terça-feira, 4 de novembro de 2014

Jacques Bonhomme - Henrique Donancio

A capital era uma oportunidade...

Mudar-me para lá é uma ideia que me ocorreu quando já não via possibilidades de prosseguir. Julia estava doente e os custos médicos eram exorbitantes. Era terrível a ideia de todos os dias ter que pensar o que comer e o que beber, visando apenas consumir o mínimo possível, não que alguma vez fossemos providos de tudo mas é que não havia culpa em comprar tomates em qualquer época.

A capital era a solução, já não era um garoto, me tornara um pai solteiro com responsabilidades. Morar no interior sempre foi o desejo de Luísa e já não há motivos para permanecer com tão poucas oportunidades... Ao fim da faculdade tomamos a decisão visando apenas uma vida mais tranquila.

De fato numa cidade menor a vida é mais calma, mais lenta. Se ganha menos mas anda-se menos, come-se mais, descansa-se mais e se diverte menos.

Júlia começaria a tratar-se do câncer na Santa Casa da capital. Eu não suportaria sua distância mesmo sabendo que poderia ficar aos cuidados dos pais de Luísa. Eles inclusive me indicaram um hotel para que pudesse me hospedar durante os dias que por lá ficasse. Dizia o bilhete “Copa Hotel”, e o valor pago para sócios da cooperativa de crédito o qual o pai de Luísa era filiado. Obviamente não me queriam por perto ao me indicar um hotel mesmo tendo condições de me oferecer hospedagem, nossa relação nunca foi das melhores.

Tentei pesquisar informações dias antes da partida, mas o que encontrei navegando por páginas da internet foram as mesmas informações que o bilhete trazia: Número e endereço do estabelecimento. Ainda que com alguma sorte pois, em poucos dias haveria o mundial de seleções e tudo que se referia a palavra “Copa” remetia à competição.

Tomei nota do endereço e fui investigar sobre a localização do hotel. O pai de Luísa me disse que era perto da rodoviária e que de lá até o ponto de ônibus que me levaria até o hospital andava-se poucos metros. Busquei no mapa e de fato o velho safado tinha razão, e talvez não me quisesse tão mal, apenas longe.

A noite que antecedia a partida pus me a olhar os quadros, as flores já sem vida do inverno que Luísa plantara. Dizia gostar das “copo de leite” mais que as outras mas não sabia explicar bem o motivo. Confesso que as copo de leite me faziam bem, não que tivesse qualquer apego a espécie mas a sutileza em que decoravam o jardim remetiam a personalidade de quem as plantara, não era tão extravagantes como as rosas e nem tão formais quantos as margaridas.

Tudo naquela casa remetia a personalidade de Luísa, e agora olhando para estas paredes me dou conta que tão pouco de mim dei-lhe. 

Na capital...

Pela manhã fui visitar Júlia assim que cheguei a capital. Pelo corredor ouvi as vozes dos pais de Luísa e quando adentrei ao quarto, o mesmo silêncio constrangedor. Julia sorriu-me, quase que com todas as suas forças. Dei-lhe um beijo e os cumprimentei.

- Como foi de viagem? – Perguntou-me com o mesmo sotaque colono.

- Bem – prontamente o respondi.

- Vejo que ainda não se instalou na capital, é isso mesmo que deseja? Sabe que tenho condições de cuidar de minha neta muito bem. – Disse ao ver que trazia minha mala.

- Eu o agradeço por toda a ajuda, mas creio sinceramente que Júlia precise de mim.

- Você sabe que poderias ficar em nossa residência, mas é que estamos reformando o quarto de hóspedes para que você se acomode caso decida ficar. – Disse minha sogra.

A falsidade como eles me dizia aquilo fazia minhas veias dilatarem de uma fúria quase incontrolável, mas via Júlia e tudo era por ela, então me acalmava e jogava com eles.

- Eu sei de todo o esforço de vocês e os agradeço.

- Precisa de algum dinheiro? – Disse-me o velho como se fosse seu filho que aos trinta de vida ainda vivia de esmolas.

- Preciso ficar com minha filha e é só, se não se importam.

- Tudo bem, tudo bem. Contratamos enfermeiras que mais tarde irão vir busca-la, se precisar de qualquer coisa ligue nesse número. – E me deu um bilhete.  -Ah!, e não ande pelas bandas da rodoviária ao anoitecer, pegue um táxi.

Mais tarde, despedi-me de Júlia e parti em direção ao hotel. Peguei um ônibus até a rodoviária e de lá um táxi até o hotel. Sabia pelo mapa que estava a alguns metros, mas não quis arriscar perder-me ali.

- Para onde vai?

- Para o Copa Hotel, por favor.

- Copa Hotel? Copa Hotel...

- Sim, Copa Hotel, na rua Andradas, esquina com a Farroupilha.

- Ah sim! Mas lá não se chama Copa Hotel, pelo menos não era esse nome, a não ser que tenham mudado de nome ou de dono, é lá onde ficam os negrim.

A corrida me custou seis pila e notei que o senhor, apesar de simpático, não gostou de fazer uma corrida tão curta já que teria de voltar a fila para uma novo cliente. Paguei-lhe e saltei do carro.

Na rua frente ao hotel, alguns usuário de drogas perambulavam como almas penadas. Adentrei e uma mulher que parecia ter seus quarenta anos estava ao lado de outra que parecia ter seus vinte e cinco. A segunda me atendeu.

