domingo, 4 de outubro de 2015

Mirada Leve - Caio Machado

“Por que apenas voar, se posso ter o prazer de conseguir a atenção de todos os olhares noturnos?”. Amanda calçou seu sapato de salto alto número 36. O vestido estampado se preenche com suas curvas, mais ressaltadas, devido a inclinação resultante do sapato. Pensou melhor e abandonou a vestimenta de cores berrantes. Preferiu logo trajar um vestido de tubinho preto. Perderia pela discrição e ganharia pelo melhor entalhe de seus desvios simétricos corporais. Em sua penteadeira, uma pilha de adereços comprados semanalmente no AliExpress. As quinquilharias orientais não poderiam substituir todos os adereços femininos, mas já seria uma mão na roda. O nome do perfume francês só é agora corretamente pronunciado porque ouviu a lojista do shopping o repetir exaustivamente, nas três vezes em que comprou um novo frasco. “Toucher Cristallin”. Era o movimento de lábios exato para verificar se o batom carmesim não estava exagerado.

Olhou-se rapidamente no espelho. Sempre que se sentia magra demais se lembrava do apelido dado pelo seu pai quando era criança. Magrolina, era assim que a finada figura paterna carinhosamente a nomeava. Arrepiou-se com a lufada de ar frio entrando pela janela e esgueirou-se para fechá-la. Sentiu a inércia abandonando os fios de cabelo levitados pela corrente. Lamentou que o cheiro que recendia de seu belo corpo fosse artificial. Aquilo que a identificava não passava de combinações químicas e mistas de aromas de procedência biológica um tanto quanto duvidosas. Estaria pronta para sair em poucos instantes. Na manhã seguinte encontrar-se-ia na cama de um estranho de seu agrado. Descabelada, com a maquiagem borrada e com odores físicos despontando e sobressaindo o seu aclamado Toucher Cristallin. Estaria também exalando ressaca e toques de vodka em seu hálito seco. Em seguida, observaria os pertences e a decoração do local em que estiver. Provavelmente lamentaria este estilo de vida e iria embora com a dolosa promessa de retornar quaisquer ligações.

O ato de acossar de Amanda nunca é realizado sozinho. Bia era sua fiel escudeira nas noitadas. Escudeira por ter sido escolhida a dedo em sua seleta e nem sempre disponível lista de amizades. Alta propensão ao álcool, indiscreta e desleixada. Sempre cabulava os treinos de spin, o que via de regra, tornava seu corpo levemente flácido. Tinha o rosto com feições duras e animalescas que tornavam-se mais gritantes devido ao uso de uma maquiagem muito carregada. Mesmo assim era atraente. Ao lado de Bia, Amanda era estonteante. A escudeira não deve se tornar parte da concorrência. Amanda preferia manter Beatriz em rédeas curtas. Apesar disso, gradava de sua companhia e por algumas vezes, não conseguiu disfarçar tal apreço que sentia por sua amizade.

As opções de locomoção da noite seriam duas: dividir um táxi ou se aventurar na Honda Biz velha de guerra de Bia. O grande entrave era sempre o de guardar os capacetes da dupla. Bia conseguia manter o seu elmo no interior da motocicleta e o de Amanda ela prendia de forma sábia no clipe de trava do banco. Por sorte, nunca foram roubadas. Naquela noite, a produção não permitia que os capacetes baratos moldassem de forma grotesca os tão elaborados penteados das duas moças. O próprio serviço realizado no salão de beleza teria sido mais caro do que a gasolina que alimentava o veículo e os capacetes surrados da moto. Nem sequer o preço da corrida do táxi, numa gananciosa bandeira dois, faria alguma diferença na exorbitante soma do make-up de Amanda e Beatriz.

Na entrada do clube noturno, as vastas inimizades das garotas já as avistavam com ódio, repulsa e inveja. O sentimento era recíproco. Os olhares se ocupavam de imediato em descobrir quais eram os novos modelítos de roupas, e de identificar onde foram comprados para então, estipularem em suas mentalidades aracnídeas qual quantia havia sido investida. Nem mesmo acionistas da bolsa de valores conseguiriam tamanha precisão. A possibilidade de descobrir que as peças haviam sido adquiridas em liquidações alimentaria os pequenos prazeres daquelas mulheres. A pequenez sentimental prosseguiria no ato de perceber avarias na pele, cabelo e quilos adquiridos ou perdidos durante a semana. Ou até mesmo no ato de desejar que os saltos alheios se quebrem e que as alças das caríssimas bolsas Louis Vitton e Prada se arrebentem no banheiro, na fila do bar ou na pista. Por último, os olhares destas moças se dirigiriam para as figuras masculinas. Para cada homem acompanhado por uma de suas rivais, as olhadelas ganhariam muito mais peso.

Bia de top verde musgo talhado ao tórax, repleto de madre pérolas e um short curto. Amanda em seu perigoso tubinho preto. Bia tomando Martini em grandes golfadas. Amanda na marcha leve e sutil de pequenos golinhos em seu Bloody Mary. Bia soltando-se ao som entusiasmante de Calvin Harris. Amanda jogando o cabelo para trás na levada insinunante da batida de M.I.A. Os pequenos contrastes da dupla de amigas era analisado e perseguido por várias perspectivas ópticas distintas e peculiares. Objetivas e flashes de fotógrafos freelancers, desesperados por reconhecimento e uma futura procura para produções fotográficas de enfadonhas festas de casamentos; Parcas e óbvias capturas advindas das selfies efetuadas em smartphones caríssimos em suas câmeras nada convincentes; Neons e globos de luzes frenéticos e mal sincronizados; Astigmáticos, estrábicos, míopes e perfeitos flertes oriundos de globos oculares das mais diversas cores e simetrias.

