quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Casca de Noz - Henrique Donancio

      Rodrigo estava atrasado mais uma vez...
      Pacientemente andava de um lado ao outro da calçada frente a sua casa. Já havia mandado uma mensagem ao seu celular para que se adiantasse, havia certo receio de tocar a campainha, e acreditava que não influenciaria muito para adiantar seu retardamento. Trajava uma camisa azul que tinhas manchas nas costas, e impresso a sua frente uma mulher com headphones sensualmente pintada em tons pretos, sedutora em traços rápidos. Abaixo do olho direto uma pincelada cor de rosa. Fazia-se um dia quente, raros em tal posição geográfica, a barba já começava a me incomodar, nunca lhe fui um apreciador, esteticamente até achava que me caía bem, mas me agoniava, os pelos grossos atritavam com minha pele causando-me gastura.

     Ouço os primeiros acordes de No Rain soar, é meu aparelho telefônico que vibra e canta, vejo no display outro nome insistente, e desisto. Quando me viro para avenida dou-me com sua imagem embaçada pela minha miopia. Já havia aprendido a conhecer seus passos, percebo que sua cabeça de repente pende para baixo, deixando cair duas mechas, e desconcertadamente, cheia de receios num ato impetuoso você se põe ereta novamente, passa as mãos sobre o cabelo, conserta-o e volta a andar, mas quando chega mais perto de novo acontece, você nunca conseguiria disfarçar...
     - Olá Humberto.
     -Bem? Então aceno com a cabeça.
     -Meu irmão ainda não saiu? Já tocou a campainha? Bah, ele sempre se atrasa!
     Explano que já havia lhe mandado uma mensagem e que ele não tardaria muito a chegar.
     -Você está bem? – A pergunta me constrange, fixo os olhos nos seus e confiantemente quase silencioso digo-lhe um singelo "sim". Também pára, põe se a olhar, deixa as sacolas que carregava caírem de suas mãos, me abraça como senti em outra ocasião quando nos despedíamos na praia, escorre uma lágrima de seu olho, chego a não acreditar que tanto orgulho despencaria sobre meus ombros dessa maneira, de um jeito que se mede em metade compaixão, outra metade num sentimento mais forte lhe envolvendo num abraço caloroso.
     -Volta, eu já não consigo mais...
     -Eu também não, mas não dá, acabou!
     A porta se abre, Rodrigo aparece sobre a luz da sala, faz sua graça, tira sarro da situação de um jeito peculiar. Você seca sua pele, agarra as sacolas rapidamente e diz um “tchau” ríspido pondo-se para dentro. Rodrigo ainda diz mais algumas asneiras, bobagens que intrinsecamente tem o coro de uma enorme torcida. Tomamos o rumo do bar.

     A música estava demasiadamente alta e "suja". Quando todos estavam entretidos pus-me em mais um momento particular de reflexão, parado, olhando para o nada quietamente. Deixarei vago tudo que me passou naquele instante singular da minha existência afim de que nunca se descubra quais idéias perambulam pela minha mente no meu silencio. Tomei o celular em mãos e lhe mandei uma mensagem, talvez a primeira em dois meses.
     “Precisamos reaver a situação da Nina”, então sorri. Queria lhe provocar, não que a cachorra não fosse importante para mim, o era, me sentia responsável por sua irresponsabilidade, mas no fundo um ímpeto que me levava a aguçar sua raiva me conduzia a isso.
    Rodrigo me contara algumas vezes que o seu novo namorado havia tentado frustradamente tomar meu lugar de “pai” do cão, e que a dócil Nina agora estava raivosa, e ladrava contra o rapaz. Imaginei que você dava-lhe uns tapas por causa da impetuosidade, me aborreci, ao mesmo que tomado por uma satisfação maldosa. Ele tentava tomar meu lugar de pai?! Tudo ainda devia ter meu cheiro, os lençóis, o travesseiro, as paredes a ecoar minha voz, os ponteiros do relógio a esperar minha chegada. Você deverás estaria arrependida.
     Mais algumas cervejas então tomo coragem para ligar, já se fazia 1 hora e meia de um novo dia, pela sua voz ao atender ele devia estar ao seu lado, mas como você certa vez foi estúpida o suficiente para atender ligações de outro sob meus olhos, não faria diferente agora. Ríspido reclamo da cachorra, digo que me pertence, e você só ouve, e depois desliga. Se não te conhecesse tão bem agora ficaria mais tranqüilo, mas entendo o turbilhão de problemas que esse telefonema causaria. Você tentaria dar insignificância, menosprezar, me odiar, mas de nada adiantaria.