Já no quarto logo notei um aquecedor posto a parede, era inverno e as noites eram frias no sul. Além do aquecedor, duas camas, TV, armário e também um criado onde me livrei de tudo que trazia no bolso, estava exausto! Procurei por toalhas, e não haviam as deixado. Pensei em descer até a recepção e pedir-lhes um jogo, assim como a senha da internet sem fio.

Quando abri a porta, notei que haviam deixado um par de sapatos no corredor, ao lado da porta do meu quarto. O cheiro de suor pairava no ar. Desci até a recepção, a mesma mulher, agora sozinha desculpou-se e entregou-me duas toalhas, e também pediu para que deixasse a chave ao sair se possível, para que arrumassem o quarto. Devo ter lhe olhado de maneira desconfiada, já que em seguida talhou alguma explicação, apenas assenti dessa vez.

Já no corredor, voltei a olhar os sapatos, e também notei que haviam um banheiro no seu final, que parecia compartilhado. Havia uma placa também que dizia: “Proibido andar sem camisa ou de toalha”. Bem longe, vozes graves e assertivas falavam em francês, parecia discussão, mas ao me aproximar pude perceber que não.

Duas voltas cerraram a porta. Conectei-me a internet e Charles, um amigo havia mandado uma mensagem:

 Olá meu velho! Espero que tenha feito uma boa viagem... tenho duas boas notícias. A primeira é que encontrei locadores para sua residência e a segunda daí advém. Quando contei-lhes sobre sua mudança me passaram um contato que talvez lhe interessa. Conhecem o editor do Jornal Alerta Capital, parece ser um sobrinho deles e disseram para que você o procurasse. Um beijo a Júlia e boa sorte meu velho.
Charles.”

As coisas pareciam começar a caminhar... Alugando a casa poderia me instalar, e se ainda surgisse um emprego estaria tudo mais que perfeito! E que grande dia hoje se mostra!

Liguei o chuveiro, parecia queimado. Então desliguei-o e liberei a água e estava ainda mais gelada, então voltei a chave a apontar para o inverno e novamente liberei água. Um pouco mais ameno, mas ainda gelada. Então voltei algumas voltas para que saísse pouca água mas um pouco mais quente. Era isso... ainda gelada, então saí do banheiro, liguei o aquecedor no máximo, olhei algumas páginas na internet enquanto o calor tomava o quarto, voltei, ensaboei a esponja e joguei-lhe um pouco d’água, e membro a membro fui me lavando até que tomado de espuma me joguei debaixo a água, um “banho de gato”.

Era quarta e o Palmeiras jogava, e nenhuma cansaço superava jogos do Palmeiras. Luísa que um dia se afirmou gremista, ao passar dos anos acabou cedendo e passou a fazer-me companhia, e creio eu que o meu fanatismo lhe mostrou o que é torcer para um time, e como uma criança que gosta de ver os adultos vibrarem com seus times de coração tomou o Palmeiras um pouco pra si.

As vozes falando francês vez ou outra passavam pelo corredor durante o jogo. Já no segundo tempo minhas pálpebras teimavam em descer e me encontrava embriagado pelo cansaço. Desliguei a TV e dormi. No dia seguinte trataria de ver um emprego novo.

Durante a noite me acordei. Olhei o relógio do celular que marcava pouco mais de 3 horas do meu segundo dia na capital. As vozes em francês ainda ecoavam, em menor número e vez ou outra passando por minha porta. Pouco depois uma se aproximou e abriu o que pareceu ser a porta do quarto ao lado, talvez o dono dos sapatos. Ouvia também uma porta ranger, um chuveiro ligar e pouco depois desligar e a porta ranger novamente. Fiz desapegar-me da curiosidade para que pudesse dormir novamente, afinal teria de acordar no meu melhor.

Segundo dia na capital...

O hotel não servia café da manhã, então pensei em acordar cedo e pegar o lanche que o hospital servia aos acompanhantes de leito. Desci as escadas e entreguei a chave agora ao que parecia o dono do hotel. Era como imaginava Tarantino dez ou vinte anos mais velho.

Julia estava exausta quando cheguei, e como no dia anterior parecia usar o resto de suas forças para um sorriso. A quimioterapia parecia tirar-lhe um pouco mais de vida a cada sessão. Sentia-me destroçado ao vê-la, mas não poderia deixar pensar que sofria, tinha de lhe devolver um pouco de sua alegria. Retirei da pasta que trazia comigo alguns desenhos que havia feito durante a viagem, ela e Luísa tinham como atividade desenhar e pintar algumas coisas. Dei-lhe algumas folhas em branco e pedi que fizesse alguns desenhos para mim.

Pelo correio eletrônico veio a confirmação do jornal que me receberiam para uma entrevista naquela tarde. As dezessete horas, tal como um inglês vizinho ao Big Bang estava lá eu, posto a esperar o editor chefe que faria a entrevista. Creio que tenha surpreendido a mim e aos outros dois candidatos ao fazer uma entrevista coletiva. Nos propôs um desafio: que escrevêssemos um artigo para a semana seguinte e que seria publicado, o melhor autor seria contratado. O tema era livre, mas deixou entender que o jornal era um tanto comprometido com matérias investigativas, denúncias e escândalos de todos os tipos. De certo tinha um cunho político esquerdista. Ao fim, pediu que mantivéssemos comunicação sobre qualquer progresso.

Na volta para o hotel, decidi que a melhor logística era de fato pegar um ônibus até a rodoviária e de lá um táxi até o hotel. As redondezas de onde me hospedara eram fatalmente hostis e não me arriscaria até conhecer um pouco mais os caminhos que tinha de tomar para chegar seguro. Também aproveitaria para jantar na rodoviária, pois dificilmente haveria algum estabelecimento aberto com tantos usuários de drogas perambulando por lá.

