sua mãe acreditava que aquilo seria seu principal sintoma de perturbação, já que a garota atormentava sua infância e agora também sua vida adulta. Dois dos três psiquiatras posteriores disseram que esse medo de mostrar a primeira namorada aos pais é frequente e que seus pais só ainda não tiveram oportunidades de conhecê-la devido ao acaso que se mostrava um grande bastardo ao evitar que isso ocorresse. O terceiro psiquiatra foi consultado na capital de Minas Gerais por indicação de amigos e lhes recomendou que o matriculassem num colégio militar de regimento interno. Pela fama e confiança que colocavam no especialista seus pais acreditavam que Breno poderia ter um futuro militar brilhante. Foi a partir daí que os seus já pré-diagnosticados problemas de alienação e esquizofrenia se intensificaram. O resto não será mencionado posteriormente.
Marcos recebeu um envelope rosado em sua casa e outro na sede de seu coletivo vinculado ao Fora do Eixo. Breno não queria que a mensagem fosse extraviada e se assegurou de que chegaria a Marcos independente de onde ele estivesse. Aquele seria o primeiro convite para um velório em que o próprio morto o convidaria para sua cerimônia póstuma. Breno orquestrou seu suicido de maneira que coincidisse com o mesmo dia do show que a banda de Marcos faria em sua cidade em um discreto e relevante festival de Blues. O suicídio se realizou através de enforcamento através de um pedaço de uma rede de descanso. Breno se pendurou e se jogou da janela de seu quarto. Por se tratar do terceiro andar do prédio da junta militar a pressão exercida pela corda foi o bastante para que quebrasse o seu pescoço, impedindo assim que ele sofresse asfixiação ou mesmo uma morte lenta. Junto ao bolso da calça deixou uma carta com sua despedida e algumas instruções de publicação sobre um trabalho que havia concluído há pouco. Seus companheiros de quarto o encontraram quatro horas após o ocorrido e na instalação havia em cima da escrivaninha uma enorme pasta com um ensaio de aproximadamente setecentas páginas sobre sua tese a respeito do estudo de behaviorismo através da esquizofrenia. Os colegas disseram que ele vinha escrevendo e trabalhando nisso desde que se instalou na escola militar. A dedicatória dizia “Ao Marcos e Lorena, pelo único amor concebido e aos meus pais que desacreditando de mim me fizeram me envolver ainda mais nisso”. Um especialista da perícia teve acesso ao ensaio de Breno e num surto de emoção resolveu editar e financiar a publicação do mesmo, que segundo ele são os mais brilhantes estudos sobre psicanálise já escritos. Posteriormente o ensaio se tornou um Best-seller referencial em estudos psiquiátricos e neurológicos. A família de Breno não receberia um centavo sequer dos lucros, exigência explicita pelo filho em sua carta de despedida.
Ao redor de seu corpo uma moça desconhecida chorava muito e todos os presentes naquela funerária explodiam de curiosidade acerca da identidade da moça que não cessava mais suas lágrimas. A moça tinha cabelos castanhos cacheados, olhos claros e parecia ser pouco mais velha que o Breno. Um rapaz corpulento e com um enorme bigode compareceu duas horas antes de o enterro iniciar-se, ele portava uma enorme mala provavelmente lotada de roupas e aparatos musicais. A moça não conseguia notar a presença do rapaz ou de qualquer outra pessoa no local, sua atenção estava toda focava no cadáver de Breno que jazia naquela pequena saleta. Num breve momento de desvio de atenção notou aquela silhueta que não lhe soava estranha e automaticamente gritou pelo nome de Marcos, novamente caindo em pranto. Marcos seria a única presença por ali capaz de conformá-la, o rapaz a abraçou e eles permaneceram assim por bastante tempo. Ele conseguia segurar suas lágrimas, mas sua tristeza era certeira, uma vez que ao observar Breno todas as suas partidas de basquetes e longas conversas se remetiam ao seu pensamento, acompanhados de um forte sentimento de arrependimento de não ter usufruído mais daquela amizade. Todos os ali presentes se arrepiaram e ao notarem que Marcos era real deduziram automaticamente que a moça se tratava de Lorena: a mesma garota que Breno dizia sempre encontrar no jardim do Parque Municipal e que ninguém dava o braço a torcer pela sua existência. O sentimento de culpa e ressentimento invadiu as mentes de seus pais que arrependidos dariam suas próprias vidas para recuperarem a vida do filho que sempre consideraram como caso perdido ou que mesmo nunca se importaram com a presença do mesmo, preferindo gastar suas economias em viagens por praias em todo o país. Marcos quis carregar o caixão de Breno até a sua lápide no cemitério, mas sua família envergonhada teria somente este fardo para provar que podiam ser algo pra Breno. Aos menos em seus instantes finais.