No banheiro, Bia beijou Rita em troca de um tiro. O barato animaria sua noite. Amanda na pista rejeitou alguns rapazes pífios e trocou o multi-saboroso Bloody Mary, por um scotch de valor razoável. 2:35 da manhã era o prazo idealizado pelas moças para se separarem de vez e darem um rumo para o fim de noite. O número carregaria para as duas amigas, diversos signos dos mais distintos credos e precauções. Era quase um ritual, e que pelo menos para a Amanda, nunca havia falhado. O jogo sujo na sedução nunca foi um problema em suas jogatinas noturnais. Beatriz estava ali mais pelo movimento, pela falsa sensação de liberdade adquirida em goles nas taças mal polidas e em seus infindáveis cigarros de filtro amarelo sujos de batom. Em um determinado momento, as luzes da pista de dança alinham-se em um pragmático formato de cela. Um cárcere luminoso e metafórico que representaria praticamente todos no interior daquele lucrativo recinto, um simulacro massivo e incognoscível.

Bia conhece um engenheiro agrônomo de uma cidade vizinha. Hospedado no Plaza, chaves do Dodge Ram expostas na cintura. Amanda conhece um estudante de Direito. Jogador de polo aquático, ombro largo estufando a camisa polo de cor esverdeada. Daniel Miranda, garrafa de Blue Label combinando com a pulseira azul da área vip. Leandro Moura, dose nada ríspida de Absolut combinando com o sorriso claro, cerrado e cativante. As pretensões de Daniel não iriam muito além das sexuais e para o futuro, a companhia deveria valer a pena. Leandro sempre cauteloso em seus relacionamentos buscava companhia, risadas e porque não, algo mais. Ambos despretensiosos quanto a alguma seriedade, mas nenhum descartava a possibilidade de um investimento compensatório.

O matchup imperfeito aos olhos de Amanda e, bem, tanto faz para Beatriz. Amanda queria trocar de par. Aliás, que se dane a barganha. Ela só queria tomar o lugar de Bia e cair nos braços de Daniel. Arrancou o iPhone da bolsa Dior e “folheou” qualquer coisa na linha do tempo do Facebook. Elucidou desdém e sorria paulatinamente para a luminosa tela. Leandro não quis desperdiçar sua eloquência para reverter a situação. E olha que o rapaz era bom de discurso. Não via tanta dificuldade na aura feminina como costuma ver em sua área de estudo. Aproveitou a deixa e arrancou o celular da mão de Amanda para cadastrar seu número. Os olhos de Amanda brilhavam numa mistura de susto e inocência. Um raro registro em sua feição. Após ligar para seu próprio número, Leandro beijou a face gélida do lado direito do rosto da moça. Saiu sem dizer nenhuma palavra. Um problema a menos para Amanda.

Para fisgar Daniel bastou dançar ao lado da amiga e de seu desígnio masculino. Ao bailar, fazia um rabo de cavalo em seus cabelos usando as pontas dos dedos e deitava o olhar para a altura do queixo de Daniel. Quando ele percebia, Amanda fitava seus olhos, sorria com o canto esquerdo da boca e desviava o olhar. Bia entendeu a jogada e quis permanecer em cena pelo menos para implicar. Daniel deu o último trago no copo de uísque. 53ml para quase engasgar e criar coragem para despachar Beatriz, que saiu sem pestanejar. A garota caminhou em direção ao bar e investiu um pouco de seus níquéis em uma bebida fumegante.

Amanda sentiu os dedos calejados do robusto homem tateando com firmeza sua cintura esguia. Sequer titubearam e já se beijaram. Daniel sentia que sairia de sua zona de conforto ao estabelecer relação com uma moça que havia o abordado de tal maneira. Admirou a forma com que Amanda abreviou o processo do flerte e de azaração. Mas temeu se daria conta ou não do recado. A curiosidade foi sempre um grande aliado e inimigo. O recém formado casal quitou as bebidas no caixa e abandonaram o recinto.

O ronco vibrante da 4x4 de Daniel. O house desatualizado que preenchia os alto-falantes da caminhonete vinha do pendrive emperrado no player do carro. Pelo menos não era sertanejo universitário que Amanda havia deduzido erroneamente tratar-se das preferências musicais de Daniel. O check-in no hotel duraria uma eternidade e a cabeça de Amanda não parava de girar devido a mistura irresponsável das bebibas no clube. Era um esforço que valeria a pena.

Os primeiros raios de sol já invadiam a janela e reluziam nas opacas paredes do quarto. Amanda não conseguiu dormir bem. Entediada buscava um mote para evadir. Tateou o LCD do celular por alguns minutos. Encontrou o nome de Leandro no registro de chamadas recentes. A recompensa justa para sua desdita. “Bom dia ;)”, escreveu e enviou na breve mensagem do Whatsapp. O celular vibrou com um sms de resposta apenas setenta e cinco segundos depois. Calçou o salto, fechou o zíper do vestido e esticou as asas para alçar voo novamente.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Me ADD?


Sábado a noite

Parecia receosa quando me aproximei, diferente de alguns minutos antes...

- Posso? – disse, apontando para a cadeira ao seu lado.

Fez uma expressão como que a decisão dependesse somente de minha vontade. Estava sentada de costas para o balcão do bar. Pedi ao barman que me trouxesse duas garrafas verdes de cerveja, a mesma que ela segurava quase vazia.

- Qual curso você faz?

- Química, respondeu assim que o homem retornou com a bebida.

Sobre a cerveja, eu não pagaria nenhuma outra exceto aquela que lhe dava agora, poderia parecer que desejava somente sexo depois da segunda garrafa, ou mesmo que ela aproveitasse disso e ao fim, quando reivindicasse meu tempo e dinheiro gastos, a sua carruagem se transformaria em uma carona de última hora e seu sapato de cristal seria um número de telefone aleatório.

Já sobre o curso, apenas uma mera formalidade! Pelas redes sociais sabia seu nome, curso, animal de estimação e inclusive que estaria hoje aqui, estava a lhe observar a algum tempo nos corredores da Universidade.

- E você?

- Ciências da computação.

Uma amiga nos interrompe e cochicha algo no seu ouvido, ela sorri, responde algo também aos ouvidos da amiga.

- Foster the People! Curte? – Sim, tocava a música da banda que sabia que ela gostava, havia postado uma música em sua timeline, e era justamente aquela que vinha aos nossos ouvidos agora.

- Sim, adoro essa música! Qual o seu nome?

