sábado, 3 de dezembro de 2016

Arranha-céu




“O passado é como estar defronte a um arranha-céu. Quando pouco distante, têm-se pouca visão de seu todo, mas enxerga-se detalhadamente sua estrutura. Alguns passos para trás, nos afastando, conseguimos enxergá-lo com uma visão mais ampla, mas os detalhes se perdem numa visão míope”.


A primeira vez que me recordo de ter a visto foi descendo as escadas do corredor que levava ao pátio da escola. Seu cabelo vermelho fazia-a destoar da multidão que descia para o intervalo entre as aulas. O prédio da escola era antigo, construído nos anos 30, possuía dois andares de salas de aulas e no andar superior os corredores que levavam às salas eram abertos de forma que era possível ter uma visão panorâmica de todo o pátio abaixo. Os alunos desciam por uma escada em espiral escondida entre as paredes do prédio do segundo andar para o pátio ao soar dos sinos como um enxame de formigas guiados por feromônio. Nesse dia em que a vi, a maior parte das pessoas já havia descido, e ela veio vagarosamente, como se diferente de todos os outros não tivesse pressa alguma, eu estava nos corredores do segundo andar e quando lhe pus os olhos ela voltou seu olhar para cima, um olhar que me ofegou por um instante, interrompeu a conversa que levava, olhos tão verdes e reluzentes, emoldurados por seu cabelo vermelho estonteante, que por um breve instante me perguntei porque não antes a havia notado se a tanto tempo estudava na mesma escola e a tanta gente conhecia, ainda sim o semestre estava  quase por acabar e em nenhum de seus dias havia lhe colocado os olhos. Seu olhar ainda que breve pareceu uma eternidade.

No outro dia eu estava lá, escorado nas cercas que circundavam o segundo andar na esperança de a ver novamente, e ela no mesmo compasso desceu, logo após toda a multidão se dispersar, olhou novamente, e agora a segui, quis saber para onde ia pois estava a andar sozinha novamente, até que um amigo interrompe: “essa menina aí é muito gata”, disse, fitei-o concordando, mesmo não lhe dizendo nenhuma palavra, mas a perdi quando voltei o olhar para o pátio.

-Quem é ela? – Perguntei.

-Cara não sei, mas ela é nova aqui.

-Como assim nova? Não a havia visto antes.

-Parece que veio do turno da noite.

Suas palavras me incomodaram, senti que esse detalhe sórdido tirava do meu imaginário aquilo que parecia perfeito até então. O turno da noite era outro mundo para nós que estudávamos no turno diurno, eram pessoas mais maduras que já trabalhavam ou voltaram a estudar, já namoravam e tudo o mais que uma vida adulta parece ser, e eu, no auge dos meus quatorze anos temia que ela carregasse todo esse amadurecimento que não possuía, e isso me fez desistir de qualquer ideia de conhecê-la instantaneamente.

Talvez pelo medo eu tivesse desistido de conhecê-la, mas a vontade de pôr os olhos nela todos os dias não diminuiu. Aos poucos ela já passou a não descer mais sozinha, e durante um mês seu círculo social pareceu aumentar, até que um dia desceu com um rapaz e a sensação de perca eruptou em mim, e talvez por coincidência ou não, esse foi único dia que meu olhar não foi retribuído.

Um dia ao chegar na escola me deparei com ela no mesmo corredor onde me punha todos os dias e pela primeira vez pude a olhar bem de perto, e bem mais vermelho parecia seu cabelo assim como o verde de seus olhos pareciam mergulhados num brilho oceânico.  Seu rosto era de uma seriedade tamanha, os olhos pareciam estar sempre cerrados, o nariz grande e estreito vinha de encontra a lábios tão sutis que duvidei que pudesse sair ali qualquer som. Ela e todos os que havia notado em sua companhia nas últimas semanas estavam por perto, sua sala de estudos passaria do primeiro andar para outra defronte a minha a partir daquele dia. Que sorte a minha!

Nos dias seguintes já não me punha a olhar para baixo se não que agora dava de costas para o pátio e sua multidão. Ela tão pouco descia religiosamente como antes e logo fez amizade com alguns colegas meus de sala. Com o passar dos dias mais pessoas próximas a mim a conheciam, e falavam de suas tatuagens, o que me fez temer ainda mais sua maturidade pois talvez ela fosse a única em todo aquele corredor a possuir tatuagens, algo impensável para um adolescente de quatorze anos naquela época, seja pelo preconceito, seja pela submissão aos pais e o dinheiro dispendido para eternizar um desenho na pele.

-Grilo, ela mostra as tatuagens se você pedir. Cara, ela tem uma aqui na cintura que a calcinha atrapalha a ver, daí ela abaixa a calça e você vê a marca da calcinha. Nossa velho do céu, ela é muito gata!

A essa altura eu já sabia seu nome, Amanda, assim como havia me acostumado com sua presença nos corredores. Todos usavam uniformes na escola, e as únicas peças que diferenciavam os alunos era algum adereço e o calçado. Me lembro bem do seu adereço, eram duas pulseiras que jogadores de futebol usavam como símbolo do combate ao racismo, uma branca e outra preta, em alta naqueles tempos. Amanda era um tanto masculina, andava desengonçada a balançar desordenadamente os braços, com o tronco e a cabeça compassados por um movimento homogêneo, não havia muita sutileza no seu caminhar de poucos movimentos, exceto o dos braços que pareciam perdidos. Numa das vezes que decidi descer para o pátio, ao retornar ela estava brincando com um amigo, aplicando-lhe uma “gravata” ao chão, ele era um tanto pequeno, então quando passei e vi os dois ele disse:

-Por que você não bate no Grilo que é do seu tamanho? – Nos encaramos, como se ali tivéssemos que nos provar, ela que era capaz de fazer o mesmo a mim, eu de que em nada me sujeitaria a uma cena como aquela, mas nada aconteceu, nos olhamos mais uma vez, e ela sorriu. No dia seguinte estava lá eu, mais uma vez escorado, no mesmo lugar que me acostumara a ficar e ela veio, quase que como um aviso de que era capaz de me derrubar, enquanto conversava com meus amigos ela me apontou um arame retorcido e me espetou com ele, eu senti, mas fingi não, talvez o medo daquele suposto amadurecimento para o qual não estava preparado me fez a ignorar no primeiro instante, mas depois da terceira “espetada” e ela ali, de frente para mim, foi impossível ignorá-la, afastei o arame com a mão, ela não se contentou e tentou espetá-lo novamente,  afastei de novo, e ela de novo e de novo, até que tomei o arame e ele estava agora parte nas minhas mãos, parte nas mãos dela, e se retorceu até se perder e a nossa disputa passou a ser somente usando as mãos.

Ela queria me derrubar, o podia sentir, era um desafio! Leonardo, o amigo que o propôs agora chegava e agitava: “Agora você achou alguém do seu tamanho! Faça isso que você fez comigo com ele, faça! Agora eu quero ver! ”, e ela tentava e eu assumi um desafio também, tomar-lhe as pulseiras! E assim num jogo de mãos terminamos aquele intervalo.

No dia seguinte assim que passei ela me retribui com um olhar e um sorriso, como se dissesse que o assunto ainda não estava por acabado. Ao soar os sinos lá estava eu, na mesma grade, com os mesmos amigos ao redor, mas ela só foi ter comigo ao fim do intervalo, e parecia tímida, mas ao mesmo tempo impulsiva, me deu um empurrão e foi só. Com o passar dos dias inexplicavelmente voltamos a nos encontrar, simplesmente acontecia, procurávamos inconscientemente o outro e quando nos dávamos por conta estávamos novamente em uma batalha.