- Para onde? – perguntou o taxista.

- Copa hotel, na rua Andradas.

Pô meu, vai a pé cara é logo ali.

- Desculpe, mas não conheço a cidade. – Nesse momento tive que me fazer de desentendido, sabia que era arriscado a caminhada por aqueles poucos metros.

Cara, é logo ali, só atravesse a rua e tu já  lá.

O fiscal de táxis se aproximou quando percebeu que o taxista hesitava e eu já abria a porta para tentar outro.

- O que está acontecendo ? – perguntou.

- Ele quer ir até o Copa, to dizendo para o cara que  de ir a pé.

- Tu quer ir de carro? – Percebendo que aquilo poderia se estender.

- Preferiria, não conheço a cidade – respondi.

- Se ele quer ir de carro, você leva ele de carro.

- Tu quer que eu te leve eu levo meu, mas  dizendo que  de pé.

-Gostaria.

- Leve ele então meu, se ele quer ir de carro você leva.

Senti um mal estar quando arrancou bruscamente. Havia-lhe tirado da enorme fila a espera por um cliente por trocados.

- Tu não deve conhecer a cidade mesmo.

- Por que me diz isso?

- Se tu saí ali a noite meu, não sai andando.

No corredor do hotel, veio em minha direção um negro enrolado numa toalha. Eu, de fronte a placa que proibia tal atitude, fiquei sem reação. Passou rápido e confiante, como fosse dono daqueles poucos metros que me levavam até o meu quarto. Fitou-me despretensiosamente enquanto vozes pareciam outra vez discutir em francês. De certo haitianos, os negrim que o taxista havia mencionado, e pela placa que avisava sobre andar trajando toalha talvez viessem muito deles se hospedarem aqui. Ao lado de minha porta, outra vez o sapato postado ao lado. Desta vez ri com o pensamento que me ocorreu: “Um haitiano com hábitos nipônicos”.

Enquanto aquecia o quarto para que pudesse tomar um banho, pude notar que se tratava de vários alojados em um mesmo quarto. Pela quantidade de tons distintos de vozes, talvez quatro, cinco até seis dividindo o mesmo espaço. Chegavam e saiam a todo instante. Pouco mais tarde o chuveiro e a porta começaram o seu compassado ritual. Aquilo aguçava minha curiosidade... O que faziam na capital afinal? Os motivos que levava-os a ficar no Copa Hotel pude imaginar... Começava a me ocorrer a ideia a matéria que me daria um emprego estaria naquelas vozes que passavam pelo corredor.

Tomei o laptop ao colo antes que aquela curiosidade fosse sanada por uma descoberta insossa. Escrevi bem aquela noite, como um romântico escreveria para seu novo amor, pus em linhas mesmo que digitais tudo que parecia ser no Copa Hotel. Nessas horas a saudade de Luísa aguçava, uma sensação de vazio me consumia, não havia ninguém com quem compartilhar minhas pequenas vitórias, quem consolasse minhas grandes derrotas. A vida dos outros parecia tão mais fácil...

O hotel de todo não era ruim. As roupas de cama e toalhas cheiravam a amaciante, suponho bem concentrado, pois aquele mesmo cheiro havia me acompanhado durante todo o dia. Pensei que tive sorte em não estar acompanhado, as colchas mesmo com o aquecedor na máxima temperatura não me aqueciam do inverno do sul. A TV me intrigara naquela noite, não era uma TV a cabo, parecia ser uma TV via internet, com metade dos canais religiosos e a outra vendendo animais. Também havia outro que penso ter toda sua programação voltada a filmografia do Frota. Confesso que maliciosamente me perguntei se nos outros quartos haviam TVs.

Pela manhã desci as escadas lentamente, com a esperança de encontrar um daqueles haitianos. Até a recepção, somente o cheiro de suor que pairava pelos corredores. O gerente sósia do Tarantino me ofereceu as chaves, e forçando um diálogo perguntei do clima da capital. Parecia um homem tranquilo, deixei que me especulasse um pouco até lhe perguntar sobre os haitianos. 

- São todos haitianos aqueles?

- Sim – respondeu gauderiamente. Sabia o que tinha de fazer para falar mais...

-  O táxi que me trouxe até aqui os mencionou.

- Hmmm, é.... são boa gente, não te preocupes.

- O que fazem aqui?

- Trabalham nas fábricas aí, vez ou outra são pegos e tem de ajeitar a vida.

- São ilegais?

- É, vem atravessando as fronteiras aí da vizinhança – decidi então que era melhor parar com as perguntas já que começava a se irritar, despedi-me brevemente.

Quando tomava a rua, um deles passou por mim, parecia carregar um quadro. Esperei que tomasse um pouco de distância para que ninguém do hotel notasse que o seguia, então quando longe o bastante o abordei:

- Fala português?

Seus olhos se arregalaram, parou sua caminhada e ficou a me olhar esperando.

 Do you speaking English?

- Jacques, Jacques! – foi o que entendi do que falava e apontava para o hotel.

Parecia nervoso... Mas parou, parecia querer dizer que um tal Jacques sairia do hotel e foi o que aconteceu. Saiu do hotel um negro vestindo uma blusa três listras e boina, esperei até que se aproximasse:

- Jacques?

Vous?

- Sabe falar português?

- Um pouco, amigo – disse com seu sotaque.