Durante os anos de minha vida quase que inteiramente por tentativa e erro, fui aprendendo que algumas coisas não funcionavam, simplesmente. A maior lição é que as mulheres enxergam tanto quanto os homens, a diferença talvez seja uma questão de sinapses. Os homens precisam se prestar a olhar e a olhar por minutos, talvez horas, enquanto o cérebro delas é capaz de tomar decisões no rápido intervalo de uma jogada de cabelo, se muito um cruzar de pernas, ou mesmo o cruzar já seja a decisão tomada.

- Guilherme.

- Guilherme... Eu gosto desse nome!

- Você puxa o “r” quando fala, de onde você é?

- São Paulo e você?

- Patos de Minas.

- Como?! – e riu.

- Patos, cuá, cuá... de Minas.

O mal de todo paulista é achar que vai induzir a pensar quem pergunta que São Paulo se trata da capital e não do estado...

- São Paulo, capital?

- Não, do interior. – respondeu arrastando ainda mais o “r”.

Posso dizer que foi uma noite que correspondeu as minhas expectativas. Não era uma das mais bonita da Universidade sendo honesto, mas possuía o jeito que me cativava e isso me fez persegui-la, mesmo que não tenha notado. Aliás, aí está o segredo da sociedade virtualizada.

Todo mecanismo tem um algoritmo e a chave está em conhecer tal. Antes, me lembro que o Orkut entregava quem visitou seu perfil, e nesse caso ela já teria me reconhecido como um “perseguidor”.Já no moderno Facebook, talvez tenha visitado tanto seu perfil que o mecanismo tenha me sugerido como um possível conhecido, e se ela talvez não se importasse tanto em descartar tais sugestões infundadas, provavelmente tenha visto minha cara sorridente pela fotografia.

Antes da noite anterior terminar, me ofereci para acompanhá-la até a sua casa num táxi, mas ela recusou.

No dia seguinte restava saber se o número não era um número aleatório. Mandei um simples SMS, que obteve respostas horas depois. Se tudo ocorresse como planejado, algumas visitas ao seu perfil virtual bastaria para que o algoritmo me trouxesse novamente a sua lista de potenciais amigos.

Quinta a tarde

Já desesperadamente visitava seu perfil, vi que o atualizava mas nada de me adicionar, talvez a ela tivesse muitos potenciais amigos, ou mesmo que não ligasse para tal informação, mas estranhamente respondia com interesse minhas mensagens ao celular.

Não resisti e a convidei para sair, precisava vê-la mesmo que isso não seguisse a estratégia inicial de fazer com que isso viesse de forma natural numa conversa online. Ela aceitou.

Sexta a noite

- Preciso lhe contar algo.

- Diga.

- Olha, eu gostei de você, me parece um cara legal...

Eu sabia que não era o fim, apenas medo...

- Eu também gostei de você.

- Pois é, então não me leve a mal mas é que não gostaria de me envolver muito sabe.

Fitei-a interrogativamente...

- É que eu tenho uma filha.

Sófia carregava os mesmos olhos da mãe e adorava a Galinha Pintadinha, nada que me surpreendesse, cantavam juntas em vídeos disponíveis em sua conta no YouTube.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Eponine no século XXI


É um hábito meu fingir que não me importo com o que as pessoas pensam e dizem a meu respeito. A verdade é que me importo um pouquinho. A sociedade em que vivemos é tão medíocre e alienada em seus próprios preconceitos que fica um pouco dificil sobreviver sem abrir mão de parte de sua personalidade.
Um bom exemplo de mediocridade social: amor!


[...]


Eu preciso te esquecer. Preciso seguir em frente. Preciso me sentir bem e feliz de novo, mesmo estando longe de você.
Olhar nos teus olhos e não encontrar a mesma coisa que existe dentro de mim dói muito, dói tanto que chega a doer fisicamente.


[...]