Durante algumas semanas isso foi acontecendo, até que a minha turma foi transferida de sala e não mais estaria defronte à sala de aula dela, mas do outro lado do prédio, ainda no segundo andar. Essas mudanças ocorriam frequentemente naquele ano já que a escola estava em reforma. Eu pensei que essa distância nos afastaria pois agora a escada em espiral estaria entre nós, e novamente teria que me contentar em a fitar de longe. No dia seguinte ao primeiro dia da mudança lá estava ela, do outro lado do prédio antes da aula começar, do “meu lado do prédio”, conversando com um amigo, “Andy”, era o apelido que eu mesmo dei a ele. Nessa época eu havia comprado meu primeiro skate e estava fascinado com o esporte, e foi quando eu “estourei” o primeiro rolamento, peguei o anel e coloquei no dedo. É claro que ela notaria e tratou de zoar comigo:

-O que é que é isso meu filho?! Você está namorando? Isso é um rolamento no seu dedo?! Ficou estiloso hein?! – Disse num tom tão irônico que ali mesmo tratei de tirar o anel, quase que desesperadamente para que cessasse suas ironias. Quando por fim consegui tirar, já vermelho de constrangimento ela voltou a falar:

-Você ficou vermelho tal como um pimentão, esse anel é de namoro?

A pergunta novamente veio só que num tom diferente, ela não sorriu quando a olhei sério, expliquei que era um rolamento e que andava de skate, ela se interessou pelo assunto, ficou séria, talvez esperando uma resposta, ou talvez o assunto a tocasse, e certamente tocava a mim.

No intervalo ela estava à minha espera na porta da sala de aula. A aula era de Geografia e estava no fim, os sinos estavam prestes a ressoar, mas para mim já havia acabado, naquela época eu já havia desistido de ser um bom aluno, obter boas notas e tudo o mais que se espera de um estudante. Havia sido reprovado no anterior e por isso não dividia a sala com ela que estava um ano à frente. Eu queria mostrar algo reprimido em mim mesmo e a forma mais fácil naquela época era parecer ao mundo que eu estava pouco me “fodendo” para ele.

Ela se aproximou um pouco mais da porta que estava aberta. Nos olhávamos fixamente, até que a professora se incomodou com sua proximidade e pediu para que ela se retirasse dali, eu ri bastante, pouco depois a aula acabou e fui lhe encontrar rindo daquela situação, todos saíram e voltamos a sala de aula e começamos mais um capítulo das nossas batalhas, desconfiguramos toda a sala, os materiais escolares dos meus colegas caíam a medida que nos empurrávamos, lápis, borrachas, cadernos e fichários estavam aos montes no chão, consegui dominá-la e caímos, abracei-a como uma camisa de força, era a primeira vez que segurava uma mulher em meus braços, seu cheiro era inebriante, seu cabelo tão macio, ela beliscava minha barriga com os poucos movimentos que lhe restavam, o tempo passou muito rápido naquele abraço, tanto que não nos demos conta quando o intervalo havia acabado, até que o professor da aula seguinte nos pegou jogados ao chão abraçados, eu a soltei de súbito e ela tão rápido quanto se levantou e saiu.

“O que aconteceu nessa sala? Parece até que passou um furacão por aqui! ” – Disse a professora ao se deparar com a bagunça que havíamos feito. Não sei ao certo se ela nos viu agarrados e acredito que nem mesmo ela tinha certeza se a cena era mesmo o que parecia.

Com o passar do tempo nossas batalhas eram tão comuns quanto populares, e a diretora da escola já havia nos “marcado” e o ódio entre Amanda e ela era latente. Nas quintas, logo após o intervalo era minha aula de educação física, e nunca deixei de fazer parte do time de futebol, mas as nossas brigas estavam me tirando as forças até para coisas que não abria mão. Numa dessas quintas havíamos tido uma luta daquelas! Adentramos numa das salas desocupadas que iriam ser as próximas a serem reformadas, aos solavancos e empurrões, consegui segurar-lhes os braços a minha frente, nos olhamos, esquecemos a briga naquele instante, senti que era a chance de beijá-la, não que estivesse a buscar essa situação, e não que a não quisesse, mas quando se é jovem e tímido como eu as coisas simplesmente não acontecem. Eu pude sentir desde o primeiro dia que era uma vontade mútua, sentia sua ausência quando falhava a aula e ela a minha, sempre nos cobrávamos de alguma forma, como se um dos dois estivesse faltado a um compromisso. Os feriados eram terríveis! Quando prolongados um martírio... E o ano lá ia se acabando e a frustração creio que nos consumia e ela nesse dia nunca esteve tão perto e eu nunca tão confiante, algo instintivo brotou em mim e quando dei o primeiro passo e afrouxei a pressão que fazia em suas mãos ela tomou minha camiseta pela gola e a rasgou! Sim, ela conseguiu rasgar minha camiseta e saiu rindo e contando a todos que encontrava. Saí da sala cabisbaixo, pela frustração e pela camiseta.

Nessa época eu trabalhava numa vídeo locadora fazia exatamente um mês. O “salário” era simbólico, mas a possibilidade de poder jogar games o dia todo era o que me atraía. A locadora era situada num bairro de classe baixa e por isso não raro tinha de aturar alguns marginais, traficantes, brigões, viciados em games e todo o tipo que aparecesse. Mas na maior parte dos dias meus amigos também estavam por lá, até para poderem compartilhar da minha jogatina gratuitamente, sem que o dono que trabalhava na sua mercearia ao lado da locadora percebesse, e por isso não raro anotava registros fantasmas para poder nos justificar. Minha mãe no dia que Amanda rasgou minha camisa foi levar um lanche para mim até a locadora e perguntou aos meus amigos “quem era ela”. Quando fui dar a camisa para que costurasse viu marcas por todo o meu corpo, seus beliscões e tapas haviam deixado hematomas por todo o meu tronco. Senti que minha mãe estava preocupada, afinal, isso estava a acontecer na escola, mas ao mesmo tempo sentia se feliz por ver seu filho supostamente dando seus primeiros passos junto a alguém, mesmo que esses passos parecessem um tanto violentos.

No dia seguinte, quando acordei vi que minha mãe ainda não havia consertado a camisa e teria de ir com ela para a aula. Assim que cheguei Amanda me recepcionou rindo, ela sempre chegava antes que eu apesar de morar a uma distância consideravelmente maior. Vinha de bicicleta e por isso talvez conseguisse ser mais rápida que o meu despreocupado caminhar. Ela riu quando viu a camiseta e disse:

- Uai fi, cê num tem outra camiseta não?

Eu realmente não tinha outra camiseta e aquela de certo estava velha demais e por isso rasgou. Senti vergonha quando ela disse isso pois nunca dava atenção a certas coisas como roupas, ainda mais se tratando de um uniforme. Quando cheguei em casa pedi para minha mãe que comprasse outra camisa e ela assentiu vendo que a minha estava velha. Foi ao Centro da cidade, comprou-me uma nova camisa de uniforme e costurou a antiga.

Amanda era uma das garotas mais bonitas do colégio e eu de fato nunca entendi o motivo de ter me escolhido. A minha segurança era tamanha que nunca lhe tive ciúmes, bastava por me os olhos para vir a ter comigo. Nos gostávamos, tenho certeza, como em poucas vezes na minha vida tive sobre o assunto. Quando a reciprocidade é tamanha não há espaço para incertezas e nunca temi perdê-la, o que me angustiava era o tempo passar e o fim do ano se aproximar e então viria as férias e ficaríamos distantes. No ápice da minha imaturidade, não via saída para isso, nem meios pareciam existir. Naquela época, as pessoas começavam a usar o celular e era comum a troca de mensagens, ou curtas ligações que duravam não mais que três segundos, não tarifadas neste caso. As pessoas se falavam, ainda que um pensamento demorasse um acumulado de parcela de apenas três segundos. Eu não possuía celular, mas ela sim, e mesmo que tivesse, minha timidez seria uma barreira de modo que acredito que nunca ligaria. Ainda sim tomei nota do seu número e guardei o pedaço de papel como nunca havia guardado uma informação antes.