     Logo pela manhã recebo uma mensagem do Rodrigo me dizendo que Nina iria há uma consulta no veterinário. Retorno com uma ligação e peço lhe o endereço da clínica e tomo uma condução para o local.
     -Você ainda o chama para vir aqui? Ríspido seu namorado aponta o dedo para sua face.
    -Eu não o chamei.
    -Fui eu homem, diz Rodrigo. Então silencia, fita-me com raiva.
    O veterinário parece interpretar a situação e com uma voz grave chama a atenção de todos. Explana que pela falta de alimentação o cão acabou adoecendo, seria causa da depressão que estava a sofrer. Ele tem certeza do seu diagnóstico quando me aproximo do Cofap desengonçado sobre a mesa.
     -O senhor é dono do cão?
     Constrangido digo-lhe que sim e o tomo nos braços, pago a consulta e dou de costas para todos.
     A noite recebo outra mensagem de Rodrigo: “A mana acaba de terminar o namoro com o almofadinha, kkk”.
     Leio e suspiro... assovio para Nina que pousa ao meu lado no sofá. Teria sido melhor se tivesse lhe comprado uma tartaruga de presente.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Artista Itinerante - Caio Machado

Para Gabriel e Caroline Soares

Faltará lirismo no caso em que relatarei. Mas quem se importa? Aquela cidade ainda era uma grande incógnita para mim. A rodoviária não era muito amigável e estava num processo de reforma, que a meu ver ainda iria bem devagar. O que dava uma primeira impressão de atraso e retrocesso a quem chegava naquela cidade não muito receptiva. Antes de me dirigir ao meu destino resolvi consultar o mapa da cidade para que eu me orientasse melhor. Havia um enorme cartaz fixado em uma das paredes do local. Não existiam muitos bairros e pelo que calculei não gastariam mais que algumas horas pra se circular por toda a cidade. Enquanto eu pousava os olhos no mapa um jovem engraxate se aproximou de mim e perguntou de maneira bastante coloquial se eu queria “dar um trato” em meus tênis. Habitualmente ele só deveria fazer a seguinte proposta a senhores trajando sapatos, mas a evidente fome em que ele se encontrava, acompanhada de um possível desespero induziu o rapaz a me propor o serviço. Eu não precisava necessariamente do serviço, mas acabei aceitando. Sentamos no banco mais próximo e ele se postou aos meus pés e começamos a trocar algumas palavras durante uns instantes. O rapaz que perdeu a mãe recentemente se viu forçado a trabalhar, mas a falta de estudos não lhe proporcionou muitas oportunidades. E já que o ganha pão de seu pai é todo investido em exploração etílica não lhe restou muito que se fazer senão seguir o ofício ensinado humildemente pelo seu falecido avô. O rapaz não se dava muito bem com o português, mas era bastante loquaz. Contou-me que quando era mais novo não agia de maneira muito correta e que até preso já foi, por um envolvimento em uma briga. Fez uma singela e grotesca comparação ao dizer que durante o tempo que permaneceu enjaulado ficou tão branco por não tomar sol que estava até parecendo um europeu. Perguntava-me sobre meus interesses e parecia não saber muito bem o que fazia em meu tênis. Ele usava uma mistura que provavelmente não passava de água e sabonete e o serviço dele não me custaria mais do que três reais, mas preferi pagar-lhe dez para que ele se se alimentasse melhor ou o que quer que seja que ele fosse fazer com o dinheiro. Ele agradeceu-me repetitivamente e apresentou-se como simplesmente Gil. Disse que não se esqueceria facilmente de mim e pediu que eu voltasse depois com algum sapato para que ele engraxasse para mim. Aproveitando a ocasião disse também algo sobre doação de roupas e mais coisas das quais não me recordam bem. Para um recém chegado eu agora já ostentava minha primeira amizade.