Uma vez você me disse que amar alguém é muito raro, mas, mais raro ainda era haver reciprocidade. Você esqueceu de dizer que essa primeira raridade é capaz de destruir sua alma, caso não venha acompanhado da segunda hipótese. Na minha opinião, entre ficar com a solitária primeira hipótese e a morte, prefiro mil vezes a morte.
Existem muitas teorias sobre o que ocorre depois da morte. Para alguns existe a possibilidade de reencarnação, para outros, apenas o céu e o juízo final. São tantas ideias e divagações que giram em torno do assunto que fico até confusa e perdida.
A verdade é que eu não gosto de nenhuma dessas possibilidades. Gostaria que a morte fosse apenas a morte, ou seja, a interrupção definitiva de um organismo. Sem mais e nem menos. O ponto final da frase em que não cabem mais vírgulas ou qualquer outro tipo de acréscimo. Sem renascimentos, sem recomeços, sem tribunais do júri, sem inquisição!
Outro ponto que me irrita muito em relação à morte é essa crença de que seu controle deva ser indisponível a nós. Não acho justo que tenhamos a obrigação de manter esse fio amarrado a nós.  Sim, a vida tem sua beleza. Uma beleza mágica  para aqueles que sabem degustá-la. No entanto, sinceramente, meu paladar é péssimo!
Você pode estar pensando: nossa, que morbidez inútil! Se quer ver dessa maneira, que assim seja! Mas, tente olhar pela minha janela. A vida é um jogo, tipo aquele do “Super Mário”, sabe?! Ela é composta por diversas fases e situações, assim como no jogo. A diferença entre ambos está no final. No “Mário” você só tem que apertar os botões certos, na hora certa. Movimentos planejados. No final você salva a princesa e é feliz para sempre. A vida, por sua vez, também lança mão de vários níveis e circunstâncias, entretanto, ela não depende apenas da sua vontade e desempenho. Depende da reciprocidade dos seus próximos.
Reciprocidade. Eis o grande objeto de desejo dessa criaturinha asquerosa chamada Amor! Sem esse ponto de equilíbrio, o amor é obrigado a escolher entre dois caminhos distintos: obsessão ou amor verdadeiro (em sua forma pura). Nesse, há sacrifício e renúncia. Deixa-se o objeto amado seguir seu próprio caminho e ser feliz à sua maneira. Naquele, há a constante perseverança, mas, sem a pureza típica do amor. Trata-se de uma sentimento egoísta e ciumento, que põe a si  mesmo no centro do espetáculo.
Refletindo sobre esta última hipótese, deixo claro que nunca me permitirei ficar obcecada por você. Uma vez li em algum site (digo site por não ter a menor noção de onde tenha encontrado essa ideia) que as fragilidades emocionais, de acordo com a intensidade, podem se transformar em dependência em relação a outra pessoa.
Embora a pessoa ainda dê o nome “amor”  para o que  sente pelo outro, deixa de ser amor no momento que a dependência se inicia. O amor é uma troca saudável entre duas pessoas. Quando uma delas passa a se comportar de forma a prejudicar o outro , na verdade, há uma confusão de sentimentos, mas que não pode ser chamada de amor.
Pois bem! Por mais que você não mereça (uma criatura egoísta como você, de fato, não merece), optarei pelo amor em sua forma mais pura. Deixarei que parta, que siga seu caminho.
Antes, tirarei as pedras e espinhos que puderem vir a te ferir, ou que te façam tropeçar. Cuidarei para que nada lhe falte. Não faltará grama macia para seus pés descansarem. Não faltarão flores nas margens do caminho. Não faltarão água fresca. Não faltarão amigos para lhe fazer companhia. Não faltará alimento. Providenciarei para que o caminho daquela a quem você ama cruze com o seu. Acredite, nada lhe faltará.
Quando falei que preferia a morte, falei muito sério! Muitos dizem que antes de optar por se desconectar desse plano material, deva-se pensar na família, nos amigos, enfim, naquelas pessoas que tanto te amam, e que sentirão sua falta. Julgam egoísta quem não escolhe permanecer. Mas aí, penso comigo...egoísta?! Quem é o real egoísta nessa história? Refletiremos juntos sobre algumas questões e depois, você, em seu íntimo, responda essa pergunta a si mesmo.
O professor Peter Cohen, psicólogo e sociólogo pela Universidade de Amsterdam, ao estudar as causas de vícios (não só de drogas, mas, qualquer espécie) demonstrou que os seres humanos possuem uma necessidade profunda de estabelecer laços e conexões, sendo esta a forma como se satisfazem. A incapacidade de se conectar a outra pessoa deixa um vácuo que, em regra, é preenchido por algum vício. Assim, se não conseguem se conectar a pessoas, se conectam às drogas, aos jogos, etc.
Agora, meu querido, imagine que esse vazio que você deixou em mim tenha um formato peculiar. Um formato único. Tão único, que apenas você tenha a capacidade de se amoldar a ele. De me tornar completa. Já imaginou?! Se imaginou, poderá entender minha incapacidade de conexão com qualquer outra pessoa ou coisa.
Pense também na dor dilacerante que sinto na minha alma em todas as tentativas frustradas de completar esse vazio. Reflita em como minha vida se torna insípida e incolor.  Dói mais que a dor física. Não consigo trabalhar, nem ir a faculdade. Estar próxima a outras pessoas é o mesmo que estar gritando sem que ninguém me escute.
Por muito tempo imaginei uma explicação para minha inépcia de conectar, afinal, talvez, fosse apenas frescura minha. Mas, como criar raízes em meio a uma sociedade “líquida”, como diria Mr. Baumam,  onde domina a lei do descartável e dos relacionamentos regidos por interesses mesquinhos?
Se o amor é descartável, imagine o impacto disso sobre essa coisa chamada “família”? A cultura do descartável descarta tudo, inclusive as pessoas, pois para ela nada é durável, nem mesmo as relações humanas. Assim, ao se constituir uma família a ideia é: se der certo, amém, se não der, amém também! A vida segue. As pessoas se conectam e desconectam como o piscar dos olhos!
Me diga: por que manter esse fio amarrado a mim? Apenas para satisfazer pessoas que, em sua maioria, terão preenchido o espaço que ocupo em suas vidas, antes mesmo que chegue a próxima estação?  Se me amam tanto, por que insistem em me manter sofrendo? Sou realmente egoísta? Quem é egoísta afinal?
Se você pensou: como pode ter tanta certeza que seu formato é peculiar? Que jamais voltará a se conectar com o mundo? A resposta é simples: não tenho!
O grande problema é justamente a incerteza. É claro que a vida pode me reservar mil surpresas, mas, a espera e insegurança me causam dor imensurável! Entenda que minha escolha deriva de minha incapacidade de sobreviver em um ambiente oscilante e irresoluto.  Não se relaciona com sua não disposição em se conectar a mim. Não saber o que virá me faz sentir dor e, apenas eu, sei o quanto isso me custa respirar.
A morte tem sua beleza. Existe felicidade no morrer porque nela se extingue toda dor e sofrimento. Junto com ela vai todo o sofrer e angústia existencial. Serei livre!
Não gosto de despedidas. Acho-as tristes por demais. Desnecessárias. Servem apenas para deixar o coração ainda mais aflito com o que há de vir. Já dizia Alexandre Dumas “em amor, não há último adeus, senão aquele que se não diz”. Certinho o Dumas! Talvez seja por isso que as pessoas insistam tanto em se despedir. Talvez o único objetivo seja o de transformá-lo em um “até logo”.
Não há porque me despedir. Não será um até logo. Não pretendo deixar a ferida mais profunda. Mas, não se preocupe, não sentirei dor alguma. Não se preocupe com a chuva que me molha nesse momento, apenas me abrace, pela última vez. Pequenas gotas de chuvas não podem me machucar agora. A chuva fará as flores crescerem.


Breve justificativa.


Não acredito que desistir da vida seja a melhor saída, pelo contrário. Acredito apenas que antes de instituir a inquisição e apedrejamento daqueles que optam por tal caminho, deva-se entender que cada ser humano é único e individual. O tamanho de sua dor não pode ser mensurada, apenas compreendida. Para compreendermos essa dor é necessário que nos coloquemos em seu lugar.
Não critico nenhuma crença/religião, apenas não consigo lançar pedras em quem tenha optado por tal caminho. Prefiro tentar entender sua dor.

A morte é uma experiência única, assim, ela jamais devolverá aquelas pessoas que perdemos. Se não pode tê-los de volta, respeite sua decisão. Em outras palavras, não seja egoísta!