Os dias passavam, e seu cheiro era como o perfume de uma roupa enxague em amaciante nos meus uniformes. Como era bom abraça-la e proporcionalmente difícil beijá-la! Nossas brigas ainda continuavam, e ela passou a abaixar minhas calças. Quando fazia saía todo desconcertado tentando me reestabelecer o mais rápido. Numa dessas a fiz limpar o quadro esfregando-a na lousa, noutra também abaixei suas calças. Nesse dia nunca a vi tão séria, quando me abaixei temi levar um chute, minha cabeça ficou à altura do seu joelho e por mais que tivesse intimidade, abaixar suas calças extrapolava-a. Tenho de fazer notar que era uma calcinha vermelha e suas pernas brancas, uniformemente brancas como todo o seu corpo. Ela se abaixou muito calma, reergueu as calças que eram calças de uniforme suspensas apenas por um elástico, por isso eram tão fáceis de se abaixar, me olhou firme como se avisasse que aquilo era permitido apenas a ela que o fizesse, deu de costas e não quis ter mais comigo durante o intervalo.

No outro dia não veio até mim, como se esperasse um pedido de desculpa, mas de certa forma eu sabia que as coisas se acertariam. Eu me senti mal pela brincadeira, tinha consciência que havia trespassado os limites de nossas batalhas, mas ao mesmo tempo a imagem resultante era inexplicável, fruto da minha ingenuidade. Eu nunca havia beijado alguém, quanto mais visto uma peça íntima vestida. Queria que soubesse disso, que ela seria a primeira, e quão bem eu começaria. Me disseram que ela talvez não tivesse tocado os lábios de uma outra pessoa, mas não quis perguntá-la, e uma dúvida ao mesmo que uma esperança de que aquilo fosse verdade enchia meu peito.

As provas finais haviam chegado... me lembro que foi num dia chuvoso que ela me disse:

-No ano que vem não vou mais estudar aqui.

- Por que? - Disse, tomado de uma sensação de vazio, olhando-a enquanto sem ânimo se desviava numa brincadeira com o guarda-chuva.

- Minha mãe acha muito longe eu vir para cá todos os dias para estudar e eu vou voltar para a minha antiga escola que é mais perto.

Aquilo de certo era o fim de algo que eu não sei ao certo o quanto duraria, mas parecia infinito até então. Não havia outra saída, se tratando de decisão de mãe, nada eu poderia fazer e nem ela para mudar. Ela parecia não querer, estava chateada mas sabia que seria feito. Ainda ficamos em recuperação com a mesma professora, Cátia que lecionava álgebra. Naquele ano eu havia sido um bom aluno, talvez por ter me dado conta do tempo perdido devido a reprovação, ou mesmo numa esperança infundada de que me esforçando quem sabe podia dividir uma sala de aula com ela.

No último dia de aula era realizado o amigo secreto. Eu havia levado meu skate para desfrutar do relaxamento da direção nesse dia devido as festividades de fim de ano. Era proibido andar de skate na escola, bem como se apresentar trajando algo que não fosse o uniforme, mas ambas as regras nesse dia sofriam um relaxamento e eram revogadas. Foi a única vez no ano inteiro que pus os olhos nela sem uniforme. Ela desceu a escada em espiral trajando uma blusa preta de alças que lhe caiu perfeitamente bem, acompanhado de uma calça jeans que definiam bem suas curvas. Foi a primeira vez que a vi maquiada também, com um leve lápis preto que emoldurou ainda mais seus olhos verdes, um toque sutil de rosa nas maçãs do rosto e um batom que reavivou a cor dos seus lábios, tudo tão sutilmente posto naquela face, sem que perdesse o ar sério que lhe caracterizava. Em suas mãos carregava seu presente de amigo secreto, uma flor artificial com seu nome, mexia naquilo cabisbaixa, senti que estava triste, nunca antes havia falado tão pouco.

- Onde você vai? – Me perguntou.

- Vou andar de skate.

- Então você anda mesmo.

- Sim, achou que era mentira?

Ela me esperava, como nunca me havia esperado antes. Não quis brincar, não quis sorrir, nem sequer tocou em mim, não antes que pudesse sentir meus lábios e eu não me dei conta, não percebi, nem que estava tão linda nesse dia, não como deveria tê-lo notado, nem que estava ali para que aquilo não se transformasse num adeus. Eu não conseguiria, mesmo que tivesse coragem, estragaria tudo de alguma forma, bastava um passo à frente, pegar-lhe as mãos carinhosamente que notaria que não se tratava de uma última briga, levaria ela a praça e lá podíamos transformar aquele semestre numa lembrança perfeita, ao menos não em um adeus. Eu sabia, senti, mas mesmo assim disse apenas que voltasse quando pudesse a escola, não me dei conta que não a veria mais, não nos próximos três anos.

domingo, 30 de outubro de 2016

Eloquência - Caio Machado



- Maurício, a minha amiga ali quer te conhecer.
- Bonitinha. Que que eu tenho que fazer?
- Chega junto.
- Tem muito tempo que não saio. Tô meio enferrujado...
- Beleza, vou chamar ela pra vir aqui, pode ficar sentado aí mesmo. Quando ela vier eu saio.
- Valeu.
- Oi.
- Oi, eu sou o Maurício.
- Ah.
- Como você se chama?
- Clarice.
- Bonito nome. Quantos anos você tem?
- Vinte.
- Ah, eu tenho vinte e três.
- Hmm.
- É... de onde você conhece o Pedro?
- Acho que minha amiga Luiza foi colega dele.
- A Luiza da Engenharia Química?
- Sim.
- Putz, conheço ela demais. Deixa eu adivinhar, você é a caloura que tá morando com ela né?
- Não.
- Mas então é do curso também?
- Não.
- Você faz qual curso? Nunca te vi no campus.
- Não faço faculdade não.
- Tá estudando pro vestibular né? Semana que vem eu vou fazer o ENEM de novo.
- Nem me inscrevi.
- Eita.
- É...
- Vou pegar outra cerveja. Clarice, você me espera? Quer alguma coisa?
- Não precisa não. Eu espero.
- Desculpe a demora, a fila tava grande. Pedi pro Pedro ficar no meu lugar, aproveitei e fui ao banheiro.
- Ah.
- Podia ter Kaiser aqui. Não gosto muito de Skol.
- Ah sim.
- Amanhã vai ter segundo turno né?
- Ahn?
- Segundo turno das eleições municipais. Em qual candidato você vai votar?
- Eu não voto aqui, sou de Linhares. Meu título é de lá.
- Tenho um primo que trabalhou lá. Você vai viajar pra lá pra votar?
- Sei lá. Como chama aquilo que se faz quando não vota?
- Irá justificar o voto?
- Sim.
- Mas qual dos candidatos te agrada mais?
- Não sei.
- Eu vou votar no Campos. Ele tem umas pautas sociais interessantes. Fora que ele apoia sempre a ONG das Meninas em luta. Você curte feminismo?
- Ah, uma amiga minha me enche às vezes com isso. Ela quase foi estuprada uma vez. Aí ela fala muito disso.
- Entendi. Tá gostando da festa?
- Não muito.
- Tô ansioso pra ver a banda, apesar de se cover e tal. Você gosta de qual música deles?
- Acho que não conheço nenhuma. Não gosto muito de música.
- Hmm. Vai postar essa foto no Instagram?
- Sim.
- Eu não gosto muito de bebidas quentes.
- Eu não bebo.
- Então porque tá com esse copo e publicando no Insta?
- Sei lá, é open bar né. Paguei...
- Hmm. Me segue lá. Não publico muito, mas pra mantermos contato mesmo.
- Pega aqui meu celular e coloca pra eu te seguir.
- Nossa, é o novo Galaxy? Não vai explodir na minha mão?
- Ahn?
- Nada, foi só uma piada. Você não viu que alguns explodiram?
- Não.
- Pronto. Vou colocar pra te seguir aqui.
- Tá bom.
- Você também gosta de Queen?
- Não.
- É que você acabou de curtir minha foto da camiseta que tenho deles.
- Ah tá, é que eu gostei do desenho.
- Que que você gosta de fazer hein?
- Como assim?
- Você malha? Pinta? Sei lá, estuda francês.
- Gosto de ficar em casa.
- Entendi. Sou mais caseiro também, mas resolvi dar uma saída. Tava ficando meio encanado.
- Não gosto muito de sair.
- O show vai começar.
- Uhum.
- Clarice, você vai ver o show né?
- Se as meninas forem, sim.
- Não é muito a praia da Luiza não...
- Ah.
- Você gosta de ler?
- As vezes leio a bíblia.
- Sério?
- Sim.
- Achei que você curtisse um Nietzsche.
- Quem?
- Cé tá de sacanagem né? Você é a guria mais niilista que eu já conheci.
- O que é nillista?
- Clarice, sua mão tá gelada.
- Achei que a gente fosse ficar.
- Sem mais nem menos? Sem conversar?
- Isso é uma festa. Pra que conversar?
- O Pedro disse que você queria me conhecer.
- Eu falei pra ele que queria te beijar, mas você fala demais.
- Hmm.
- A Luiza tá indo lá pra frente. Vou ver o show com ela.
- Vai indo que eu vou depois.
- Tá.
- Poxa vida.

