quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sonho Oriental - Caio Machado

Para Mariana Takagui e Nádia Lúcia

O corte era imenso e profundo, abrangendo a região entre as axilas e a cintura. Se fosse um pouco mais estreito se assemelharia ao Z que o Zorro deixa em suas vítimas, mas nem de longe o anti-herói conseguiria um feito tão preciso daquela maneira. A vítima era uma mulher de aproximadamente trinta e cinco anos, pesando sessenta e oito quilos, de feições indígenas e que trabalhava como atendente em uma biblioteca da universidade federal da cidade. Não possuía antecedentes criminais, levava uma vida normal e tranqüila em um casamento que já durava quase seis anos. Ainda não tinha filhos e planejava conhecer a Bélgica no próximo semestre. Seu marido era um cozinheiro muito renomado e respeitado. Um homem com uma estatura alta e deveria estar, senão obeso, com sobrepeso. Encontrava-se aflito em suas lágrimas e repetia incansavelmente sobre as tão sonhadas férias na Bélgica, que por sinal nunca mais ocorreriam. O corpo foi encontrado por ele ao chegar a sua casa após um árduo expediente. O corpo dela estava estirado no sofá, curiosamente deveria estar mais ensangüentado e aos seus pés se encontrava a edição da revista Caras daquela semana. O legista não conseguiu identificar que tipo de arma ou objeto fez o corte em seu abdome, que por sua vez seria algo extremamente cortante já que até os ossos da costela também foram serrados. Descartaram a possibilidade do uso de um bisturi ou qualquer objeto cortante de origem médica. As devidas investigações começaram, mas era visível que o caso seria arquivado pois não haviam mais suspeitos além de seu próprio marido.
Não bastaram três dias para que encontrassem na saída sul da cidade, outra vítima com o mesmo tipo de corte e tamanha fatalidade. O infeliz dessa vez era um rapaz de vinte e dois anos que residia na cidade a estudos e que entregava sanduíches para uma lanchonete nos finais de semana. Alias o assassinato aconteceu durante seu expediente, após o rapaz ser chamado para uma entrega, que de maneira extremamente amadora não foi anotada pela secretaria da lanchonete, sendo apenas repassada verbalmente. A moça certamente seria demitida e a lanchonete também sofreria uma visita da vigilância sanitária que provavelmente fecharia o estabelecimento por tamanho descaso e falta de higiene. O lugar estava entregue as moscas, mas mesmo assim mantinha uma boa clientela e após vários interrogatórios ninguém encontrou nenhuma pista ou prova contra o estudante de Artes Cênicas que ainda mal tinha feito amizades na cidade. A secretaria foi tida como possível cúmplice, mas novamente pela falta de pistas o inspetor da polícia se via obrigado a esperar por um próximo assassinato, já que não conseguia se encontrar relações entre os dois assassinatos e tampouco algum fundamento para eles.
Nas duas semanas seguintes nada ocorreu e a polícia já se via obrigada a engavetar os dois assassinatos, uma vez em que não ocorriam mais avanços nas investigações e que o triste fato de os dois crimes não possuírem testemunhas só empacava todo o processo. A ansiedade dos investigadores só foi cessada após o único jornaleiro daquela pequena cidade, ser encontrado assassinado numa fria manhã e que de maneira bem grotesca o orvalho tenha coagulado seu sangue sobre o corte criando umas bolhas de sangue extremamente repugnantes. Dessa vez bem mais preciso do que antes. O assassino era tão profissional que nunca deixava impressões digitais ou pegadas e parecia que as vítimas nem se dariam conta de suas iminentes mortes. Assim como as vítimas anteriores o jornaleiro também levava uma vida tranqüila de viúvo e mantinha a banda de revistas no Parque Central só para dar uma engordada financeira na sua aposentadoria e para ajudar no financiamento de sua ONG a favor de pássaros silvestres em extinção. Já não dava mais para entender se o assassino serial fazia isso de maneira pessoal ou de maneira aleatória, pois nunca existia uma correlação entre os fatos e os legistas continuavam sem entender a origem dos cortes letais.
Um fato curioso se deu um dia depois, quando um rapaz foi contratado para afixar um cartaz de outdoor na Praça dos Coronéis. Possivelmente o mesmo assassino das vítimas anteriores tentou açoitá-lo com a misteriosa faca, mas errou porque o rapaz percebeu a presença do assassino no outdoor e se jogou da escada se esquivando do golpe letal. O assassino frustrado e desesperado saltou do outdoor e pôs-se a correr de maneira lenta e desengonçada. O rapaz o perseguiu, mas a dor nas costas causada pelo tombo o fez delirar de dor e ele desistiu de alcançá-lo. Após registrar a queixa do crime o rapaz foi encaminhado para a clínica geral e infelizmente acabou com uma costela quebrada. Pelo menos ele estava vivo e o ocorrido serviu para que uma descrição detalhada do assassino fosse feita e o detetive já interado do assunto não tinha mais dúvidas de quem seria o assassino.
Quatro policiais armados acompanhavam o detetive e ao chegarem à casa do cozinheiro tiveram o desprazer de encontrarem o próprio degolado na cama onde ele dormia com sua falecida esposa. Em sua mão esquerda havia uma carta de despedida e na mão direita estava a estranha faca que por sinal quase arrancara sua cabeça. Para a surpresa de todos não passava de uma faca japonesa Deba Botyo que havia chegado para sua esposa junto com a coleção Sonho Oriental da Revista Caras no dia do seu assassinato. E se ainda associarmos o jornaleiro e o rapaz que fixava um anúncio da mesma revista no outdoor entenderíamos que o cozinheiro não morria de amores pela revista. Tamanha foi a sorte do rapaz que afixava o anúncio da Caras, pois o mesmo não havia tido conhecimento da morte do jornaleiro e não faria mais sentido divulgar a revista, já que não haveria mais outra banca de revistas para vender a revista na cidade. Mas onde é que a esposa do cozinheiro e o entregador de sanduíches entrariam nessa história? A carta de despedida esclarecia tudo. A primeira pessoa que o estudante conheceu foi a mulher do cozinheiro, que de maneira extremamente simpática o orientou para que conseguisse chegar ao prédio de seu curso na faculdade. A partir desse dia o contato dos dois passou a ser freqüente e logo se constatou um affair entre os dois. O cozinheiro notou certa distância de sua esposa e após segui-la descobriu o ocorrido. Enciumado acabou liquidando-a e como a faca japonesa escolhida como arma por puro acaso se tornou tão eficaz e irreconhecível resolveu matar o entregador também a usando. Seu único descuido foi tentar limpar as possíveis pistas assassinando a todos que divulgavam a revista pela cidade. Acabou custando-lhe a própria vida, mas rendeu um artigo policial nunca publicado antes em uma edição da Revista Caras e o encerramento e suspensão da coleção Sonho Oriental.