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Problema de Wendy

            Todas as crianças crescem – menos uma. Wendy Darling daria tudo para ser essa uma.
A terceira idade já chegara há anos, trazendo consigo os cabelos brancos, o cansaço e os arrependimentos. Sentia falta de tudo o que sua vida poderia ter sido simplesmente por não ter dado uma resposta diferente àquela pergunta, tendo assim dispensado a vida adulta, as decepções e as inevitáveis lágrimas que por vezes pareciam infindáveis.
A sensação lhe era estranha, inexplicável, ter saudade de algo que sequer aconteceu. Sentada em sua cadeira de balanço, olhava para aquele gorro verde sobre o parapeito da janela, o único vestígio daquela noite fria na qual Peter Pan havia lhe feito uma última visita. E, quanto mais pensava na tormenta que vivera nas três últimas décadas, mais convicta ficava de que o responsável por tudo aquilo era ninguém menos que o próprio menino da Terra do Nunca.
Sempre soube que deixar de ser criança não seria boa coisa. A todo o momento seu pai estava ali para lhe reforçar essa ideia.
A garotinha era muitíssimo feliz contando histórias aos irmãos, vendo os sorrisos em seus rostos, brincando com eles, cuidando-os. Durante uma madrugada como outra qualquer, o menino que havia perdido a sombra apareceu pela primeira vez, e Wendy o ajudou com seu problema, mas apenas isso não o satisfez: este lhe propôs uma aventura.
Por que é que lhe dei ouvidos? Para ele era fácil falar, não cresceria nunca.
Quando voltou de sua jornada, no entanto, carregava consigo o agora desperto lado adulto. Chegava até ansiar a maturidade, deslumbrada pelas experiências com os meninos perdidos: não conseguindo ver o quão cega estava, deixou-se crescer. Casou-se, teve uma filha, e por anos a fio tudo estava bem. Jane, a filha, era apenas um bebê e o marido, dedicado, as dava atenção e carinho.
Quando Jane cresceu, Wendy contou-lhe as mesmas histórias que dividira com os irmãos, agora já casados, cada um tocando a própria vida. Acordava cedo, organizava a casa, sentava um pouco para ler ou escrever as histórias que tanto amava, mas logo em seguida se via em pé, preparando o almoço, para então buscar a filha na escola.
Numa outra noite, o garotinho magricela mais uma vez deu o ar de sua graça, dessa vez levando Jane consigo: como ocorrera com a mãe, a garotinha voltou de lá mudada, mais feliz, até falando em ter filhos!
E cada vez mais o marido estava ausente, augúrio que veio quando as primeiras rugas se fizeram presentes, e assim, a previsão foi confirmada poucos meses depois: o divórcio.


— Foi melhor assim. – tentou lhe dizer a filha, num sussurro pouco seguro. — Ao menos não haverão mais brigas, mãe, e a ferida há de cicatrizar com o tempo. Talvez ele não a merecesse...


Talvez, pensou Wendy, ainda a balançar. Eu poderia ter me virado sozinha. Teria escrito um romance se não houvesse perdido meus melhores anos cuidando da casa ou fazendo a comida para aquele porco egoísta.

Quando chegou aos sessenta, viu a filha se casar. Havia encontrado um bom rapaz, um professor com grande futuro. Mudaram-se dali, e Wendy se viu sozinha novamente, tendo apenas suas histórias, as memórias e a raiva guardada da vida que nunca quis ter. O choro ainda lhe vinha, não somente por tristeza,mas por diversos motivos. Dentre todos o mais palpável era a inveja.
Como eu queria ter o poder de Peter... Ser criança pra sempre. Ele estragou minha vida... -Lamentava-se diariamente.
  Ele tem tudo o que quer, e eu, tive tudo o que não quis.
“Você não pode mais voltar, Wendy. Sabe disso. Apenas as crianças conseguem.”, disse-lhe o garoto, antes de partir, dessa vez em definitivo. Tirou o gorro e o deixou ali mesmo, enquanto sua antiga companheira lhe suplicava ajuda. O frio da noite adentrava o quarto escuro, onde o único barulho presente provinha do balançar ininterrupto.
Afundada no próprio oceano de aborrecimento, a velha senhora que sonhava em mais uma vez ser jovem chorou, levantando-se. Dando alguns passos, pegou nas mãos o gorro esverdeado e o fitou.
É tão injusto que ele viva eternamente a infância enquanto todos vivem a vida uma vez apenas, sem segundas chances. Sentiu o coração bater mais forte ao saber que não usufruiu nem da própria. Ao contrário disso, viveu as dos outros.
Wendy colocou o gorro de Peter e, com dificuldade, subiu na janela. Suas pernas doíam e tremiam, talvez um pouco pelo frio. Observou o céu, estrelado.



  Respirou profundamente pela vez e permitiu-se um último voo.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Pandora


Ninguém tachou de má a caixa de Pandora por lhe ter ficado a esperança no fundo.
Em algum lugar há de ela ficar.