domingo, 16 de outubro de 2016

Las palabras que me solías decir - Paulo Cesar Corrêa

 “Te quiero”
Estas son las palabras que María solía decirme cuando caminábamos tomados de la mano por las calles de Barcelona mientras comíamos un helado de Vioko. Éstas son las palabras que me susurraba después de pasar días felices en la playa de Barceloneta o con nuestros amigos en Sant Miquel. Me las gritaba cuando en la moto, salíamos a toda velocidad por la Passeig de Colom, bajo las miradas acusadoras de personas que ya se habían olvidado la belleza de amar. 
Pero no más. Ahora la veo con las manos más hermosas del mundo en la solapa de la chaqueta de otro hombre, una sonrisa en la cara y los ojos brillantes, diciéndole las palabras que me solía decir. 
Aún me quedo mirándola. Ha cambiado, pero todos cambiamos ¿verdad? Lleva más maquillaje en la cara que cuando la conocí, tiene el cabello más largo y quizás haya crecido un poco también. Pero hay algo más, algo interior. Quizás el hecho de que esté mayor y no tan ingenua como hace tres años. Ella lo besa y si hubiera un Dios en el cielo, no la dejaría hacerlo. Si hubiera un Dios, le recordaría todos los momentos que vivimos juntos, de todo lo que compartimos. 
El tipo le da una cachetadita en el culo y ella se ríe. María se aleja de él, yéndose en la dirección del portón de su casa. Los dos tienen una expresión bonita en la cara y con un grito feliz, María le dice las otras dos palabras que me solía decir. Las palabras vestidas de una esperanza y de un futuro: Hasta mañana.

(...)

La calle está vacía, bueno, hay uno que otro perro caminando, pero no se ve nadie. Puedo ver la ventana de la habitación de María, la luz está encendida. Ella vive en una casa de dos pisos, pintada de marrón y blanco, con un jardín que embellece la parte delantera de la casa en donde se ven las rosas que plantamos en un día de verano, en compañía de mi hermana, Lea y su novio. Ellos llevaban cinco años juntos, una historia de amor que sólo se ve en las películas de Nicholas Sparks – una de esas tan melancólicas que te dan ganas de morir. Fuimos a la Basílica de la Mercè y después, almorzamos una comida mexicana en Señor Burrito, recuerdo que la comida estaba para chuparse los dedos y a María le había encantado la decoración del restaurante, “Una pasada”, decía ella. 
¡Hostia! ¿Por qué todas estas cosas me vienen a la cabeza ahora? Una vez, un chico brasileño me dijo que a la memoria le gusta mantener las cosas que hacen sonreír al corazón. Un día todo eso me hizo reír, pero ya no. Me cagué en todo, ya no tengo más a mi hermana y tampoco tengo a María.
Pero ¿Qué pudo ser tan terrible como para haber perdido todo? Quizás esta sea su pregunta, querido lector. Bueno, creo que lo que dice San Pablo en el libro de Gálatas: “todo lo que el hombre siembre, eso también segará”, es verdadero.
Hace tres años, yo no era el hombre lleno de arrepentimientos que soy ahora. Tampoco me importaba lo que pensaran los otros, sólo me apetecía salir con mi pandilla, Los Águilas. Éramos como que un mito en Barcelona, nos conocían todos, éramos temidos. Es bueno eso: ser temido, pero solo por un tiempo. Después, cuando creces, te das cuenta de que todo lo que quieres es paz y alguien con quien disfrutar un buen vino. 

Era un viernes soleado, mi moto estaba en el taller y mi hermana me había pedido que la ayudara con su nuevo proyecto en la oficina de arte donde trabajaba. No importa si tú eres un violento y un joven rebelde, cuándo tu hermana te pide algo, tú lo haces, es instintivo.
Subí en el bus que iba en dirección al centro, donde quedaba el trabajo de Lea. Haces de luz entraban por la ventanilla, una niña lloraba no se sabe el porqué, un hombre con una chaqueta hablaba en el móvil, una pareja de adolecentes compartía un auricular, escuchando las canciones más románticas para ellos; un chico canturreaba algo que me parecía una cancioncita de Quique González − después de un tiempo escuchándolo me di cuenta que era Piedras y Flores. Pero mis ojos se detuvieron en una chica cerca del conductor: llevaba una falda azul transparente y una camisa blanca, el pelo rubio le daba una apariencia angelical, cayéndole por sus hombros y el cuello. Tenía las piernas más bonitas que había visto ¡Que raro! Si estuviera cerca de ella ¿Le habría notado las piernas? Algunas veces, sólo notamos las mejores cosas de una persona cuando la vemos desde lejos. 
¡Guapa! Yo grité, ¿Quieres compañía?, Ella no me escuchó, me acerqué y una vez más grité: Oye, guapa ¿Quieres compañía?
La chica me miró enfadada y con un derechazo me golpeó en la cara. 

(...)

− ¿Te dolió la cachetada? – Mi hermana se echó a reír cuando me vio con la mejilla roja. 
− Un poco − Pero la verdad, me ardía como el fuego. 
− ¿Se puede saber por qué te pegaron?
− Solo quise ser un buen chico y hacerle compañía a una chava. 
Lea me miró con las cejas levantadas, creo que en su cabeza ella estaba pensando “Que tipo tonto ¿Es mi hermano de verdad?”.  
− ¿Y era guapa? – Me preguntó mientras se ponía los guantes. 
− Bueno, las piernas eran una maravilla. − Yo le sonreí.
− Eres un tonto.
Trabajamos un rato sin hablar, estar con Lea me hacía ser diferente, cuando estaba con ella el tipo violento y temido simplemente no existía. El nuevo proyecto de ella consistía en hacer ocho pinturas originales representando la regresión humana, desde la paz del Edén hasta los días de guerra en que vivimos. Cada pintura tenía dos metros de altura y tres y medio de ancho. Lea me dijo que había contratado a una aprendiz para ayudarla.
− Creo que va a llegar pronto, me dijo que llegaría un poquito tarde porque tuvo un problemita en el bus en el que estaba.
− Que clase de problema – Pregunté, tranquilo.
− Un idiota la estaba molestando, según ella, bajó del bus y se fue a la delegación de policía para presentar cargos contra el hombre. 
¡Hostia! ¿Cuáles eran las probabilidades de que eso ocurriera? Traté de tranquilizarme, pero cuando oí una voz de mujer detrás de mí diciendo “hola” para mi hermana, supe que era ella. 
Y fue así que conocí a María. 