- Me acompanham em um café? –  eles se olharam, falaram algo em francês, mas concordaram.

Sentamos no café da rodoviária que agora era meu preferido. O outro haitiano se chamava Olivier. Era natural que se mostrassem desconfiados, e assim se portavam. Nos primeiros minutos senti que se fosse ao banheiro, ao retornar não os teria ali sentados. Jacques estava a mais tempo no Brasil, quatro anos me disse, e Oliver a seis dias, contou que vivia de trabalho honesto. Olivier parecia mais um dos casos de “turistas” que vieram para Copa, e Jacques parecia determinado a me fazer pensar que o era.

Creio eu que nunca antes estivesse a conversar com um haitiano ou um tipo próximo. Pela voz ríspida, alguém a lhes ouvir pensariam que eram rudes, suas vozes eram incisivas e determinadas em dizer o que diziam, mas sorriam nas vezes que pareceram esquecer da situação em que estavam. Certamente pensaram que era ou algo do governo ou alguém a lhe querer vantagens, e isso me incomodava, pouco quis ficar para que ganhasse a sua confiança.

Paguei-lhes o café e disse que também me hospedara no Copa Hotel, que se precisassem de algo poderiam contar com minha ajuda. Pareceram mais aliviados em poder sair dali.

No hospital os pais de Luísa já estavam a postos, ocupando seu imenso tempo ocioso com Julia.

- Olha quem chegou Julia! É o papai quem veio te visitar minha pequena!

- Bom dia. – disse-lhes.

Abracei Julia, que me entregou os desenhos que havia feito. Era nossa família, eu junto a Luísa e ela e um cachorro salsicha, rodeados de um jardim de copos de leite.

- E esse cachorro filha?

- É o Toby, vovô já encomendou pra mim! – um dos hábitos do velho era comprar as pessoas.

- E tu meu genro, já se arranjasse?

- Ainda falta um pouco meu sogro, mas creio que logo poderei me estabelecer e estar com Julia.

- Que ótima notícia meu querido, não achei que resolvesse suas questões em tão pouco! E onde almejas um trabalho? – perguntou minha sogra, com sua irritante voz, com seu irritante desdém.

- Há muitas latinhas na capital minha sogra – consegui interromper aquela falsa empolgação.

O meu sogro olhava furioso, decerto dariam um jeito de estragar qualquer oportunidade que tivesse. Pouco depois saiu do quarto sem nada dizer e em seguida minha sogra.

Fiquei até a hora do almoço com Júlia, que me contava seus planos para quando saísse do quarto de hospital. Contou-me sobre Toby também, e como seria sua casinha, e quais brinquedos teria e os horários e lugares que brincaria com ele. Ela sempre quis ter cachorros, mas Luísa era irredutível sobre o caso, e se defendia dizendo que todo serviço ficaria a suas custas, e que toda casa se infestaria de cheiro de cão, e que estragariam seu jardim de flores... Por minha vontade, Júlia já teria seu Toby.

Ao anoitecer, voltei ao hotel e escrevi um pouco mais. Tentei distanciar tudo que relatava para longe do Copa Hotel, afinal, logo alguns daqueles haitianos se tornariam ilegais no país. Sentia falta de uma janela que desse para rua, olhar para a cidade nos intervalos de inspiração na companhia de uma boa cerveja, ou de duas taças servidas de um bom vinho.

Ao fim, antes de deitar-me, escrevi ao redator contando-lhe sobre minha descoberta e que esperava descobrir que tipo de emprego aqueles haitianos estavam empenhados antes de concluir a matéria.

Quarto dia na Capital...

Pela manhã, nos primeiros raios de sol pus me a espreita a escutar qualquer voz que passasse pelo corredor. Através da porta vi que um deles acabara de chegar, e como a sombra demorou algum tempo para deixar a minha porta e o som tão próximo, suponho que fosse o dono dos sapatos chegando, e de certo trabalhava durante a madrugada, pois os sapatos sempre estavam lá durante o dia. Arrumei algumas coisas dentro da mochila e pensei ser melhor esperar Jacques e Olivier, pois tomariam o caminho da estação de ônibus da rodoviária e assim não despertaria nenhuma desconfiança.

O caminho do hotel até a rodoviária era desolador, alguns viciados dormiam enquanto todos tomavam seus caminhos. Os funcionários da limpeza urbana varriam bem próximos a eles, como se rodeassem um móvel qualquer da sala de estar.

Jacques e Olivier enfim apareceram, embarcaram na linha Distrito Industrial e eu também. Fiquei na parte dianteira do ônibus, e não atravessei a catraca, ocupei um assento preferencial por ali já que o automóvel não estava tão ocupado e assim evitar que me reconhecesse.

Paramos no Distrito Industrial, como já esperava. Pedi informações ao cobrador a fim de ganhar tempo até que desembarcassem, segui-os com os olhos. Adentraram numa fábrica de reciclagem. Alguns carroceiros faziam uma pequena fila com seus carros carregados de papelão, latas e embalagens plásticas do lado de fora, alguns até crianças. Uma mão toca meu ombro.

- O que fazes aqui amigo, podemos lhe ajudar? – Disse um homem calvo, com bigodes acompanhado de Jacques.

- Me desculpe, estava de passagem, trabalho para um jornal.

- Jornal? Tu  de brincadeira comigo Jacques?! – Disse se voltando para o negro ao seu lado.

Nom sabia, eu nom sabia que era jornal.

Porra cara, está querendo me foder? Porra cara!