A rodoviária ficava localizada na orla de uma enorme lagoa que se não fosse pelo visível descaso seria linda. Provavelmente aquele era um dos únicos cartões postais da cidade e para mim já estava ficando claro que a cidade em questão era meio abandonada pelas autoridades políticas. Tanto que em poucos minutos presenciei inúmeras infrações de trânsito que pareciam passar despercebidas por todos ali. Ironicamente isso me deixou satisfeito, pois eu estava ali justamente para escrever um artigo sobre o espalhafatoso trânsito. Ao sair da rodoviária me deparei com um simpático senhor que trajava uma boina cinza e carregava uma pasta de desenhos. Eu com meus vinte e poucos anos não conseguia emanar tanta vida como aquela alma conseguia transbordar. Uma estranha curiosidade se encheu em mim e resolvi perguntar as horas ou mesmo alguma informação qualquer só para poder verificar do que se tratavam as figuras ilustradas em questão. E bem, o senhor se mostrou bastante acessível e carismático. Informou-me as horas, iniciou uma conversa trivial e logo me contou sobre as aulas de desenho que estava tomando e me mostrou quase todos os seus trabalhos que abrangiam em sua maioria objetos e cenários bucólicos. A grande dificuldade dele se mostrava em ilustras rostos humanos. Aqueles punhados de figuras coloridas e monocromáticas me deixaram muito feliz repentinamente. Lembrei-me de outrora quando o primo de minha namorada (que por sinal nunca se mostrava com essas minhas viagens a trabalho) dava aulas de desenho e os expunha em festivais musicais. Isso bem antes dele se formar em Artes Visuais e embarcar para a França. O senhor, que por sinal se chamava Erasmo me contou que era formado em História e que mastigou também alguns anos do curso de Filosofia, mas sem se formar. Acrescentou que aos oitenta e seis anos sua vida apenas começava e que independente do que eu fazia Deus me ajudaria no meu destino. E claro que não existe mais em mim essa crença em Deus com a mesma força que em tempos anteriores, mas mesmo assim agradeci as palavras e lhe desejei o mesmo. Fantástico como essa cidade feia carregava almas tão curiosas e expressáveis. Erasmo aproveitou da ocasião e se pos a desenhar um pássaro e reparei que ele não tinha muita destreza em segurar o lápis com a mão esquerda e antes mesmo que eu perguntasse me contou que estava trabalhando o lado esquerdo do corpo e que na sua juventude o pessoal dizia que quem nascia canhoto era ignorado por Deus. Incrível como na mesma proporção que a fé diminuía absurdos de coisas mundanas ela também os aumentava. Contei para ele que eu sofria o “mal” de ser canhoto e contei também minha curiosa história das aulas de violão que tive como destro e sobre como tive que inverter as cordas e o lado do violão para também me oficializar como canhoto musicalmente. Jimi Hendrix, Tony Iommy e recentemente meu último herói Kurt Cobain também eram canhotos e eu não conseguia me orgulhar muito dessa situação, já que só encarecia e reduzia a possibilidade de encontrar instrumentos musicais para canhotos. Às vezes me perguntou se alguém já ouviu falar em algum piano para canhotos? Mas de fato eu conseguia me enxergar naquele senhor e parecia também que ele sentia o mesmo em mim. Como se estivéssemos naqueles filmes de ficção cientifica da década de oitenta em que as pessoas se personificam em nós através de maquinas do tempo ou buracos de minhoca. De súbito o senhor se despediu apressadamente de mim e entrou em um ônibus de transporte público. Não entendi a pressa dele, mas minha admiração por idosos era tanta que eu achava injusto poucos privilégios como filas especiais ou transporte público gratuito. Eles merecem muito mais do que isso e, aliás, esse é futuro esperado para todos que são jovens agora. Reparei que sua pasta de desenhos tinha sido esquecida no banco da praça e que eu agora me sentia extraordinariamente destinado a entregá-la para ele. Informei-me sobre a linha em que o senhor tomou e sobre os bairros em que o ônibus percorria em seu trajeto. Com as poucas informações já obtidas declarei meu infortúnio que se daria ao perceber que eu não saberia sequer por onde começar e que eu não sabia ao certo para onde ele estaria indo. Encontrei um catálogo telefônico na rodoviária e procurei por todos os Erasmos da cidade. Dos cinco listados nenhum era ele. Minha busca se daria de forma exasperada agora. Pensei em pegar o primeiro ônibus que viesse e ir a alguns pontos referenciais do itinerário que me foi informado, mas não me parecia uma idéia sã e nem de longe sensata. Quase desisti da idéia, me dirigi a padaria mais próxima e fui me alimentar. A cidade tinha um delicioso refrigerante com nome indígena e durante meu lanche me veio a idéia de verificar o que havia na pasta. Além de dezenas de desenhos que já tinha visto havia também alguns poemas com uma marcante e perceptível influencia simbolista. Fiquei fascinado com alguns deles e inclusive entremeio aos papéis encontrei o cartão de visitas da escola de desenho onde o senhor estava matriculado e de imediato soube que eu o encontraria no local.