(...)

Ahora debes estar muy confundido, ¿Verdad, lector? Tu pregunta debe ser algo así “¿Y cómo vosotros salisteis del rencor al amor?” Bueno, eso es sencillo: la línea entre las dos cosas es muy frágil, empiezas a conocer de verdad a la persona y descubres que tienes los mismos gustos que él/ella. No fue fácil con María, tengo que admitir que en muchos momentos ella era la chica más tocapelotas y aburrida del mundo, pero algo en ella me hacía querer conocerla mejor. Quizás el amor por la vida y por las cosas simples. Es necesario valorar las cosas simples y aunque yo fuera un rebelde y gilipollas, a mí me gustaba disfrutar de la tranquilidad y la belleza en la simplicidad de algunas cosas, como tomar un café en DelaCream, cerca del Museo Picasso de Barcelona o mirar las olas de la playa, blancas y salvajes. 
Un helado aquí, un café allí. Una invitación para una corrida de motos, encuentros casuales en Razzmatazz en las noches de sábado, una cena en un restaurante chino y puff, nació un sentimiento. Poco a poco, nos entregábamos a una nueva sensación, llena de sonrisas y satisfacción. 
Creo que ya has estado enamorado ¿No? Todos ya lo hemos. Primero empiezas a creer que la persona amada es tu universo, el primer pensamiento del día, justo cuando despiertas, lo dedicas a la chica que quieres, después te preguntas que está pensando y que está haciendo, entonces te dan ganas de llamarla y escuchar su voz, su risa, sus resoplos y te pones a imaginar las muecas que hace al otro lado de la línea. 
Sí, siempre existen los momentos de tensión, cuando los dos no concuerdan con algo o cuando él cree que ella lleva una ropa muy escotada o cuando a ella le parece que la mirada que él da a una chica es más demorada de lo debido. Pero, como dice Salomón, “hierro con hierro se aguza; y el hombre aguza el rostro de su amigo”. Las pequeñas peleas son importantes para una relación, la mejoran y te tengo que decir, lector: echo de menos estas peleas. 

(...)

Carajo ¿Por qué dejo que estos recuerdos lleguen? Son una bendición, pero también una maldición. Ya no quiero acordarme de la primera vez que nos besamos en un concierto de U2. Tampoco quiero recordar cuando nos fuimos a Valencia a visitar a sus padres y como estuvo de la hostia cuando andamos los cuatro en cicla con el Mediterráneo como testigo de nuestro amor. Aún menos quiero recordar cuando mi hermana sufrió un accidente con su coche, como echo de menos a mí Lea… si pudiera, le pediría a Dios para que me llevara, pues no puedo soportar más esta vida, pero esto sería egoísta. 
Ya no quiero pensar más en María, en como la perdí. Ella me había pedido razonar mejor las cosas, ser menos agresivo, pero ¿Cómo podría estar tranquilo? Mi hermana estaba muerta, mis ansias por caer en las hostias con alguien eran muy grandes. A mis padres no les importaba, ya estaban felices, ya salían con su pandilla de viejos a jugar póquer o algo así. 
Era un miércoles. Barcelona y Real Madrid habían jugado, la ciudad estaba hecha un caos. María me esperaba en el salón de belleza, me había dicho que se quería cambiar el peinado, pues el que tenía ya estaba “out of fashion”. Como me encantaba cuando ella decía las palabras en inglés con su inconfundible acento catalán. Debía recogerla a las ocho de la noche, pero nunca aparecí. Estaba en la delegación de policía porque había golpeado a un tipo en la cara ¿Por qué? Simplemente por ser un mal conductor. El tipo tenía un Audi A4 azul, muy bonito, pero ¿Para qué un coche de la hostia si conduces peor que un niño de tres años? 
El hombre de unos cuarenta años tenía una botella de Heineken en una de las manos y en la otra un cigarrillo. El semáforo estaba en verde pero él no se movía, toqué la bocina como que tres veces y nada. Bajé de mi moto y me fui hacia la ventanilla del coche. El mamarracho estaba tranquilo, como si nada estuviera pasando, la rabia hizo la sangre subir hacia mi cabeza, rompí la ventanilla del coche y el tipo, asustado, me miró por primera vez. 
− Desgraciado ¿Qué hiciste con mi coche? 
Fue la última cosa que dijo aquel día. Le golpee tanto en la cara, en la barriga, le rompí la nariz y tres costillas. Algunas personas pasaban pero no tenían la valentía de pararme, una mujer gritó “llamen la policía” y lo hicieron. 

(...)

María apaga la luz de su habitación, la echo de menos. El sonido de su risa, el brillo de sus ojos. Lo sé, fui un imbécil. María fue solo una vez a la cárcel para visitarme, dijo que nunca más quería verme en su vida, dijo que todos estaban en los cierto acerca de mí, que mi hermana tenía suerte de estar muerta para no verme en la cárcel. La escuché y la miré, pero no hice nada, ella tenía la razón.
Las estrellas brillan en el cielo y sus parpadeos me encantan por un rato. He salido de la cárcel hace una semana y echaba de menos las maravillas de la naturaleza. Miro una última vez la ventana de María, intento recordar su voz, es bella y ahora, la única cosa que quiero recordar, es a María diciéndome “te quiero” una vez más.