Jacques estava nervoso, não de raiva, de nervosismo, parecia temer algo e gesticulava com as mãos, pedia que o outro homem se acalmasse e transpirava mesmo com todo frio que fazia aquela manhã.

Eu não sabia o que dizer, mas imaginava o que passava por suas mentes exaltadas. Aquele homem decerto empregava vários imigrantes naquela fábrica, na sua maioria ilegais, explorando-os acima de qualquer lei e Jacques, o pobre temia pelo emprego dos seus companheiros.

- Jacques fala, Jacques pede para falar.

- Falar... é bom que fale ou nunca lhe vi antes seu senegalês duma figa!

Jacques pediu para que conversássemos, fomos até a esquina. O sol tocava a sua pele negra, iluminava seus olhos amarelos afligidos de uma preocupação, suas mãos ainda suavam, sua testa se desdobrava em rugas de aflição...

- Jacques tem esposa em Haiti, também filha doente. Também amigos de Jacques da fábrica tem família em Haiti.

Sua pupila se debatia, parecia faltar espaço, queria fugir do olho que a conservava...

- Trabalha em fábrica pra trazer família pra junto, para morar aqui com Jacques.

Me sentia culpado, culpado de uma culpa que ainda não entendia, mas o fato da filha... Jacques também tinha uma filha e doente, assim como Júlia, e assim como eu lutava para tê-la por perto... Me perdi, me sentia enfermo, o sol que tão sutilmente tocava os olhos daquele homem me dava náuseas agora.

- Entendo Jacques, não se preocupe - e saí, tão rápido que em pouco os gritos do calvo da fábrica que pedia que voltasse em meio a alguns palavrões se emudeceram aos meus ouvidos.

Fui ao hospital ver Júlia. Teu sorriso, teu cheiro tão doce e voz tão macia me fizeram recuperar os sentidos. Minha pequena, minha pobre pequena! Tão poucas chances terá não encontrar um doador. Me viu chorar pela primeira vez... 

Penso que será uma excelente matéria, estamos ansiosos para publicá-la no jornal.
Ressalto que o texto deverá ser entregue o mais breve.

Att,

Eduardo, Editor Chefe Alerta Capital

Ao anoitecer dei fim a minha estadia no Copa Hotel e então tomei um táxi.

Cogitei que me esperassem, mas creio que suas esperanças eram poucas, talvez aguardassem uma visita para me oferecer estadia, mas certamente não que bateria a sua porta pedindo abrigo, ainda mais com um emprego em vista. Meu sogro sorria e não conseguia disfarçar, de certo não por minha resignação, mas pelo prazer de me ter em sua casa, e pedindo, assim como sua arrogância entendia que deveria ser. 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Dove - Caio Machado

Mauricinho caminhava pelo bairro após regressar da padaria e se deparou com um gatinho marrom claro miando sem parar. Largou a sacola de pão de queijo próxima ao meio fio e correu em direção ao bichano. O animalzinho não recuou e a carência fez com que ele logo se entregasse ao garoto. O filhotinho havia sido abandonado no bairro por um pai de família que mal conseguia tolerar a gata de sua filha, quando soube que ela daria a luz tratou logo de se livrar de suas crias. Por sorte, o até então amável garotinho Maurício, cruzou a vida do pobre felídeo. De tanto acaricia-lo o gato logo começou a ronronar e aquele tremor seguido de um ruído estranho, provocou risadas no garotinho. Sem pensar, ele largou os pães no caminho e saltitou até sua casa com o bichano.

César havia acabado de se divorciar. Havia ganhado a guarda de Mauricinho por unanimidade. Sua ex-namorada era completamente louca. Larissa foi pega duas vezes com lança-perfume em uma mesma balada. Tudo estaria bem se ela apenas estivesse consumindo, mas da primeira vez ela foi pega vendendo. Da segunda vez, ela estava quase ingerindo aquele líquido fornecido por um amigo farmacêutico. César entra na história por ter sido seu namorado no período em que cursavam Engenharia Aeronáutica. Mauricinho surge como resultado de tal conturbada relação. A mãe nunca trabalhou e os pais a abandonaram de vez após a gravidez. O resultado foi que ela não aceitou a dureza de ter que se sustentar e acabou se entregando a uma vida noturna regada de drogas e de tudo mais o que lhe era proposto.

O garoto já havia sofrido traumas demais para que César lhe proibisse de manter o gatinho em casa. A única admoestação que o garoto levou foi por ter deixado a sacola com os pães pelo caminho. César refez o trajeto, mas encontrou apenas um mendigo sujo dando cabo dos pães de queijo. Aquilo não o comoveu, mas pelo menos o fez lembrar que os sabonetes do banheiro estavam acabando. Voltou no mercadinho do qual seu filho havia retornado, comprou mais pães de queijo e uns quatro sabonetes Dove. Ao voltar para casa, observou Mauricinho enquanto ele alimentava o bichano com leite em um prato azul transparente. César reparou que na testa do gato havia uma pelagem escura com um desenho bem semelhante à pombinha da Dove. Perguntou se Mauricinho concordava em nomear o bichinho de Dove. Mauricinho estava tão feliz que sequer percebeu que acabará de batizar um gato com um termo que traduzido do inglês, significaria pomba.

