quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Casca de Noz - Henrique Donancio

      Rodrigo estava atrasado mais uma vez...
      Pacientemente andava de um lado ao outro da calçada frente a sua casa. Já havia mandado uma mensagem ao seu celular para que se adiantasse, havia certo receio de tocar a campainha, e acreditava que não influenciaria muito para adiantar seu retardamento. Trajava uma camisa azul que tinhas manchas nas costas, e impresso a sua frente uma mulher com headphones sensualmente pintada em tons pretos, sedutora em traços rápidos. Abaixo do olho direto uma pincelada cor de rosa. Fazia-se um dia quente, raros em tal posição geográfica, a barba já começava a me incomodar, nunca lhe fui um apreciador, esteticamente até achava que me caía bem, mas me agoniava, os pelos grossos atritavam com minha pele causando-me gastura.

     Ouço os primeiros acordes de No Rain soar, é meu aparelho telefônico que vibra e canta, vejo no display outro nome insistente, e desisto. Quando me viro para avenida dou-me com sua imagem embaçada pela minha miopia. Já havia aprendido a conhecer seus passos, percebo que sua cabeça de repente pende para baixo, deixando cair duas mechas, e desconcertadamente, cheia de receios num ato impetuoso você se põe ereta novamente, passa as mãos sobre o cabelo, conserta-o e volta a andar, mas quando chega mais perto de novo acontece, você nunca conseguiria disfarçar...
     - Olá Humberto.
     -Bem? Então aceno com a cabeça.
     -Meu irmão ainda não saiu? Já tocou a campainha? Bah, ele sempre se atrasa!
     Explano que já havia lhe mandado uma mensagem e que ele não tardaria muito a chegar.
     -Você está bem? – A pergunta me constrange, fixo os olhos nos seus e confiantemente quase silencioso digo-lhe um singelo "sim". Também pára, põe se a olhar, deixa as sacolas que carregava caírem de suas mãos, me abraça como senti em outra ocasião quando nos despedíamos na praia, escorre uma lágrima de seu olho, chego a não acreditar que tanto orgulho despencaria sobre meus ombros dessa maneira, de um jeito que se mede em metade compaixão, outra metade num sentimento mais forte lhe envolvendo num abraço caloroso.
     -Volta, eu já não consigo mais...
     -Eu também não, mas não dá, acabou!
     A porta se abre, Rodrigo aparece sobre a luz da sala, faz sua graça, tira sarro da situação de um jeito peculiar. Você seca sua pele, agarra as sacolas rapidamente e diz um “tchau” ríspido pondo-se para dentro. Rodrigo ainda diz mais algumas asneiras, bobagens que intrinsecamente tem o coro de uma enorme torcida. Tomamos o rumo do bar.

     A música estava demasiadamente alta e "suja". Quando todos estavam entretidos pus-me em mais um momento particular de reflexão, parado, olhando para o nada quietamente. Deixarei vago tudo que me passou naquele instante singular da minha existência afim de que nunca se descubra quais idéias perambulam pela minha mente no meu silencio. Tomei o celular em mãos e lhe mandei uma mensagem, talvez a primeira em dois meses.
     “Precisamos reaver a situação da Nina”, então sorri. Queria lhe provocar, não que a cachorra não fosse importante para mim, o era, me sentia responsável por sua irresponsabilidade, mas no fundo um ímpeto que me levava a aguçar sua raiva me conduzia a isso.
    Rodrigo me contara algumas vezes que o seu novo namorado havia tentado frustradamente tomar meu lugar de “pai” do cão, e que a dócil Nina agora estava raivosa, e ladrava contra o rapaz. Imaginei que você dava-lhe uns tapas por causa da impetuosidade, me aborreci, ao mesmo que tomado por uma satisfação maldosa. Ele tentava tomar meu lugar de pai?! Tudo ainda devia ter meu cheiro, os lençóis, o travesseiro, as paredes a ecoar minha voz, os ponteiros do relógio a esperar minha chegada. Você deverás estaria arrependida.
     Mais algumas cervejas então tomo coragem para ligar, já se fazia 1 hora e meia de um novo dia, pela sua voz ao atender ele devia estar ao seu lado, mas como você certa vez foi estúpida o suficiente para atender ligações de outro sob meus olhos, não faria diferente agora. Ríspido reclamo da cachorra, digo que me pertence, e você só ouve, e depois desliga. Se não te conhecesse tão bem agora ficaria mais tranqüilo, mas entendo o turbilhão de problemas que esse telefonema causaria. Você tentaria dar insignificância, menosprezar, me odiar, mas de nada adiantaria.