Nina tinha apenas 5 anos de idade e o mundo ainda tinha gosto de contos de fada. Um piscar de olhos, uma pequena distração e puf! Um mundo negro e ensanguentado se estendia diante dela. Quem é ela?, você se pergunta. Eu respondo: uma criança como tantas que você encontra por aí.
A marca que a menina carrega não pode ser apagada; faz parte de sua alma. Quanto mais ela crescer, mais a mancha escurecerá. Há uma pequena chance de cura, no entanto, de tão pequena que é, quase não há esperança em seu coração. Quase. Há um pontinho branco em meio à negritude.
Embora eu tente pensar naquela garotinha como se não fosse eu, não posso fugir da realidade. Neste momento, em minha mente, ela - ou eu - está passeando embaixo dos pés de tangerina e o cheiro é realmente bom. Ninguém acreditaria se ela contasse como aquela pequena vila do estado de Tocantins é bonita em algumas épocas do ano. Nem todo mundo saberia apreciar os perfumes dos pés de jaca ou mesmo do pé de cacau que crescia imperioso pela propriedade da avó.
As imagens do passado me fazem sentir feliz por ter nascido ali, mas, ao mesmo tempo, estremeço ao voltar àquele lugar, mesmo que apenas através das lembranças.
- Nina? Estou falando com você! - diz George, me fazendo voltar ao mundo real.
- Ok, estou escutando. - respondi, irritada.
Amar George é a coisa mais estranha que já me aconteceu. Às vezes sinto o ponto branco ganhar força dentro de mim e, nestes momentos, o mundo se torna azul e tranquilo. Mas, como explicar-lhe que sou apenas um receptáculo cheio de escuridão? Um dia ele tentará abrir a tampa e, neste dia fatídico, verá o interior da caixa de Pandora.
Você deve estar se pensando: o que aconteceu à Nina para que ficasse assim?
Se realmente estiver pensando isso, peço desculpas por não ter tocado no assunto anteriormente. O fato é que a vida de uma menina inocente e ingênua pode mudar completamente depois de ver o mundo real. Não digo responsabilidades reais. Falo sobre a maldade real. A maldade de um homem que atrai uma criança. Como? Simples. Um doce, um brinquedo ou uma ideia divertida. Quando consegue fisgar sua presa, mostra quem realmente é.
Sim. Aconteceu. Exatamente o que você está pensando.
O mundo que cheirava a frutas e era um caleidoscópio divertido, de repente, se tornou sombrio, com todas as nuances escuras.
Mas Nina é forte. Nina é fogo. É esse o significado do meu nome em Quíchua: fogo. E através dessa força; a força que vem do fogo, eu construí a caixa de Pandora e guardei ali todas as desgraças.

(...)

George está à minha frente. Olhando para ele neste instante, concentrado, tomando seu café e lendo o jornal, percebo o quanto ele merece uma pessoa melhor. George não merece sentir o peso do meu fardo. Eu preciso dizer adeus!
- Nina, veja! A filhinha dos Martins foi encontrada morta. Parece que a menina foi visitar a avó e acabou dando de cara com um assaltante. Foi violentada e estrangulada.
Demonstrei um pouco de espanto para satisfazê-lo, mas, no fundo, nada mais me afeta. As pessoas se surpreendem porque não imaginam que a cada “tic tac” do relógio, o mesmo ocorre com dezenas de garotinhas, por todo o mundo. Morrer, como a pequena Amabelle do jornal havia morrido, era um final feliz. Sobreviver e encarar a realidade de um mundo coberto de cinzas era muito pior. Não sou insensível. Ok. Talvez tenha me tornado um pouco.
O pior de tudo é saber que no final, tanto Amabelle (morta), quanto a garotinha de 5 anos (sobrevivente), não passam de estatística que os jornais anunciam e que a oposição usa como argumento para subir ao poder. Veja: se o tema “Estupro” já escandaliza um país como o Brasil, em que 92,6% da população é religiosa, imagina só o efeito que o tema “Abuso sexual infantil” não causará?! Os votos são garantidos!
George havia desenhado árvores, rios, pontes e um arco-íris em minha vida, mas, o que eu poderia oferecer de volta? Ele com certeza deixaria de me amar no momento em que abrisse a tampa e visse o quão negro era seu conteúdo.
Ele está me encarando de novo, com seus olhos cor de âmbar, tão doces, que fazem meu coração transbordar em todos os tons de branco. Sim, existem vários tons de branco! Embora sejam aparentemente iguais, quando a luz é refletida sobre eles, tudo muda. 
- 1, 13, 1 - 13, 5? - diz George
- 13, 21,9, 20,15! - respondo sem pensar.
Temos nossa própria língua. Nosso jeito próprio de conversar. Ele me enxerga por dentro e eu não preciso explicar nada.
George se levanta e me beija, puxando-me de forma suave. Ele me ergue da cadeira na direção dos seus braços. Não, eu não irei a lugar  nenhum! Estou exatamente onde deveria estar.
Uma mancha negra dilui-se completamente em um pequeno ponto branco e uma garotinha de 5 anos passeia, feliz, debaixo de um velho pé de tangerina que, em flor, exala seu aroma em uma primavera de 1996.
A caixa ainda não foi aberta. E se for? Talvez, somente por hipótese, até lá o conteúdo dela tenha se transformado todo em Esperança.





sexta-feira, 3 de abril de 2015

Por do Sol

Além deste lugar de iras e lágrimas
Avulta-se apenas o Horror das sombras
- William Ernest Henley, Invictus.


