Mauricinho caminhava pelo bairro após regressar
da padaria e se deparou com um gatinho marrom claro miando sem parar. Largou a
sacola de pão de queijo próxima ao meio fio e correu em direção ao bichano. O
animalzinho não recuou e a carência fez com que ele logo se entregasse ao
garoto. O filhotinho havia sido abandonado no bairro por um pai de família que
mal conseguia tolerar a gata de sua filha, quando soube que ela daria a luz
tratou logo de se livrar de suas crias. Por sorte, o até então amável garotinho
Maurício, cruzou a vida do pobre felídeo. De tanto acaricia-lo o gato logo
começou a ronronar e aquele tremor seguido de um ruído estranho, provocou
risadas no garotinho. Sem pensar, ele largou os pães no caminho e saltitou até
sua casa com o bichano.
César havia acabado de se divorciar. Havia ganhado
a guarda de Mauricinho por unanimidade. Sua ex-namorada era completamente
louca. Larissa foi pega duas vezes com lança-perfume em uma mesma balada. Tudo
estaria bem se ela apenas estivesse consumindo, mas da primeira vez ela foi
pega vendendo. Da segunda vez, ela estava quase ingerindo aquele líquido fornecido
por um amigo farmacêutico. César entra na história por ter sido seu namorado no
período em que cursavam Engenharia Aeronáutica. Mauricinho surge como resultado
de tal conturbada relação. A mãe nunca trabalhou e os pais a abandonaram de vez
após a gravidez. O resultado foi que ela não aceitou a dureza de ter que se
sustentar e acabou se entregando a uma vida noturna regada de drogas e de tudo mais
o que lhe era proposto.
O garoto já havia sofrido traumas demais para
que César lhe proibisse de manter o gatinho em casa. A única admoestação que o
garoto levou foi por ter deixado a sacola com os pães pelo caminho. César refez
o trajeto, mas encontrou apenas um mendigo sujo dando cabo dos pães de queijo.
Aquilo não o comoveu, mas pelo menos o fez lembrar que os sabonetes do banheiro
estavam acabando. Voltou no mercadinho do qual seu filho havia retornado,
comprou mais pães de queijo e uns quatro sabonetes Dove. Ao voltar para casa, observou
Mauricinho enquanto ele alimentava o bichano com leite em um prato azul
transparente. César reparou que na testa do gato havia uma pelagem escura com
um desenho bem semelhante à pombinha da Dove. Perguntou se Mauricinho
concordava em nomear o bichinho de Dove. Mauricinho estava tão feliz que sequer
percebeu que acabará de batizar um gato com um termo que traduzido do inglês,
significaria pomba.
Os dias passavam e Mauricinho se apegava cada
vez mais ao gatinho Dove, e vice e versa. O animalzinho já respondia pelo nome
e se mostrava extremamente esperto ao se tratar de respostas sonoras. Quando
ouvia um latido, de longe já se postava numa posição de guarda e nenhum cão
sequer se aproximava dele. O lado selvagem do felino falava sempre mais alto e
certa vez, retrucou com arranhões as brincadeiras de mau gosto que Mauricinho
fazia com ele. O garotinho de seis anos começava a enjoar de Dove. Quando
ganhou um piano elétrico de seu pai sua desilusão pelo gato só cresceu. Por
sorte o gato já se acostumara à vida doméstica e a ser alimentado em horários
corretos diariamente. No fim das contas, Dove sempre dormia em cima das teclas
do piano recém-tocado. O calorzinho que a energia elétrica deixava no
instrumento, eletrizava sua pelagem.
César era fanático por futebol. Em período de fim
de campeonato sempre abastecia a casa com fogos de artifício. Sempre advertiu
que Mauricinho não brincasse com isso, mas sempre o deixava acender um pavio ou
outro. Os primeiros estouros deixavam Dove bastante assustado. Do quinto
foguete adiante, ele já não sentia mais medo, apesar de que sua sensibilidade
auditiva já começava a se tornar bastante abalada. Mauricinho percebeu o
comportamento estranho do bichano e por sabe se lá qual motivo, decidiu amarrar
o rabo do gato em um dos foguetes. O gato não reagiu por acreditar que se
tratava de um afago comum. O estrondo do foguete fez com que Dove se arremessasse
contra uma das paredes do quintal e que tragicamente perdesse sua audição.
A situação era bastante infeliz. Um gato não é
praticamente nada sem seus radares naturais. César ficou contrariadíssimo com a
atitude negativa de seu filho. Entendia que aquilo se tratava de uma parvoíce
infantil, porém sua ira fez com que ele comparasse a inconsequência de
Mauricinho com o comportamento arredio de sua mãe. O garotinho passou dias sem
proferir uma palavra sequer e quando Dove voltou do veterinário quase o
sufocava de tanto o abraçar. A situação fez com que sua sensibilidade para as coisas
simples da vida, aumentasse. A surdez do gato fez com ele passasse a valorizar
sua audição. Dedicando-se aos estudos do piano conheceu a história de Ludwig
Van Beethoven e sobre como, também de forma trágica, o alemão havia perdido sua
audição.
Logo nos primeiros dias após o acidente Mauricinho
percebeu que Dove conseguia responder ao chamado de seu nome. Não entendia bem
como, acreditava que a vibração do ar pudesse ser o catalisador disso, mas ao
dizer outras coisas o animal não respondia por igual. Os espasmos da
criaturinha fora a pior sequela do incidente. Num certa quarta-feira, dia ao
qual estava habituado a receber aulas particulares de piano, percebeu que o
gato se dirigia ao seu professor sempre que ele mencionava o nome de Beethoven.
Dove também se postava estranhamente sobre o corpo do piano quando ele tocava
qualquer peça do compositor e de certa forma, aquilo deixava o felino em um
estranho transe. Naquela noite, Mauricinho estava pensativo e repetia Beethoven
diversas vezes em sua cama, quando de repente Dove saltou sobre sua cabeça.
Mauricinho cuspiu alguns pelos e percebeu que o gato adormeceu ao seu lado.
No dia seguinte, logo ao acordar procurou por
Dove e começou a repetir novamente o nome de Beethoven. O gato respondia
roçando por suas pernas e saltando em seu colo. Não entendia mais o que
acontecia e foi contar o curioso fato para seu pai. César proferiu Bee-tho-ven
paulatinamente e separando suas silabas. Percebeu que Dove só respondia ao seu
chamado nas últimas duas sílabas. Num súbito de raciocínio certificou-se também
que o animal não lhe dava atenção se não estivesse olhando diretamente para
seus lábios. Mauricinho e César chegaram juntos a conclusão de que Dove fazia
leitura labial de tudo que estavam dizendo. A semelhança sonora entre Dove e
Beethoven, e a maneira de como seus lábios moviam os fez acreditar que se
renomeassem o gato para Beethoven, não seria de toda forma ruim. Ambos perderam
a audição em um trágico e acidente e ambos possuíam bastante sensibilidade
auditiva. Como numa sinfonia, pai e filho chamaram o gatinho simultaneamente de
Beethoven. O gato confuso, não sabia a quem atender primeiro. Deu as costas,
saltou em cima do piano elétrico e repousou nas teclas, bem ao lado da
partitura de Sonata ao Luar.
Patos de Minas, 16 de
abril de 2014.
Que texto gostoso de ler!!! Adorei!!!
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