     Logo pela manhã recebo uma mensagem do Rodrigo me dizendo que Nina iria há uma consulta no veterinário. Retorno com uma ligação e peço lhe o endereço da clínica e tomo uma condução para o local.
     -Você ainda o chama para vir aqui? Ríspido seu namorado aponta o dedo para sua face.
    -Eu não o chamei.
    -Fui eu homem, diz Rodrigo. Então silencia, fita-me com raiva.
    O veterinário parece interpretar a situação e com uma voz grave chama a atenção de todos. Explana que pela falta de alimentação o cão acabou adoecendo, seria causa da depressão que estava a sofrer. Ele tem certeza do seu diagnóstico quando me aproximo do Cofap desengonçado sobre a mesa.
     -O senhor é dono do cão?
     Constrangido digo-lhe que sim e o tomo nos braços, pago a consulta e dou de costas para todos.
     A noite recebo outra mensagem de Rodrigo: “A mana acaba de terminar o namoro com o almofadinha, kkk”.
     Leio e suspiro... assovio para Nina que pousa ao meu lado no sofá. Teria sido melhor se tivesse lhe comprado uma tartaruga de presente.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Artista Itinerante - Caio Machado

Para Gabriel e Caroline Soares

Faltará lirismo no caso em que relatarei. Mas quem se importa? Aquela cidade ainda era uma grande incógnita para mim. A rodoviária não era muito amigável e estava num processo de reforma, que a meu ver ainda iria bem devagar. O que dava uma primeira impressão de atraso e retrocesso a quem chegava naquela cidade não muito receptiva. Antes de me dirigir ao meu destino resolvi consultar o mapa da cidade para que eu me orientasse melhor. Havia um enorme cartaz fixado em uma das paredes do local. Não existiam muitos bairros e pelo que calculei não gastariam mais que algumas horas pra se circular por toda a cidade. Enquanto eu pousava os olhos no mapa um jovem engraxate se aproximou de mim e perguntou de maneira bastante coloquial se eu queria “dar um trato” em meus tênis. Habitualmente ele só deveria fazer a seguinte proposta a senhores trajando sapatos, mas a evidente fome em que ele se encontrava, acompanhada de um possível desespero induziu o rapaz a me propor o serviço. Eu não precisava necessariamente do serviço, mas acabei aceitando. Sentamos no banco mais próximo e ele se postou aos meus pés e começamos a trocar algumas palavras durante uns instantes. O rapaz que perdeu a mãe recentemente se viu forçado a trabalhar, mas a falta de estudos não lhe proporcionou muitas oportunidades. E já que o ganha pão de seu pai é todo investido em exploração etílica não lhe restou muito que se fazer senão seguir o ofício ensinado humildemente pelo seu falecido avô. O rapaz não se dava muito bem com o português, mas era bastante loquaz. Contou-me que quando era mais novo não agia de maneira muito correta e que até preso já foi, por um envolvimento em uma briga. Fez uma singela e grotesca comparação ao dizer que durante o tempo que permaneceu enjaulado ficou tão branco por não tomar sol que estava até parecendo um europeu. Perguntava-me sobre meus interesses e parecia não saber muito bem o que fazia em meu tênis. Ele usava uma mistura que provavelmente não passava de água e sabonete e o serviço dele não me custaria mais do que três reais, mas preferi pagar-lhe dez para que ele se se alimentasse melhor ou o que quer que seja que ele fosse fazer com o dinheiro. Ele agradeceu-me repetitivamente e apresentou-se como simplesmente Gil. Disse que não se esqueceria facilmente de mim e pediu que eu voltasse depois com algum sapato para que ele engraxasse para mim. Aproveitando a ocasião disse também algo sobre doação de roupas e mais coisas das quais não me recordam bem. Para um recém chegado eu agora já ostentava minha primeira amizade.