sábado, 13 de agosto de 2016

Quatro passos até ela - Paulo Cesar Corrêa

Álvaro relia, cada vez mais atento, o excerto de um poema de Pablo Neruda que estava escrito à caneta na contracapa de um livro que ganhara de presente. Normalmente, as pessoas escrevem declarações que vão te deixar animado ou feliz, afinal de contas, os presentes são para isso.
Recordava-se perfeitamente bem da cena: era sua despedida de solteiro. Algumas bebidas, música alta, conversa fiada. Ariel estava ao seu lado, um embrulho na mão. Disse que era um presente valioso para o futuro. “Para quando te deixe aquela zorra”, falou com um forte sotaque andaluz, entregando sua origem sevillana e depois, desatou-se a rir.
Todos ao redor riam. Tinham por certo que aquele matrimônio estava destinado ao fracasso mesmo antes de começar. Mas Álvaro não cria assim. Era crente demais no amor. Ou talvez cego demais. Abriu o embrulho, descobrindo um livro. “Que idiota”, pensou. Quem dá um livro de presente numa festa de despedida de solteiro? Passou os olhos no título: 4 passos para se reerguer depois dos chifres.
Que droga de livro era aquele?
Leu mais uma vez a citação na contracapa. “É tão curto o amor, tão longo o esquecimento”. Ariel deve ter passado horas na internet buscando essa frase. Ele não fazia o tipo que lia Neruda.
Deixou o livro na mesa de centro da sala e se levantou. Olhando ao redor,  podia perceber o quanto a casa havia mudado; a ausência de Daniele enchia os cômodos. Ao se pegar desta forma, Álvaro se lembrou de uma pequena crônica – mais para uma prosa poética – em que Dalton Trevisan narra a falta de sua “senhora”. O vaso de plantas que ornamentava uma esquina da sala já não existe mais. O frescor de uma casa limpa havia dado lugar a um cheiro de murrinha. A geladeira, que antes vivia cheia de legumes e frutas, transbordava de hambúrgueres Hot Pocket da Sadia. Talvez comesse um antes de dormir.
Por que ela o havia traído? Tinham construído uma boa vida juntos ao longo dos cinco anos de casamento. Um apartamento, carro, viagens caras de férias, plano de saúde. Os filhos não vieram por culpa de um nódulo no útero de Daniele, mas há algum tempo vinham discutindo a opção da adoção. Era como se a história deles fosse uma declaração de amor escrita na areia da praia, que logo desaparece quando sobe a maré.
Mas também tinha sua parcela na culpa. Gastava horas na agência de publicidade e, vez ou outra, levava trabalho para casa. Ademais, havia relaxado na aparência: não estava gordo, pelo contrário, parecia um esqueleto. Estava careca, a barba já com pontos grisalhos. Seu guarda-roupa havia parado nos anos 90, com raras mudas modernas.
Álvaro foi à geladeira, pegou uma Schweppes e, após dar um gole, voltou à sala, ao sofá, à mesa de centro, ao livro. Lembrou-se de Ariel. Aquele andaluz o havia avisado. Todos o haviam, mas, como disse Rubem Alves, todo apaixonado é tolo, sempre dizendo “o meu caso é diferente”.
Abriu o livro, lendo, pela enésima vez, o trecho de Neruda. Aquela frase era verdadeira na sua vida. O amor entre eles havia sido curto, mas o período de esquecimento estava se tornando fastidioso, mais longo do que ele gostaria que fosse. Já se haviam passado seis meses de luto e melancolia e algo deveria ser feito. No momento, a única ideia que o veio à cabeça foi ler o livro.
Mas não…
Ele não podia se entregar a tal coisa, a um livro de autoajuda. Porém, ao lembrar que, a essa hora, Daniele podia estar se divertindo com aquele desgraçado, Álvaro decidiu que a recuperação seria sua vingança.
Ao virar a página para começar a ler, Álvaro pensou: “Que seja!”
(...)
Passo 1: Extravase sua raiva com um grito
“A catarse. A liberação das emoções e tensões reprimidas.”
Assim começava o primeiro passo. A Álvaro, tal ideia o pareceu uma tonteria. Havia sido ensinado a engolir a raiva, a sorrir mesmo quando estivesse prestes a explodir.
Mas não podia recusar uma chance de, por fim, por para fora aquele nó que estava preso em sua garganta. E era algo simples. Mais fácil do que mergulhar sete vezes no Rio Jordão para ser purificado da lepra, como teve de fazer Naamã, comandante do exército sírio.
Álvaro foi à sacada. Percebeu que o céu carregava uma nesga de lua e que estava pintado com uma aquarela de cores com várias nuances de azul. Ficou ali um tempo, a contemplar; a se preparar para o grito, para a catarse. Mas antes, algo o pareceu deter, a boca entreaberta. Fechando os olhos, Álvaro sussurrou algo, como se estivesse jogando versos ao ar, esperando que o vento levasse seu sussurro. “Posso escrever os versos mais tristes essa noite: eu a quis e ela, às vezes, também me quis a mim”. E ao terminar essa frase, gritou com todo o seu ser, deixando jorrar a raiva e a melancolia que afogavam sua alma.   
(...)
Passo 2: Deixe de ser o idiota que era e dê uma reciclada

Álvaro parecia ter 25 anos sem barba. Nada mal, pensou. Enquanto tomava banho para ir ao trabalho, fez uma nota mental das coisas que teria de mudar para deixar de ser idiota. Suas roupas, logicamente, estavam no topo da lista. E se não quisesse ser um magrelo com barriga, teria de largar mão de comer esses Hot Pockets e ingerir coisas mais saudáveis.
Vestiu o blazer mais arrumado que tinha sobre uma blusa cinza. Pôs-se uma calça jeans semi-desbotada e um par de mocassins pretos. Olhando-se no espelho, não parecia tão mal assim.
Já no carro, em direção à agência, se pôs a lembrar da noite anterior e do grito de liberdade. De fato, um peso havia sido tirado dele e, se soubesse que seria tão simples se livrar daquele incômodo, já o haveria feito antes.
Ligou o rádio. Músicas aleatórias eram tocadas, passando por vários estilos, desde blues até sertanejo universitário. O trânsito estava lento, mas, por sorte, o dia não estava abafado e Álvaro ainda tinha tempo de sobra até chegar ao trabalho.
Começou a observar os detalhes da cidade: calçadas desuniformes, carros de todas as cores e marcas. Uma senhora andava com uma sombrinha aberta, protegendo-se do sol. Mais à frente, um viaduto se mostrava, também cheio de carros buzinantes, impacientes com o engarrafamento. Há muitos muros pichados também; a maioria das pichações são de teor anti policial ou declarações de amor adolescentes. Havia até uma citação de De Musset: “Qualquer que haja amado, possui cicatrizes”. Álvaro se riu por um tempo, voltando sua atenção para o trânsito.  Lembrava-se dos poemas de De Musset; lia-os, vez ou outra, para Daniele, no início do relacionamento.
“Cicatrizes”, ele pensou. Existe algo de interessante nelas. São como um sinal de alerta de que algo mal aconteceu. Mas o mais bonito de tudo é que, por mais que haja doído muito, no final de tudo, fica apenas uma marca indolor que faz com que se pense duas vezes antes de se arriscar.
Álvaro sentiu o celular tremendo em seu bolso, fazendo-o sair de seus devaneios. Se atrapalhou um pouco ao tentar pegá-lo. Era Ariel.
— Fala… sim. Claro. Sério? Bom, fico feliz. Inês deve estar animada. Quem sabe não os visito um dia lá?! Sim, tudo bem. Obrigado por compartilhar... Ah, a propósito, você tem algo programado para hoje à noite? Estava pensando em dar uma reciclada no guarda roupa. Quer tomar uma cerveja hoje depois que eu voltar das lojas? Assim elimino dois passos daquele livro. Sim, o li.... Você é um idiota.
(...)
Passo 3:  Largue o sofá e saia com um “bro”

