quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Os Saqueadores de Valas Comuns - Caio Machado

Para Moniza Borges

Indigentes, assassinos em vida, esquecidos ou mesmo abandonados por famílias que sequer ousaram reclamar seus corpos. Restos mortais emaranhados de terra, numa iminente escavação feita com bastante escárnio e descaso. Homúnculos agora frios e moribundos que jazeriam em esquecimento para sempre. Por que agora resolveriam desrespeita-los e saqueá-los? Ou mesmo por que não considerar essa forma de “vandalismo” como uma maneira de punição pela vida imprópria que eles levaram um dia? Desenterrados de maneira tosca e urgente, várias valas comuns estavam sendo violadas e saqueadas semanalmente naquele desolado cemitério e nenhum coveiro, funcionário ou entidade responsável do local conseguia explicar tamanha irracionalidade. Décadas e gerações mesmo que desconhecidas, sofrendo uma severa desconsideração. A ausência de lápides e caixões somados a rasa profundidade daquelas grosseiras covas ajudariam a facilitar o atentado à paz daqueles corpos agora totalmente desmantelados, como se ainda já não bastassem estarem todos desalmados. Não que algum dia eles tivessem tido paz uma vez em vida, mas o desrespeito por aqueles vis cadáveres começava a crescer. O maior agravante daquela questão se dava por ninguém se preocupar com todos aqueles desconhecidos, porque obviamente não haveria a quem todos aqueles desconhecidos recorrerem, mas o conflito não poderia passar em branco já que ele começava a incomodar a outra parte do cemitério que por sua vez era diariamente visitado e agora tinha suas vias subterrâneas sangrando devido a essa bizarra depredação.
Famílias mais prestigiadas, honradas ou mesmo mais freqüentadoras do insalubre parque de jazigos resolveram investigar por si próprias o que estava causando todo esse tumulto mórbido. Pais, irmãos e até primos distantes se puseram de guarda em turnos diurnos por todo o cemitério. O tumulto foi tanto que ao passo dos primeiros dias de vigília, os saques logo pararam de ocorrer de forma súbita e silenciosa, de maneira que nada foi descoberto, ocasionando na desistência das mesmas pessoas que iniciaram as inquirições. Fato esse que não evitou que em poucos meses mais valas voltassem a ser violadas e que dessa vez as sobras das ossadas saqueadas fossem espalhadas por todo o local, com isso um odor visceral putrefato passou a preencher todo aquele parque de almas perdidas, que em sua maioria das vezes é inodoro, tirando claro, o odor das flores deixadas diariamente nos túmulos e todo o aroma bucólico do extenso e melancólico gramado do cemitério. Não tardou que medidas radicais fossem novamente tomadas e agora as famílias alheias mesmo assustadas, se organizaram para que pernoitassem no local. Dessa vez turnos mais longos e discretos foram necessários para que depois de dois meses de zelo a matilha faminta de cães retornasse de madrugada ao local e que fossem enfim descobertos. As famílias desconformadas não acreditaram ao ver que não passavam apenas de cães decadentes, que de uma maneira um tanto quanto inusitada estavam apenas buscando uma maneira de sobreviver. A fome agora latejava no estomago daqueles cães que antes evitavam o local devido a toda aquela agitação e mesmo agora com aquela guarda armada os mesmos não se privaram de se revelarem e se postarem a cavar mais uma das diversas covas espalhadas. Como se as almas daqueles vis cadáveres estivessem agora apossadas dos corpos dos seus próprios violadores. Dezenas de caninos imundos e esqueléticos, submetidos a roerem ossos humanos em busca de uma sustentação alimentar, evitando que se juntem ao estado atual de suas refeições.