A rodoviária ficava localizada na orla de uma enorme lagoa que se não fosse pelo visível descaso seria linda. Provavelmente aquele era um dos únicos cartões postais da cidade e para mim já estava ficando claro que a cidade em questão era meio abandonada pelas autoridades políticas. Tanto que em poucos minutos presenciei inúmeras infrações de trânsito que pareciam passar despercebidas por todos ali. Ironicamente isso me deixou satisfeito, pois eu estava ali justamente para escrever um artigo sobre o espalhafatoso trânsito. Ao sair da rodoviária me deparei com um simpático senhor que trajava uma boina cinza e carregava uma pasta de desenhos. Eu com meus vinte e poucos anos não conseguia emanar tanta vida como aquela alma conseguia transbordar. Uma estranha curiosidade se encheu em mim e resolvi perguntar as horas ou mesmo alguma informação qualquer só para poder verificar do que se tratavam as figuras ilustradas em questão. E bem, o senhor se mostrou bastante acessível e carismático. Informou-me as horas, iniciou uma conversa trivial e logo me contou sobre as aulas de desenho que estava tomando e me mostrou quase todos os seus trabalhos que abrangiam em sua maioria objetos e cenários bucólicos. A grande dificuldade dele se mostrava em ilustras rostos humanos. Aqueles punhados de figuras coloridas e monocromáticas me deixaram muito feliz repentinamente. Lembrei-me de outrora quando o primo de minha namorada (que por sinal nunca se mostrava com essas minhas viagens a trabalho) dava aulas de desenho e os expunha em festivais musicais. Isso bem antes dele se formar em Artes Visuais e embarcar para a França. O senhor, que por sinal se chamava Erasmo me contou que era formado em História e que mastigou também alguns anos do curso de Filosofia, mas sem se formar. Acrescentou que aos oitenta e seis anos sua vida apenas começava e que independente do que eu fazia Deus me ajudaria no meu destino. E claro que não existe mais em mim essa crença em Deus com a mesma força que em tempos anteriores, mas mesmo assim agradeci as palavras e lhe desejei o mesmo. Fantástico como essa cidade feia carregava almas tão curiosas e expressáveis. Erasmo aproveitou da ocasião e se pos a desenhar um pássaro e reparei que ele não tinha muita destreza em segurar o lápis com a mão esquerda e antes mesmo que eu perguntasse me contou que estava trabalhando o lado esquerdo do corpo e que na sua juventude o pessoal dizia que quem nascia canhoto era ignorado por Deus. Incrível como na mesma proporção que a fé diminuía absurdos de coisas mundanas ela também os aumentava. Contei para ele que eu sofria o “mal” de ser canhoto e contei também minha curiosa história das aulas de violão que tive como destro e sobre como tive que inverter as cordas e o lado do violão para também me oficializar como canhoto musicalmente. Jimi Hendrix, Tony Iommy e recentemente meu último herói Kurt Cobain também eram canhotos e eu não conseguia me orgulhar muito dessa situação, já que só encarecia e reduzia a possibilidade de encontrar instrumentos musicais para canhotos. Às vezes me perguntou se alguém já ouviu falar em algum piano para canhotos? Mas de fato eu conseguia me enxergar naquele senhor e parecia também que ele sentia o mesmo em mim. Como se estivéssemos naqueles filmes de ficção cientifica da década de oitenta em que as pessoas se personificam em nós através de maquinas do tempo ou buracos de minhoca. De súbito o senhor se despediu apressadamente de mim e entrou em um ônibus de transporte público. Não entendi a pressa dele, mas minha admiração por idosos era tanta que eu achava injusto poucos privilégios como filas especiais ou transporte público gratuito. Eles merecem muito mais do que isso e, aliás, esse é futuro esperado para todos que são jovens agora. Reparei que sua pasta de desenhos tinha sido esquecida no banco da praça e que eu agora me sentia extraordinariamente destinado a entregá-la para ele. Informei-me sobre a linha em que o senhor tomou e sobre os bairros em que o ônibus percorria em seu trajeto. Com as poucas informações já obtidas declarei meu infortúnio que se daria ao perceber que eu não saberia sequer por onde começar e que eu não sabia ao certo para onde ele estaria indo. Encontrei um catálogo telefônico na rodoviária e procurei por todos os Erasmos da cidade. Dos cinco listados nenhum era ele. Minha busca se daria de forma exasperada agora. Pensei em pegar o primeiro ônibus que viesse e ir a alguns pontos referenciais do itinerário que me foi informado, mas não me parecia uma idéia sã e nem de longe sensata. Quase desisti da idéia, me dirigi a padaria mais próxima e fui me alimentar. A cidade tinha um delicioso refrigerante com nome indígena e durante meu lanche me veio a idéia de verificar o que havia na pasta. Além de dezenas de desenhos que já tinha visto havia também alguns poemas com uma marcante e perceptível influencia simbolista. Fiquei fascinado com alguns deles e inclusive entremeio aos papéis encontrei o cartão de visitas da escola de desenho onde o senhor estava matriculado e de imediato soube que eu o encontraria no local.