Os dias passavam e Mauricinho se apegava cada vez mais ao gatinho Dove, e vice e versa. O animalzinho já respondia pelo nome e se mostrava extremamente esperto ao se tratar de respostas sonoras. Quando ouvia um latido, de longe já se postava numa posição de guarda e nenhum cão sequer se aproximava dele. O lado selvagem do felino falava sempre mais alto e certa vez, retrucou com arranhões as brincadeiras de mau gosto que Mauricinho fazia com ele. O garotinho de seis anos começava a enjoar de Dove. Quando ganhou um piano elétrico de seu pai sua desilusão pelo gato só cresceu. Por sorte o gato já se acostumara à vida doméstica e a ser alimentado em horários corretos diariamente. No fim das contas, Dove sempre dormia em cima das teclas do piano recém-tocado. O calorzinho que a energia elétrica deixava no instrumento, eletrizava sua pelagem.

César era fanático por futebol. Em período de fim de campeonato sempre abastecia a casa com fogos de artifício. Sempre advertiu que Mauricinho não brincasse com isso, mas sempre o deixava acender um pavio ou outro. Os primeiros estouros deixavam Dove bastante assustado. Do quinto foguete adiante, ele já não sentia mais medo, apesar de que sua sensibilidade auditiva já começava a se tornar bastante abalada. Mauricinho percebeu o comportamento estranho do bichano e por sabe se lá qual motivo, decidiu amarrar o rabo do gato em um dos foguetes. O gato não reagiu por acreditar que se tratava de um afago comum. O estrondo do foguete fez com que Dove se arremessasse contra uma das paredes do quintal e que tragicamente perdesse sua audição.

A situação era bastante infeliz. Um gato não é praticamente nada sem seus radares naturais. César ficou contrariadíssimo com a atitude negativa de seu filho. Entendia que aquilo se tratava de uma parvoíce infantil, porém sua ira fez com que ele comparasse a inconsequência de Mauricinho com o comportamento arredio de sua mãe. O garotinho passou dias sem proferir uma palavra sequer e quando Dove voltou do veterinário quase o sufocava de tanto o abraçar. A situação fez com que sua sensibilidade para as coisas simples da vida, aumentasse. A surdez do gato fez com ele passasse a valorizar sua audição. Dedicando-se aos estudos do piano conheceu a história de Ludwig Van Beethoven e sobre como, também de forma trágica, o alemão havia perdido sua audição.

Logo nos primeiros dias após o acidente Mauricinho percebeu que Dove conseguia responder ao chamado de seu nome. Não entendia bem como, acreditava que a vibração do ar pudesse ser o catalisador disso, mas ao dizer outras coisas o animal não respondia por igual. Os espasmos da criaturinha fora a pior sequela do incidente. Num certa quarta-feira, dia ao qual estava habituado a receber aulas particulares de piano, percebeu que o gato se dirigia ao seu professor sempre que ele mencionava o nome de Beethoven. Dove também se postava estranhamente sobre o corpo do piano quando ele tocava qualquer peça do compositor e de certa forma, aquilo deixava o felino em um estranho transe. Naquela noite, Mauricinho estava pensativo e repetia Beethoven diversas vezes em sua cama, quando de repente Dove saltou sobre sua cabeça. Mauricinho cuspiu alguns pelos e percebeu que o gato adormeceu ao seu lado.

No dia seguinte, logo ao acordar procurou por Dove e começou a repetir novamente o nome de Beethoven. O gato respondia roçando por suas pernas e saltando em seu colo. Não entendia mais o que acontecia e foi contar o curioso fato para seu pai. César proferiu Bee-tho-ven paulatinamente e separando suas silabas. Percebeu que Dove só respondia ao seu chamado nas últimas duas sílabas. Num súbito de raciocínio certificou-se também que o animal não lhe dava atenção se não estivesse olhando diretamente para seus lábios. Mauricinho e César chegaram juntos a conclusão de que Dove fazia leitura labial de tudo que estavam dizendo. A semelhança sonora entre Dove e Beethoven, e a maneira de como seus lábios moviam os fez acreditar que se renomeassem o gato para Beethoven, não seria de toda forma ruim. Ambos perderam a audição em um trágico e acidente e ambos possuíam bastante sensibilidade auditiva. Como numa sinfonia, pai e filho chamaram o gatinho simultaneamente de Beethoven. O gato confuso, não sabia a quem atender primeiro. Deu as costas, saltou em cima do piano elétrico e repousou nas teclas, bem ao lado da partitura de Sonata ao Luar.

Patos de Minas, 16 de abril de 2014.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Choque - Caio Machado

Tomava banho avidamente e vangloriava-se da última noitada que teve com Sofia. Segurava seu membro veemente e com a mão esquerda girou a torneira para desligar o chuveiro. Uma corrente elétrica atravessou seu corpo. O chuveiro não era aterrado e ele já não se lembrava. Sentiu um fio elétrico cortar sua barriga e percorrer toda sua região peniana. Soltou o pênis de súbito e quase escorregou no chão do banheiro.

Recuperou-se do susto e desligou o fluxo da água segurando a torneira com sua toalha. Enxugou-se desacertadamente e se vestiu com o corpo ainda úmido. Foi urinar e o membro flácido retorceu-se fazendo com que ele molhasse toda sua calça jeans. Já não sentia mais o pênis entre as pernas. Tateou-se desesperadamente e não conseguiu sentir nada além da pele que seus dedos tocavam. Trocou de calças e correu até a junta de saúde do quarteirão de baixo.

O urologista disse que a sensibilidade foi perdida pela descarga elétrica e que por sorte o canal urinário não havia sido deteriorado. O tratamento de reversão lhe custaria cerca de cinquenta mil reais, e apenas um de dois pacientes havia sobrevivido ao procedimento, considerado altamente arriscado. Ele não conseguiria pagar. Recomendou-lhe que tivesse paciência com a situação e até indicou um grupo de apoio da igreja protestante.