— Então vai voltar mesmo para Sevilha?
Após terminar de comprar roupas que fossem do século XXI, Álvaro se encontrou com Ariel no Aloha’s para conversar e tomar umas latas. O bar ficava numa avenida movimentada. O seu interior era mal iluminado e, naquela penumbra, a visão ficava descansada, dando uma sensação de relaxamento. Havia duas mesas de pool no canto. Universitários apostavam cem reais para ver quem ganhava uma partida.
— Bom...só se você me prometer que não vai chorar. — Ariel riu.
— Você é um id...
— À propósito, na próxima vez que quiser me insultar, pense em algo mais criativo que “idiota”. Você fala demais essa palavra. — Tomou um gole, esperando Álvaro absorver seu conselho. — Escuta, vou te ensinar uma nova. Toda vez que eu for um imbecil, me diga: tu eres un gilipollas. Assim você não fala palavrão e está me insultando ao mesmo tempo. Genial, não? — Ariel mostrou seu sorriso amarelado e depois, esvaziou seu copo.  
— Não vou chorar. Mesmo que você seja um gilipollas, vai fazer falta aqui.
Conversaram por mais meia hora, falando sobre o trabalho, a tabela de classificação do campeonato nacional de futebol, a mudança de Ariel, como levaria seus pertences para a Espanha, e outras tonterias que não valem a pena serem escritas.
— Quer jogar contra aqueles riquinhos que estão na mesa de pool? — Ariel perguntou, apontando para dois jovens vestidos com camisa da Lacoste e relógios Rolex.
— Faz mais de cinco anos que não jogo e esses caras só jogam apostando. Certamente vamos perder e você é quem vai pagar.
— Deixa de ser marica e vamos. — Ariel já se levantava da mesa onde estavam sentados, puxando  Álvaro.
— Te falei. Se perdemos, quem paga é você. Tenho certeza que Inês não vai ficar feliz com a notícia de que você desperdiçou grana nessa aposta.
Ariel se aproximou dos universitários, propondo-lhes o jogo: estilo americano, uma partida seca, trezentos reais apostados. Os dois jovens se entreolharam. Contra esses “trintões” com ar de cansados e bêbados seria fácil demais. Aceitaram sem titubear.
As bolas já estavam postas sobre o feltro verde. Um dos jovens as organizou em uma forma triangular enquanto o outro se punha ao fundo, preparado para tacar.
Tac
Bolas de várias cores se moveram pelo feltro, deslizando silenciosas. Algumas se bateram, fazendo sons secos para depois, lentamente, se pararem. Começaram a jogar. Primeiro, tacadas simples, calibradas; depois, cada vez mais fortes, pretensiosas e difíceis. A Ariel e Álvaro, os restou ficar com as ímpares. Ariel meteu a primeira na caçapa. Os dois jovens derrubaram duas bolas, tendo mais sorte. Quando chegou a vez de Álvaro, tentou acertar uma bola que estava longe. Sem treinamento, a tacada saiu fraca, não conseguindo acertar na bola alvejada. Os jovens se olharam, sorridentes. Já sentiam os trezentos contos no bolso. Álvaro bebeu um gole da sua lata. Notou que naquele bar só existiam garçonetes — o que o pareceu estranho. Pouco depois chegou de novo a sua vez. A segunda bola foi melhor. Derrubou duas de uma vez.
— Uma dupla caída! — Ariel o deu um soco nas costas, comemorando. — Boa tacada.
Álvaro o olhou sorrindo, depois mandou outro gole da cerveja e se dobrou sobre a mesa. Estava concentrado. Tacou a bola branca ligeiramente para a esquerda, vendo-a ser docemente levada pela borda da mesa até chegar numa bola que estava perto da caçapa. Uma tacada perfeita. Os dois jovens se olham mais preocupados. Haveriam se enganado acerca daqueles trintões?
O jogo foi passando. Aos riquinhos, restava uma bola, enquanto a Ariel e Álvaro, duas. Era a vez de Álvaro. Respirando lentamente para não se afobar, pôs-se em posição para tacar. Não podia ser forte demais, senão a bola branca, no rebote, ultrapassaria o ponto certo para poder tacar na outra que restasse. Tacou. A bola foi em direção ao buraco. Álvaro não conseguiu respirar até ver a pelota sendo encaçapada. Yahoo! Havia conseguido, mas…
Mas…
A tacada tinha sido forte demais e a bola branca ultrapassara do ponto perfeito para a tacada final, ficando entre a última bola par e a onze. Os jovens, respirando aliviados, pensaram que, por fim, não perderiam aquela partida. Dessa posição era verdadeiramente um tiro impossível. Álvaro deu a volta na mesa. Estudou todas as distâncias. Difícil. Precisaria dar três golpes nas bordas da mesa com a bola branca antes de acertar a onze. Ademais, precisaria torcer para que a tacada fosse precisa a ponto de derrubá-la.
— Manda, mi amigo.
— Mas com três tabelas com as bordas?
— E daí? Se perdemos quem paga sou eu mesmo. — Ariel sorriu.
Álvaro segurou o taco com firmeza, ajustando-o. Inspirou, expirou. Tacou. A bola branca parecia voar sobre o feltro verde. Uma tabela. Lembrou-se de todas as vezes que jogou bilhar na adolescência. Duas tabelas. Ainda era possível se divertir; uma separação não era o fim de tudo. Três. Aqueles trezentos reais teriam de ser dele.... e nesse momento, a bola branca golpeou em cheio a onze, derrubando-a no buraco central.
— Centro! — Gritou Ariel. — Você é sortudo. Agora mandem a grana. — Olhou para os garotos derrotados.
Pegaram o dinheiro da aposta e pediram mais duas latas em comemoração. Riram-se da cara de espantados dos mauricinhos, sempre brindando em voz alta. Por fim, pagaram a conta e saíram.
— Só uma curiosidade... — Já estavam na porta do bar quando Álvaro quis fazer uma pergunta. — Onde você arrumou aquele livro? Quando você me deu, me senti ofendido, sabe… — Parou para respirar. — Achei até maldoso. Mesmo depois da separação me recusava a ler. Mas, ontem à noite, depois de mais uma imersão na depressão profunda, decidi dar uma lida.
— E aí?
— Admito que me ajudou, mas tem uma coisa que me está deixando curioso. — Pausou para coçar o nariz. — Quem é o autor desse livro? Busquei na internet e não tive nenhuma resposta nas pesquisas do Google. Quem é esse tal de A.R Cervantes?
Ariel sorriu mais uma vez, como se já esperasse aquela pergunta.
— Simples. Chegue em casa, olhe para a foto do autor. Imagine-o sem óculos e barba. Assim que o fizer, saberá quem é.
Após dizer isso, seguiu em direção ao seu Civic azul, mas no meio do caminho, algo o fez parar. Deu meia volta e gritou:
— Álvaro, espera. Quase me esqueço. Toma, pegue isso. — Entregou-o um envelope. — Só o abra quando chegar em casa, dale?
Dale.
Álvaro voltou para o seu apartamento, sentindo-se um pouco ébrio. Deixou as sacolas com as roupas novas em cima do sofá e se deitou. Pegou o livro que estava no criado mudo ao lado da cama, buscando a foto do autor. O que Ariel o havia pedido para fazer mesmo? Imaginar a pessoa da foto sem óculos e barba. No início foi difícil, talvez pelo efeito do álcool, mas depois, a imagem começou a ficar clara. Aqueles olhos sarcásticos...aqueles dentes amarelados.
Custou a acreditar naquilo. Devia estar deveras bêbado. Lembrou-se do envelope que Ariel lhe entregara à porta do bar. Abriu-o. Uma carta se mostrou.

“Mi amigo,
Talvez você vá me odiar ao descobrir que eu sou o autor desse livro que você tanto desprezou quando o recebeu — devo dizer que isso me magoou profundamente hahaha.
Peço desculpas desde já.
Porém, essa carta não é um pedido de desculpas, mas sim um presente meu e da Inês para você. Aqui deixo o localizador de uma passagem de ida e volta para Sevilha para nos ajudar com a mudança e a montar os armários. Achou que iria fugir dessas chatices? Pois se enganou. Partimos em cinco dias.
Um abraço.
Localizador: B6YVVY
P.S: Pense nesse presente como uma forma de fazer o passo 4 desse livro.”

Fechou a carta, guardando-a no envelope. Álvaro se deitou e, antes de fechar os olhos disse: tu eres un gilipollas.
(...)
Passo 4: Faça uma Viagem