Antes que eu fosse até lá resolvi me hospedar em um dos hotéis que cercavam a rodoviária. Curiosamente todos tinham letreiros luminosos e seus aspectos deploráveis me remetiam a motéis baratos de Los Angeles. Não que eu já tivesse ido para L.A., mas o cinema os retrata bem assim. Quase todos eles tinham nomes de mulheres o que engrandecia ainda mais o iminente estereotipo de espelunca. Escolhi o hotel com a fachada menos velha e com o nome feminino menos grosseiro e me hospedei naquela mesma tarde nublada. Minha primeira exigência no Hotel Lucíola foi que me colocassem em um quarto com muitas janelas e sem ar condicionado. A segunda logo foi que me emprestassem o catálogo telefônico. Obviamente o deles estava desatualizado e faltando diversas páginas toscamente arrancadas, mas felizmente na minha consulta percebi que a escola de desenho ficava a poucas quadras dali e que seria muito fácil encontra-la. Decidi-me por ir até lá na manhã seguinte para a devolução dos desenhos. Sem me esquecer é claro, que eu me encontrava na cidade para escrever sobre as calamidades que estavam acontecendo nas reformas do transito e sobre o confuso e desrespeitoso tráfego. Deixei minha mala em cima da velha mesa que havia no flat. Fora isso os únicos móveis que haviam por ali eram a cama e a estante improvisada para o televisor. Durante o resto da tarde fiz algumas anotações sobre os semáforos furados, calçadas sem acessibilidade para deficientes, ultrapassagens perigosas e limites de velocidades excedidas que eu já havia presenciado durante minhas poucas horas na cidade. Ao dormir deixei a TV ligada e uma das duas janelas entreabertas. É natural que eu só consiga pegar no sono com alguma coisa me deixando sempre alerta, não suporto silêncios absolutos.
Na manhã seguinte tomei café na mesma padaria e o saboroso pão de queijo era ainda melhor recém saído do forno. Dessa vez deixei o refrigerante local de lado e me deliciei com um café expresso com bastante açúcar. De lá mesmo me dirigi até a escola de desenhos. Pensei na possibilidade de alugar um carro, mas a urgência por encontrar Erasmo e os ares de interior daquela cidade me deixava instigado a caminhar e desbravar tudo o que fosse possível por ali. Sempre adorei essa sensação de reconhecer território. Quatro quarteirões depois e lá estava eu de frente a escola de desenho, que por sua vez era um duplex azulado e sem dúvida era mais bem tratada do que a rodoviária, a lagoa e claro, todos os hotéis sujos que havia me deparado ontem. Para minha surpresa ou mesmo sorte o próprio senhor Erasmo já se encontrava na recepção conversando veemente com a secretaria. Sua leve expressão de desolação deu lugar a um largo sorriso ao me ver e ele logo me perguntou se a nossa conversa havia me deixado interessado nas aulas de desenho. Respondi que não, mas logo em seguida voltei atrás e disse que sim e que até tinha trago uns desenhos meus para mostrar na escola para ver se eu mostrava alguma vocação. Outro sorriso se abriu e o senhor Erasmo mal reparou que o que eu segurava era sua própria pasta de desenhos. Ao notar que se tratava de seus desenhos ficou um pouco surpreso e frustrado e me agradeceu dizendo que ele tinha o estranho hábito de fingir que esquecia seus desenhos para presentear pessoas especiais que conhecesse por aí. Especialmente turistas recém-chegados. Disse que fez isso durante sua vida toda e que durante todo esse tempo eu havia sido a primeira pessoa que o procurou para devolvê-los. Fiquei extasiado com aquela história e perguntei se ele não se preocupava em perder todas as artes e poemas. Ele me respondeu astutamente que não possuía mais parentes e nem herdeiros para serem presenteados e que se livrando de seu legado se via sempre obrigado a recomeçar e produzir cada vez mais e com isso iria sempre se aperfeiçoar. Senti-me comovido com aquela lição e o abracei vigorosamente. Ele notou as lágrimas que estavam se formando em meus olhos e disse para que eu fosse embora e que levasse tudo comigo. Ele insistia por isso. Além de tudo, ressaltou ainda a importância de não se apegar muito a coisas materiais e de sempre aproveitar cada situação como uma maneira de se engrandecer como pessoa. Agradeci por tudo e sai da escola sem olhar para trás. Que se dane esse trânsito patético. Um grande artigo ou crônica sobre um artista itinerante estava prestes a ser redigido por mim!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Os Saqueadores de Valas Comuns - Caio Machado

Para Moniza Borges