Recorreu à pornografia pesada por várias horas a fio. Assistiu aos vídeos caseiros feitos com suas colegas de trabalho em festas da firma. Tentou pornô gay, necrofilia, scat, tortura, zoofilia. Nada feito. Na farmácia cantou a atendente e nem isso o estimulou. Ingeriu uma cartela inteira de Viagra. Lembrou-se de sua primeira vez com sua prima caçula na fazenda. Nada funcionou.

Acendia um cigarro e o esmagava contra o cinzeiro. Não sentia mais vontade de fumar. Estava ciente de ter destruído a sua única razão de existir. Sentia-se um eunuco deprimido. Imaginava seu pênis sendo guilhotinado por um cortador de charutos enferrujado a todo o instante. Tentava dormir, mas não pregava os olhos. Enfiava a mão dentro do zíper e sentia novamente sua mão tateando aquele membro lânguido e gelado.

Ligou pra Sofia e aos prantos criou coragem para contar. Ela gargalhou bastante e entendeu aquilo como uma nova fantasia dele. Aos soluços ele só conseguia dizer para que ela viesse até sua casa. Ingeriu todo o resto da garrafa de conhaque e afundou-se no sofá. Aguardou de luzes apagadas e parecia para ele que cada segundo estava perdurando por vários anos.

Viu o corpo despido de Sofia e percebeu que uma enorme excitação preenchia todo seu corpo. Suava frio, pois a única parte essencialmente necessária estava intacta e estática. Apertou seus dedos contra as nádegas de Sofia e a puxou para perto de si. Nada aconteceu. Sofia abaixou-se pelo seu corpo e colocou o membro dele em sua boca. Insistiu muito até salivar e levantou-se da cama vestindo-se constrangidamente. Ele estava arruinado.

Ainda nu, enfiou o pênis dentro do aquário de seu peixinho betta. Esperava de verdade que fosse atacado e mordido. A criaturazinha azulada reduziu-se a esconder no fundo rochoso e falso do vidro cheio d’água fétida. Esmurrou o aquário espatifando-o e assistiu com desdém o pobre animalzinho se debater até morrer no imenso carpete da sala.

Acendeu o isqueiro embaixo de seu saco e viu as gotas de sangue pingar e sentiu o forte cheiro de pele queimada. O odor não lhe parecia tão ruim. Não havia mais nada a fazer, ele já não sentia absolutamente nada ao redor de sua virilha. Pensou em fazer um empréstimo. Pensou em se matar.

Atirou-se do terceiro andar do prédio de seus pais. Quebrou três costelas e não morreu. Regozijando-se conseguiu colocar a mão dentro de sua calça. Sentia novamente o sangue quente fluindo e percorrendo o interior de seu pênis. O choque em sua costela havia reanimado seu falo desfalecido. Desmaiou de dor e não se sabe ao certo se ele acordou.

Frutal, 04/05/2013

quinta-feira, 27 de março de 2014

Retrato - Henrique Donancio

De vô para neto.

     Otaviano sentou-se ao meu lado espiando o que fazia...

     Era um garoto curioso, tal como o pai, e igualmente tímido. Ficou a me fitar com seus olhos grandes e claros, pintados com um verde sujo de amarelo tais como os meus, escondidos entre a pele flácida que o tempo me trouxe. Porém suas mãos não escondiam a vontade de tocar no objeto que estava a manusear, os seus dedos se mexiam em movimentos sutis e sutilmente deixando a sua vontade transparecer. Em algo lembrava a mim, mas seus cabelos ruivos lhe deram o que de mais maravilhoso havia nesse mundo, tal como uma pintura pintada abstratamente era essa quebra cabeça de informações que compõe um indivíduo e o lastra as suas origens, e diz ao mundo filho de quem o é, seus olhos e cabelos o definiam bem.

     - O que você está fazendo vovô? – Perguntou-me curiosamente. Deixei-lhe pensando e não o respondi.

     Daí então engoliu um pouco de sua saliva e pôs sua cabeça frente ao objeto, ocultando-o de minhas vistas.

     - Filha, vai ver teu irmão e não o deixe incomodar seu avô – Disse a mãe.

     Até poderia lhe talhar alguma explicação, mas não seria suficiente compreensível e mais tarde teria de lhe fazer novamente, não daria nos seus dez anos de idade a importância devida a uma câmera fotográfica como aquela que estava em minhas mãos.

     “-Venha Otaviano, vai brincar com teus primos e não incomode mais o vovô”. Disse sua irmã, minha neta Bruna.

     Como era bela! E eu que achava que nunca colocaria os olhos em algo tão belo como minha filha, me surpreendo todos os natais com o seu crescimento e beleza. Os mesmos cabelos ruivos da mãe, e os olhos meus, mas diferentes dos de Otaviano, eram moldados na rígida delicadeza da outra metade do seu quebra-cabeça, encaixado perfeitamente, montando aquela figura que parecia tão decidida sobre si. Veio a ter comigo.

     - Tome, já não se faz uso aqui em casa. – Então Bruna me olhou com um olhar surpreendido.

     - Mas vovô, é tão importante essa máquina pra ti, porque se desfazer dela, suponho que não a tenha com tanto apego.

     De fato era uma máquina muito importante e realmente minha neta se cansaria logo após que sua empolgação cessasse. Era uma velha máquina de fotografias Polaroid que comprei ainda na adolescência, nada comparado ao que ela trazia no bolso, mas infinitamente mais material.