Não, o pôr do sol nunca a havia fascinado tanto como hoje. Até mesmo a indestrutível falta de emoção da pequena Sara foi obrigada a ceder lugar á sensação de força que os vários tons de laranja, vermelho com amarelo e mesmo preto lhe impingiam na pele, chegando até a corrente sanguínea.
Recordou de uma outra sensação parecida, a do dia em que Antônio lhe pedira em casamento. Sara havia dormido em seu apartamento, como acontecia em todas as sextas-feiras, após jantares esplêndidos. Não se recordava muito bem de como tinha sido aquela noite, em especial, apenas da voz melodiosa do homem dos olhos cor de whisky lhe acordando para ver o nascer do sol na janela do 13º andar.
Há! Sim, havia sido incrível ver aquela alvorada em seus vários amarelos e vermelhos misturados com cobre iluminando a cidade e o seu coração. Sim! Seu coração se iluminou quando Antônio ajoelhou-se e lhe pediu em casamento naquele iniciar de dia.
- Na aurora, para que a luz do sol ilumine os dias escuros. – dissera-lhe Antônio.
Sara em sua pequena estatura tinha certa delicadeza, mesmo com os enormes olhos cinza, grandes demais para seu rosto e os cabelos sempre soltos e rebeldes fazendo caracol em volta de seu rosto. Ali, sentada na beira da praia pensou que apesar da aparência frágil havia se sentido uma mulher poderosa naquele dia e que independente das atuais circunstancias aquelas eram boas lembranças do passado, boas histórias para se ter na memória, enfim.
Como um turbilhão, outras memórias assaltaram-na. A doçura da lua de mel, o calor da primeira briga e de Josephine, a deslumbrante Josephine que aos poucos se infiltrara na vida do casal e desencadeara os fatos que haviam levado Sara a estar ali sentada na areia da praia, admirando os raios de sol mergulhando calmamente no negro do mar.
Josephine... Ha! Maldita Josephine! A sua maldita irmã adotiva que aos poucos fizera tremer a base de sua maior vaidade, com suas visitas rotineiras e seu sorriso com gosto de ingenuidade sempre estampado no rosto. Aquele sorriso que aos poucos roubara os olhos de seu Antônio. Nada podia atingi-la tão mortalmente quanto aquilo, seu Antônio que era a única coisa boa que tinha em sua alma, aos poucos começar a trata-la com indiferença e frieza sem qualquer motivo, ver toda a alegria do esposo ser desviada para os domingos em que Josephine vinha visita-los.
Tivera certeza da traição no dia em que saíra mais cedo de seu escritório para comprar o presente que daria a ele em comemoração ao primeiro aniversário de casamento. Da janela do carro avistara-os passeando pelas ruas da cidade como dois adolescentes bobos á admirar as vitrines das lojas. È claro que chegando casa fingira de nada saber, pois jamais se permitiria a fraqueza de chorar ou até mesmo pedir explicação. Sua decisão estava tomada!
Mas, pensou Sara, sentindo a brisa do mar em seu rosto, hoje seria o fim de sua angústia. Hoje seria livre para começar uma nova vida e encontrar um novo caminho para trilhar. Um caminho livre de fúria reprimida, livre do ódio que passara a sentir por Antônio, livre de seu desprezo pela estúpida Josephine e principalmente, livre para ser ela mesma, sem nada para controla-la ou faze-la se sentir culpada por ser o que era ou como seu Antônio vivia a lhe dizer: insensível, vaidosa e egoísta.
Lembrou-se das palavras do livro que lera no dia seguinte ao aniversário de casamento "esta solução deposita em poucas horas a maior parte do sal da estricnina em forma de cristais de brometo insolúveis” e de como os dois comprimidos de brometo introduzidos ao vidro cheio do tônico que Antônio tomava toda noite causaram a precipitação perfeitamente, assim como o livro dissera.
No último mês houvera sido gentil com seu esposo servindo-lhe suas doses do remédio ás sete horas de toda noite, tomando é claro, o devido cuidado para que os cristais permanecessem depositados ao fundo do vidro e assim a estricnina pudesse ser deixada para ser consumida quase que totalmente na última dose.
A brisa balançou seus cabelos enquanto ela observava os últimos fios de sol mergulhar no negrume do mar e satisfatoriamente lembrou em como Antônio sempre fora metódico e pontual em todos os seus compromissos e tarefas, enquanto passeava calmamente os dedos pelo colar de pérolas, que o marido lhe dera no aniversário de casamento. Deslizou delicadamente a joia do pescoço e a atirou o mais longe possível nas aguas do mar sem nenhum apego.
O céu agora era um véu negro sobre sua cabeça, hoje não tinha uma única estrela lá e Sara observando as horas em seu relógio de pulso sentiu um largo sorriso rasgar seu pequeno rosto. A agua do mar estava tranquila e da cor de piche preenchendo o interior da pequena mulher de paz e tranquilidade enquanto se levantava e enchia os pulmões com o vento que agora soprava forte e gelado.

domingo, 8 de março de 2015

Tampa com manteiga.

“Eu odeio ter que ir a padaria de manhã”.

Odeio, mais que tudo que odeio. Para mim, o mundo regrediu. A minha avó contava que nos seus tempos o padeiro levava os pães e o leite a porta de cada cliente, todos os dias, a mesma quantidade. Também confessou que se alguém viesse lhe visitar e pernoitasse, era preciso lembrar de deixar um bilhete no dia anterior, para que a quantidade viesse maior no dia seguinte, do contrário, faltaria.

Tenho tanta preguiça de ir a padaria que desde que me mudei para cá, ando a comprar pães de forma. Além da indisposição, gosto do pão do dia, um paradoxo que já apresentei a solução.

Desde que me mudei para cá, o maldito ás vezes me deixa com as “tampas”. Me refiro a primeira e a última fatia do pão de forma. Eu não como as tampas, e nem ele.

Espero que ele desconfie antes que minha paciência se esgote. Tentei algumas estratégias, exceto esconder a comida. Não! Isso seria demais para mim, me sentiria tão mesquinho quanto ele. Já pensei em consumir menos, tentando achar um padrão de sua mediocridade em roubar-me os pães, em vão, já que sua gula é inversamente proporcional a minha tolerância. Por vezes, acordei mais cedo, afim de diminuir minha indisposição e pegar-lhe cometendo o “crime”, mas sua astúcia era tanta que a primeira vez que o fiz não se arriscou e permaneceu em jejum, assim, passou a comer tudo a noite.

Era um jogo interminável, um xadrez sem xeque-mate. Eu então tentei a última das opções que me ocorreu: pensei em acordar e ir a padaria pela manhã. E assim o fiz, acordei e ofereci que lhe buscasse algo também, ele rejeitou obviamente, disse que não tomava café da manhã. Busquei o pão e tomei o meu café, a questão é que seus estudos eram a noite e ele sempre ia se deitar depois de mim, e o pão que havia comprado naquela manhã já não existia na manhã seguinte, exceto as tampas.

Haviam dois quartos no apartamento, e mesmo com um quarto a disposição, ele decidiu-se instalar no mesmo que havia escolhido. Escolhi acreditar que isso era devido ao espaço maior.

Ainda não havíamos comprados sequer os moveis mais básicos, inclusive uma cama. De todas as minhas preocupações a última seria uma TV. Não tenho o hábito de assistir, principalmente depois que a internet havia proporcionado tanta coisa, não fazia sentido em não escolher o que consumir, mesmo com todas as opções de uma assinatura, mas para ele era uma necessidade tão fundamental quanto ter uma privada no banheiro.

Tenho de dizer que esse fato me deixou um tanto malicioso. Todas as minhas necessidades eram tão básicas e jamais poderiam ser negligenciadas, tais como uma geladeira, uma mesa e um fogão, nem sequer uma cama era preciso, somente um colchão, já a TV... bom, a TV era tão superficial quanto um jarro de flores artificiais decorativo e sei que fiz muito bem em decidir que era algo para o futuro, mesmo que esse futuro nunca se realizasse. Ele mesmo assim insistiu, mas fiz o sentir que era uma necessidade individual (o que de fato era), no entanto um erro meu, pois ele comprou-a sozinho e tínhamos uma saída pronta para ser usada, do antigo morador, com canais a cabo mesmo que ele só assistisse um, com seu reality preferido.