Indigentes, assassinos em vida, esquecidos ou mesmo abandonados por famílias que sequer ousaram reclamar seus corpos. Restos mortais emaranhados de terra, numa iminente escavação feita com bastante escárnio e descaso. Homúnculos agora frios e moribundos que jazeriam em esquecimento para sempre. Por que agora resolveriam desrespeita-los e saqueá-los? Ou mesmo por que não considerar essa forma de “vandalismo” como uma maneira de punição pela vida imprópria que eles levaram um dia? Desenterrados de maneira tosca e urgente, várias valas comuns estavam sendo violadas e saqueadas semanalmente naquele desolado cemitério e nenhum coveiro, funcionário ou entidade responsável do local conseguia explicar tamanha irracionalidade. Décadas e gerações mesmo que desconhecidas, sofrendo uma severa desconsideração. A ausência de lápides e caixões somados a rasa profundidade daquelas grosseiras covas ajudariam a facilitar o atentado à paz daqueles corpos agora totalmente desmantelados, como se ainda já não bastassem estarem todos desalmados. Não que algum dia eles tivessem tido paz uma vez em vida, mas o desrespeito por aqueles vis cadáveres começava a crescer. O maior agravante daquela questão se dava por ninguém se preocupar com todos aqueles desconhecidos, porque obviamente não haveria a quem todos aqueles desconhecidos recorrerem, mas o conflito não poderia passar em branco já que ele começava a incomodar a outra parte do cemitério que por sua vez era diariamente visitado e agora tinha suas vias subterrâneas sangrando devido a essa bizarra depredação.
Famílias mais prestigiadas, honradas ou mesmo mais freqüentadoras do insalubre parque de jazigos resolveram investigar por si próprias o que estava causando todo esse tumulto mórbido. Pais, irmãos e até primos distantes se puseram de guarda em turnos diurnos por todo o cemitério. O tumulto foi tanto que ao passo dos primeiros dias de vigília, os saques logo pararam de ocorrer de forma súbita e silenciosa, de maneira que nada foi descoberto, ocasionando na desistência das mesmas pessoas que iniciaram as inquirições. Fato esse que não evitou que em poucos meses mais valas voltassem a ser violadas e que dessa vez as sobras das ossadas saqueadas fossem espalhadas por todo o local, com isso um odor visceral putrefato passou a preencher todo aquele parque de almas perdidas, que em sua maioria das vezes é inodoro, tirando claro, o odor das flores deixadas diariamente nos túmulos e todo o aroma bucólico do extenso e melancólico gramado do cemitério. Não tardou que medidas radicais fossem novamente tomadas e agora as famílias alheias mesmo assustadas, se organizaram para que pernoitassem no local. Dessa vez turnos mais longos e discretos foram necessários para que depois de dois meses de zelo a matilha faminta de cães retornasse de madrugada ao local e que fossem enfim descobertos. As famílias desconformadas não acreditaram ao ver que não passavam apenas de cães decadentes, que de uma maneira um tanto quanto inusitada estavam apenas buscando uma maneira de sobreviver. A fome agora latejava no estomago daqueles cães que antes evitavam o local devido a toda aquela agitação e mesmo agora com aquela guarda armada os mesmos não se privaram de se revelarem e se postarem a cavar mais uma das diversas covas espalhadas. Como se as almas daqueles vis cadáveres estivessem agora apossadas dos corpos dos seus próprios violadores. Dezenas de caninos imundos e esqueléticos, submetidos a roerem ossos humanos em busca de uma sustentação alimentar, evitando que se juntem ao estado atual de suas refeições.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sonho Oriental - Caio Machado

Para Mariana Takagui e Nádia Lúcia

O corte era imenso e profundo, abrangendo a região entre as axilas e a cintura. Se fosse um pouco mais estreito se assemelharia ao Z que o Zorro deixa em suas vítimas, mas nem de longe o anti-herói conseguiria um feito tão preciso daquela maneira. A vítima era uma mulher de aproximadamente trinta e cinco anos, pesando sessenta e oito quilos, de feições indígenas e que trabalhava como atendente em uma biblioteca da universidade federal da cidade. Não possuía antecedentes criminais, levava uma vida normal e tranqüila em um casamento que já durava quase seis anos. Ainda não tinha filhos e planejava conhecer a Bélgica no próximo semestre. Seu marido era um cozinheiro muito renomado e respeitado. Um homem com uma estatura alta e deveria estar, senão obeso, com sobrepeso. Encontrava-se aflito em suas lágrimas e repetia incansavelmente sobre as tão sonhadas férias na Bélgica, que por sinal nunca mais ocorreriam. O corpo foi encontrado por ele ao chegar a sua casa após um árduo expediente. O corpo dela estava estirado no sofá, curiosamente deveria estar mais ensangüentado e aos seus pés se encontrava a edição da revista Caras daquela semana. O legista não conseguiu identificar que tipo de arma ou objeto fez o corte em seu abdome, que por sua vez seria algo extremamente cortante já que até os ossos da costela também foram serrados. Descartaram a possibilidade do uso de um bisturi ou qualquer objeto cortante de origem médica. As devidas investigações começaram, mas era visível que o caso seria arquivado pois não haviam mais suspeitos além de seu próprio marido.