     - Seu velho avô ainda é de tempos onde se ouvia discos em vinis e fotografias eram tiradas por máquinas como esta minha filha, sei que o instantâneo não mais é ver a imagem assim que se aperta este botão, mas que todos a vejam, mas mesmo assim peço que a experimente.

     Ela pareceu assentir, visto que percebeu parecer indelicado de sua parte não o fazer.

     Por mais que relutasse era realmente difícil me desfazer de um objeto se não tivesse a certeza que minhas palavras eram apenas uma desculpa para que ela aceitasse meu presente, pois sempre que vinha me visitar notava sua curiosidade e em algumas ocasiões até pediu que a usasse.  Se havia um pouco de sinceridade neste meu presente, era que já não mais fazia uso a mim, e isso me acalmava.

     Levantei-me enquanto ela contemplava seu presente e me servi um pouco mais do peru e das uvas passas.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------

De pai para filho

     Todos os anos religiosamente voltávamos ao Rio Grande do Sul para passar o natal com meu velho pai. O clima serrano me agradava e as crianças sentiam-se felizes em estar com seus primos.

     Quando chegamos de volta a nossa casa, pude perceber a alegria de Bruna com o presente que ganhara do avô. Creio que o gosto por retratar o mundo tenha sido herdado de meu pai, passando por mim sem nenhum vestígio. Fotografamos durante todo o fim daquelas férias.

     Ainda na adolescência comprara a máquina como me contara um dia, e tal como Bruna fotografava tudo o que lhe marcasse de alguma forma, com certo critério, ele pois o salário era escasso e filmes naquela época custavam um bom valor, já ela por sua vez, pela dificuldade de encontrá-los.

     Meu velho pai trabalhou bastante até conquistá-la. Aos doze anos labutava na mercearia do bairro só para ter aquele objeto, o que não me admira, os tempos eram outros, as crianças eram crianças por menor  tempo e não que meus avós lhe dessem de menos, a questão é que ele queria mais.

     O fato é que com o passar dos anos, o gosto por aquilo virou vício e fotografar era parte de sua vida tal como conversar com os amigos, ir ao cinema e bailes, ou algo de mesma natureza, tanto que mais tarde foi ter com o dono do primeiro comércio especializado em fotografias na cidade, era então contratado como revelador de filmes.

     Por mais inusitadas fossem as histórias que me contara, era uma profissão divertida. As pessoas, na medida em que as máquinas foram ficando mais acessíveis, traziam-na mais e mais dentro de suas intimidades, e se viam constrangidas somente ali, na hora em que teriam de revelar, antes a um desconhecido.

     O meu velho pai acabou por conhecer um pouco da vida privada de cada habitante daquela cidade que possuísse uma câmera fotográfica. Sabia de um pouco o que cada um guardava, mas sempre ignorava ao tratar delas. A fotografia lhe rendeu tanto, que aos finais de semana, já não se dispunha a si, passando a frequentar parques e eventos da cidade, fotografando quem lhe pedisse uma foto. Todos passaram a lhe conhecer e creio que fora o primeiro fotografo profissional da cidade.

     Numa manhã de segunda-feira, foi que algumas fotos lhe surpreenderam. Naquela época, por vezes ás pessoas fotografavam e se esqueciam dos filmes até que um novo evento surgisse, então, levavam seus filmes usados para que lhe fossem revelados e adquiriam outros.

     Meu pai começou a revelar um bocado de fotos em que meu avós apareciam. De fato ele ficou muito surpreso com aquilo, ora pois, pensou consigo “como esse mundo é pequeno”. Mas as fotos mesmo naquelas circunstâncias deviam datar ao menos alguns oito anos pois, não se lembrava de ver seus pais saírem para bailes tais como as fotos revelavam, ou então, era muito novo a época, o que se justificava pela jovialidade de seus pais nas imagens. Ficou admirando cada foto nova que punha no varal, a beleza e a delicadeza de sua mãe, o vigor e a estima de seu pai enchiam-lhe os olhos.

     Sua curiosidade aguçou, tinha de conhecer o dono daquele filme e pediu para que lhe dissessem que viesse pegar as fotos de suas próprias mãos. Talvez fosse um velho amigo de sua família que voltara a cidade, ou algum parente que não conhecia, mas certamente era um daqueles presente nas fotografias.

     Ás dezesseis horas daquele dia, tal como combinado, adentrou ao estabelecimento um homem, com os mesmos olhos verdes que os seus, um caminhar cansado e assustado, mas não o reconheceu. Pediu das fotos, perguntou-se lhe tivessem dado salvação após tantos anos guardadas, meu pai o respondeu assertivamente e as lhe entregou num pacote, então perguntou quem era aquelas pessoas, mas o homem não quis lhe responder, pagou e lhe deu de costas.

     Mais tarde, já em casa, jogou cópias daquelas fotografias sobre a mesa, pois a princípio queria dar aos pais como presente, mas a sua curiosidade falava mais alto agora. De fato eram todos eles nas imagens, durante um baile de formatura, seus pais e seus tios com alguns outros amigos. Perguntou então porque se aquele senhor era seu tio lhe dera então as costas naquela tarde, o que havia acontecido afinal?

     Sua tia então respondeu: “É seu pai meu querido, e sua mãe morreu seis meses depois, no parto”.

............

     Bruna não se conteve ao fim da história... escapou-lhe do seus verdes olhos uma lágrima.