A janela estava aberta. Nuvens tingidas de laranja se viam abaixo, brandas e infinitas. O sol se punha ao oeste. Deviam estar sobrevoando o Atlântico há horas. Não podia crer. Estava indo para a Espanha. C-27, esse era o seu assento no avião, fila da direita, do lado do corredor. Uma bela aeromoça o sorriu enquanto passava perto dele. Perto demais. Parecia enviada por uma citação de um poema da conclusão de As Mil e uma Noites: “Ela vem como a lua cheia em noites felizes…”  Ela tem um leve perfume adocicado, um uniforme perfeito. Caminha de cima a baixo no avião, sem problemas e preocupações.
“Ela vem como a lua cheia…”
Mas ele deveria tirar esses pensamentos da cabeça. Quais as chances de se encontrarem de novo fora daquele avião? Mínimas, para não se dizer nulas. Voltou os olhos para a janela, mesmo que estivesse um pouco longe dela, tentando tirar a aeromoça da cabeça. Era impossível. Ariel e Inês estavam nos bancos ao lado. Pareciam dormir. Um voo de mais de dez horas era, certamente, entediante. Se não fosse pela pequena tela, onde podia ver alguns filmes, teria se jogado do avião.
A aeromoça passou mais uma vez.
¿Quieres algo más para beber, señor?
Un jugo de durazno, por favor. — Falou, olhando os lábios pintados com um vermelho forte. Ela percebeu e, sorrindo, saiu com um andar rebolante.
— Um verdadeiro nhoque essa aí, não? — Uma voz grogue saiu do banco do lado. Ariel estava despertando.
— Nhoque?
— É assim que se diz na Itália.
— E o que você sabe da Itália se é espanhol?
Ariel riu. Sorte que Inês não o havia escutado. Voltou a fechar os olhos, deixando Álvaro sozinho com os pensamentos soltos. Deveriam estar chegando. Suas nádegas já não tinham mais posição para ficar no assento. Verificou o relógio. Eram 6:30 da tarde. Tinham mais quarenta minutos de voo, segundo o cronograma.
Aquí está el jugo, señor.
Agradeceu, evitando olhá-la no rosto. Enquanto bebia do suco, buscava algum filme interessante na tela que estava na parte de trás do banco da frente. 500 dias com ela. Não, já havia visto. Um dia. Também já tinha assistido — e odiado o final, ainda por cima. Por que a Anne Hathaway tinha de morrer? Continuou buscando: Bahubali. Era filme indiano e não tinha legenda e nem dublagem. O Ilusionista. O Dia Depois de Amanhã. 2012. Meia Noite em Paris. Por Deus, tinha mais filmes que no Netflix ali e todos ele já havia visto. Depois de buscar incansavelmente, decidiu assistir a um episódio de Grey’s Anatomy.
Pouco tempo depois, o avião se preparava para pousar.
(...)
O clima era agradável em Sevilha. O negro céu noturno estava limpo, anunciando que a manhã seguinte seria de sol.
Os familiares de Ariel os esperavam no desembarque, animados e sorridentes. Abraços saudosos e beijos na bochecha foram distribuídos. Álvaro foi apresentado a eles e, enquanto saíam do aeroporto, a bela aeromoça acenava para um táxi. Um bom presságio, pensou Álvaro. Gostava de pensar que poderia ser possível encontrá-la em algum lugar. Talvez até conversar com ela.
Chegaram à casa dos pais de Inês, onde estariam hospedados. Um apartamento próximo ao Parque del Alamillo. Ariel e a esposa haviam alugado o apartamento do andar de baixo.
Era um lugar espaçoso: três quartos, sendo duas suítes. A sala dava para uma sacada com vista para o parque. Álvaro conseguia imaginar aquele lugar aos domingos, com famílias fazendo piqueniques, namorados de mãos dadas, animais de estimação brincando. Seria bom morar ali. Os quartos estavam arrumados e, após rolar algumas vezes na cama, Álvaro pegou no sono.
A manhã seguinte foi destinada para a mudança. Os móveis da casa no Brasil haviam sido vendidos e, com o dinheiro que conseguiram, Ariel e Inês compraram mobiliário novo. Uma cama de casal, dois criados mudos, uma estante, uma mesa, um sofá e várias outras pequenas coisas foram enchendo o apartamento.
Não pararam para nada. Aos poucos, aquela bagunça de móveis foi se arrumando, dando um ar de “lar, doce lar” para aquele lugar. Álvaro se animou ao saber que à noite iriam a um pub para relaxar após o dia de mudança.
Ele não havia percebido, mas já não pensava em Daniele há uma semana. Talvez estivesse se curando; talvez fosse só porque estava longe. O fato é que Álvaro parecia renovado, um homem totalmente diferente do que vinha sendo nos últimos seis meses.
O que ele não sabia era que estava prestes a se encontrar com algo que o livraria, de vez, da depressão de haver sido deixado.
(...)
Merchant’s Malt House. O pub tinha dois andares e era diferente de todos os pubs que já havia ido. Tinha uma personalidade própria, fugindo daquele estilo irlandês, típico desses bares. As paredes eram vermelhas e verdes e mesas de madeira estavam distribuídas pelo local. Uma música tocava num volume agradável enquanto pessoas conversavam, intercalando as palavras entre os goles de Guinness e mastigadas em azeitonas.
Álvaro passava os olhos pelo local, quando sentiu uma cotovelada de leve nas costelas.
— Diagonal esquerda, junto a duas adolescentes que fumam. Nhoque.
De início ele não havia entendido, mas ao olhar na direção em que Ariel falara, viu uma bela moça. Ela parecia diferente com os cabelos soltos. E, com toda certeza, estava muito melhor sem o uniforme.
— Hoje é o teu dia de sorte, mi amigo. Quem diria que a gente veria essa mulher de novo? Quero dizer, quais são as chances de…
Ariel tagarelava, no entanto, Álvaro já não prestava mais atenção. Falaria com ela? Tinha algo a perder? Era lógico que não. E no final das contas, só seria uma conversa. Charlariam um pouco, bebericando seus drinks e inalando a fumaça dos cigarros alheios.
Deu um passo na direção dela. As suas mãos suavam frio. Dois passos. Reparou que ela tinha os cabelos aloirados. Como não o percebera antes? Três passos. Uma saia de tule branca combinava com a camisa estampada com flores cor de laranja. Quatro passos. Ela o viu. Mostrou os belos dentes brancos, perfeitamente encaixados. Retribuiu o sorriso, terminando o caminho em direção a ela.
Cumprimentou-a, estendendo a mão. “Hola, soy Álvaro”, disse, puxando assunto. Ela devolveu o cumprimento. “Hola, me puedes llamar ‘Ñoque’” e, piscando o olho, riu agradavelmente. Álvaro demorou a entender, mas, quando finalmente compreendeu, seu rosto enrubesceu.
Merda! Ela havia ouvido.
A moça, percebendo que ele ficara sem jeito, tranquilizou-o, dizendo que estava brincando e que já estava acostumada com tais apelidos dados a ela. Puxou assunto. Pelo menos ela havia simpatizado com ele. Gostou de saber que Álvaro trabalhava com publicidade. Contou-o que já tinha estado em mais de cento e cinquenta aeroportos ao redor do mundo e que passava menos de uma semana em casa. Quando perguntada de onde era, respondeu que era de Málaga, mas que a família estava morando em Sevilha mesmo.
Passaram três quartos de hora assim, rindo e conversando. Já estavam, ambos, na quarta rodada de Guinness e sentiam a ebriedade. Vez ou outra, Ariel e Inês passavam por lá, dando piscadelas que diziam mais do que palavras.
Ela fez menção de ir embora. Álvaro, com a ajuda do álcool, criou coragem e a pediu o telefone. A moça, pegando uma caneta, escreveu-o no punho dele. A sensação do toque dela era reconfortante. Agradeceu-a pela companhia e, enquanto a via ir embora, lembrou-se de que não sabia o nome dela.
Correu atrás dela, gritando-a. Ela se deteve, olhando para trás.
Perdona, pero no sé tu nombre. — Respira, arquejando. — ¿Me lo puedes decir?
Sí, por supuesto. Mis amigos me llaman Dani.
Um sorriso se desfez na cara de Álvaro. Inacreditável. Aquilo não podia ser verdade. Lembrou-se da Daniele que fora sua, mas que o traíra. Imagens de um passado destruído começaram a se remontar em sua mente. Eu não a quero, é certo, mas talvez a queira. É tão curto o amor, tão longo o esquecimento. Neruda estava certo. O esquecimento é um processo longo, mas que um dia, chega ao fim. E o epílogo desse esquecer dependia só dele. Sim. Dependia dele.
Voltando o sorriso ao rosto, ele perguntou.
Pero, dime ¿Cómo se escribe tu nombre?
Ela, sem entender o porquê, soletra: D-a-n-i-e-l-l-e.
¿Con dos L’s?
Álvaro sorriu. Havia um L a mais. Talvez essa letra sobressalente fosse equivalente à lealdade. Ele queria crer nisso.
Vale, muchas gracias.

E, enquanto ela entrava em um táxi, Álvaro percebeu que havia tido êxito nos passos para se reerguer dos chifres.