Antes que eu fosse até lá resolvi me hospedar em um dos hotéis que cercavam a rodoviária. Curiosamente todos tinham letreiros luminosos e seus aspectos deploráveis me remetiam a motéis baratos de Los Angeles. Não que eu já tivesse ido para L.A., mas o cinema os retrata bem assim. Quase todos eles tinham nomes de mulheres o que engrandecia ainda mais o iminente estereotipo de espelunca. Escolhi o hotel com a fachada menos velha e com o nome feminino menos grosseiro e me hospedei naquela mesma tarde nublada. Minha primeira exigência no Hotel Lucíola foi que me colocassem em um quarto com muitas janelas e sem ar condicionado. A segunda logo foi que me emprestassem o catálogo telefônico. Obviamente o deles estava desatualizado e faltando diversas páginas toscamente arrancadas, mas felizmente na minha consulta percebi que a escola de desenho ficava a poucas quadras dali e que seria muito fácil encontra-la. Decidi-me por ir até lá na manhã seguinte para a devolução dos desenhos. Sem me esquecer é claro, que eu me encontrava na cidade para escrever sobre as calamidades que estavam acontecendo nas reformas do transito e sobre o confuso e desrespeitoso tráfego. Deixei minha mala em cima da velha mesa que havia no flat. Fora isso os únicos móveis que haviam por ali eram a cama e a estante improvisada para o televisor. Durante o resto da tarde fiz algumas anotações sobre os semáforos furados, calçadas sem acessibilidade para deficientes, ultrapassagens perigosas e limites de velocidades excedidas que eu já havia presenciado durante minhas poucas horas na cidade. Ao dormir deixei a TV ligada e uma das duas janelas entreabertas. É natural que eu só consiga pegar no sono com alguma coisa me deixando sempre alerta, não suporto silêncios absolutos.
Na manhã seguinte tomei café na mesma padaria e o saboroso pão de queijo era ainda melhor recém saído do forno. Dessa vez deixei o refrigerante local de lado e me deliciei com um café expresso com bastante açúcar. De lá mesmo me dirigi até a escola de desenhos. Pensei na possibilidade de alugar um carro, mas a urgência por encontrar Erasmo e os ares de interior daquela cidade me deixava instigado a caminhar e desbravar tudo o que fosse possível por ali. Sempre adorei essa sensação de reconhecer território. Quatro quarteirões depois e lá estava eu de frente a escola de desenho, que por sua vez era um duplex azulado e sem dúvida era mais bem tratada do que a rodoviária, a lagoa e claro, todos os hotéis sujos que havia me deparado ontem. Para minha surpresa ou mesmo sorte o próprio senhor Erasmo já se encontrava na recepção conversando veemente com a secretaria. Sua leve expressão de desolação deu lugar a um largo sorriso ao me ver e ele logo me perguntou se a nossa conversa havia me deixado interessado nas aulas de desenho. Respondi que não, mas logo em seguida voltei atrás e disse que sim e que até tinha trago uns desenhos meus para mostrar na escola para ver se eu mostrava alguma vocação. Outro sorriso se abriu e o senhor Erasmo mal reparou que o que eu segurava era sua própria pasta de desenhos. Ao notar que se tratava de seus desenhos ficou um pouco surpreso e frustrado e me agradeceu dizendo que ele tinha o estranho hábito de fingir que esquecia seus desenhos para presentear pessoas especiais que conhecesse por aí. Especialmente turistas recém-chegados. Disse que fez isso durante sua vida toda e que durante todo esse tempo eu havia sido a primeira pessoa que o procurou para devolvê-los. Fiquei extasiado com aquela história e perguntei se ele não se preocupava em perder todas as artes e poemas. Ele me respondeu astutamente que não possuía mais parentes e nem herdeiros para serem presenteados e que se livrando de seu legado se via sempre obrigado a recomeçar e produzir cada vez mais e com isso iria sempre se aperfeiçoar. Senti-me comovido com aquela lição e o abracei vigorosamente. Ele notou as lágrimas que estavam se formando em meus olhos e disse para que eu fosse embora e que levasse tudo comigo. Ele insistia por isso. Além de tudo, ressaltou ainda a importância de não se apegar muito a coisas materiais e de sempre aproveitar cada situação como uma maneira de se engrandecer como pessoa. Agradeci por tudo e sai da escola sem olhar para trás. Que se dane esse trânsito patético. Um grande artigo ou crônica sobre um artista itinerante estava prestes a ser redigido por mim!