Com um quarto grande e outro a disposição, ainda procurávamos outro morador e logo encontramos e ele se mudou para o outro quarto. As noites eram preenchidas com conversas até a madrugada, jogadas fora por três pseudo intelectuais teólogos filosóficos. Eu sempre era o primeiro a abandoná-los e ir deitar-me, o que ainda me deixava com as tampas pela manhã. E todas as noites durantes as primeiras duas semanas assim se seguiram. Ele assistia seu reality, junto as bolachas e o refrigerante que havíamos comprado, depois desligava a TV e começávamos a conversa. Ás vezes o assunto era o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados da federação: o mais rico, a melhor infraestrutura, os maiores aeroportos, as maior malha rodoviária, as melhores festas, a maior diversidade cultural... eu inocente, ainda guiado pela mídia dos anos 90 era um torcedor palmeirense, diante a dois corintianos paulistas.

Em outras noites a conversa puxava para religião. Eu, um batizado pela igreja católica mas agnóstico, ele um praticante de alguma igreja protestante distinguida por alguma forma geométrica, e o outro um indeciso que pendia pela dúvida. Numa dessas conversas ele enrolou sua toalha e fez uma linha que dividia a sala de estar ao meio. Me explicou que se ele seguisse o catolicismo, que não restringia e nem alertava seus crentes aos males da vida, negligenciando a vida libidinosa, ele estava se afastando daquela linha rumo ao inferno, que era retradado pela porta da sala, a extrema esquerda da minha visão da sala. Já se ele participasse dos cultos na igreja, e seguisse os conselhos do pastor e de sua fé, ele rumaria junto a Deus e ao céu, que era retratado pela janela, na extrema direita do cômodo. Foi então que o outro paulista o perguntou aonde ele estava e ele se postou ao parapeito da janela.

Para por fim as “tampas” numa conversa com o paulista recém chegado, que já a essa altura havia sobrado com elas também, decidimos criar uma caderneta onde tudo que se consumia era anotado. Se eu comprasse um pão que fosse e alguém consumisse mesmo que uma fatia, era dado a contribuição fosse dividida entre dois ou mesmo entre os três, proporcionalmente aos “clientes”. Quando propomos a medida a ele, seus olhos não poderiam tê-lo entregado tanto. De certo esperaria uma briga, uma discussão que fosse, mas aquilo era cruel a sua atitude e lhe restou aceitar, não antes de um breve questionamento se aquilo era necessário.

Creio que já me odiava em tão poucas semanas. Antes de me mudar, tomei algumas breves lições de culinária, o que me trouxe a habilidade de fazer um macarrão bastante ruim. Com o tempo, todas as minhas atitudes, quaisquer que fossem eram questionadas. Aos sábados, saíamos as compras pois todos estavam em casa. O meu macarrão eram um dos dois pratos que tínhamos conhecimento, além de frituras.

- Gosto de azeitonas, o que acham? – eu disse.

- Pegue essa, que está sem caroço, daí não temos o trabalho de tirar.

“Qual o maldito trabalho de tirar o caroço de uma azeitona e pagar quase o dobro por essa facilidade? “-pensei. Nesse mesmo dia, enquanto ele fritava steaks, disse que devia aprender a me virar. Talvez seja a hora de revelar o segundo prato que sabíamos fazer: era arroz, e não era ele quem detinha o conhecimento.

Em algumas semanas, o assunto era exclusivamente religião e o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados. A sua alienação era tanta que chegava a interferir nas suas escolhas amorosas. Mas tenho de dizer que isso o tocava mais que a mim, e parecia enclausurado na sua própria crença. Me senti o próprio diabo perseguindo Cristo no deserto. Era inconcebível a ideia de ter de escolher alguém dentro da própria igreja para ser feliz e continuar no bom caminho, pois essa pessoa certamente era melhor que qualquer outra que não fizesse parte daquilo. Como doentio isso soava! Não podia alguém em sã consciência dar ouvidos a isso!

Eu o testei, o questionei e diferente do que tentou, não o impus uma ideia, até pela carência delas. Ele me ouvia, tenho certeza, mas odiava-me a proporcionalmente. Sentiu-se fraco, talvez questionasse agora e tratou de arrumar uma igreja que pudesse ir. Passou a tarde a procura, e o que encontrou foi uma figura geométrica próxima a que frequentava, talvez como um triângulo de ângulo reto está próximo a um retângulo.

E nos sábados seguintes ele foi, punha a bíblia debaixo do braço e assim que colocava a mão na maçaneta me convidava:

- Vamos no culto Guilherme?

- Quem sabe na próxima! – eu o respondia.

Isso durou tanto que já nos dávamos melhor. A única discussão séria foi quando me contou do surgimento do próprio Lúcifer. Um traidor, que invejara o reino do próprio Criador.

- Mas se Deus criou o arcanjo que o traiu, então Deus criou o Diabo? – perguntei.

- Isso é blasfêmia! Tome cuidado com isso, você está blasfemando contra Deus!

Um silêncio tomou conta da sala enquanto seu dedo apontava em minha direção. Foi a única vez que o fiz perder a cabeça, que nos encontramos pela manhã receosos da conversa da noite anterior.

Nas semanas seguintes parecia que nossa convivência estava atada a um fio que sustentava o enorme peso de nossa autoafirmação. Creio eu que pessoas como nós nunca poderíamos conviver num mesmo ambiente, somos como animais que brigam pela supremacia de seu território, vamos lapidando um ao outro em busca da real natureza humana tal como uma pedra preciosa, e pouco a pouco retiramos os resíduos que nos reveste de bom senso e cordialidade.


Numa terça feira disse que precisava conversar. Estávamos os três sentados a sala quando disse que havia decidido se mudar. De fato estava a se isolar cada vez mais, e me pareceu ter tomado uma decisão acertada. Na manhã seguintes levou algumas panelas que havia trago, tapetes e sua TV.