Não bastaram três dias para que encontrassem na saída sul da cidade, outra vítima com o mesmo tipo de corte e tamanha fatalidade. O infeliz dessa vez era um rapaz de vinte e dois anos que residia na cidade a estudos e que entregava sanduíches para uma lanchonete nos finais de semana. Alias o assassinato aconteceu durante seu expediente, após o rapaz ser chamado para uma entrega, que de maneira extremamente amadora não foi anotada pela secretaria da lanchonete, sendo apenas repassada verbalmente. A moça certamente seria demitida e a lanchonete também sofreria uma visita da vigilância sanitária que provavelmente fecharia o estabelecimento por tamanho descaso e falta de higiene. O lugar estava entregue as moscas, mas mesmo assim mantinha uma boa clientela e após vários interrogatórios ninguém encontrou nenhuma pista ou prova contra o estudante de Artes Cênicas que ainda mal tinha feito amizades na cidade. A secretaria foi tida como possível cúmplice, mas novamente pela falta de pistas o inspetor da polícia se via obrigado a esperar por um próximo assassinato, já que não conseguia se encontrar relações entre os dois assassinatos e tampouco algum fundamento para eles.
Nas duas semanas seguintes nada ocorreu e a polícia já se via obrigada a engavetar os dois assassinatos, uma vez em que não ocorriam mais avanços nas investigações e que o triste fato de os dois crimes não possuírem testemunhas só empacava todo o processo. A ansiedade dos investigadores só foi cessada após o único jornaleiro daquela pequena cidade, ser encontrado assassinado numa fria manhã e que de maneira bem grotesca o orvalho tenha coagulado seu sangue sobre o corte criando umas bolhas de sangue extremamente repugnantes. Dessa vez bem mais preciso do que antes. O assassino era tão profissional que nunca deixava impressões digitais ou pegadas e parecia que as vítimas nem se dariam conta de suas iminentes mortes. Assim como as vítimas anteriores o jornaleiro também levava uma vida tranqüila de viúvo e mantinha a banda de revistas no Parque Central só para dar uma engordada financeira na sua aposentadoria e para ajudar no financiamento de sua ONG a favor de pássaros silvestres em extinção. Já não dava mais para entender se o assassino serial fazia isso de maneira pessoal ou de maneira aleatória, pois nunca existia uma correlação entre os fatos e os legistas continuavam sem entender a origem dos cortes letais.
Um fato curioso se deu um dia depois, quando um rapaz foi contratado para afixar um cartaz de outdoor na Praça dos Coronéis. Possivelmente o mesmo assassino das vítimas anteriores tentou açoitá-lo com a misteriosa faca, mas errou porque o rapaz percebeu a presença do assassino no outdoor e se jogou da escada se esquivando do golpe letal. O assassino frustrado e desesperado saltou do outdoor e pôs-se a correr de maneira lenta e desengonçada. O rapaz o perseguiu, mas a dor nas costas causada pelo tombo o fez delirar de dor e ele desistiu de alcançá-lo. Após registrar a queixa do crime o rapaz foi encaminhado para a clínica geral e infelizmente acabou com uma costela quebrada. Pelo menos ele estava vivo e o ocorrido serviu para que uma descrição detalhada do assassino fosse feita e o detetive já interado do assunto não tinha mais dúvidas de quem seria o assassino.
Quatro policiais armados acompanhavam o detetive e ao chegarem à casa do cozinheiro tiveram o desprazer de encontrarem o próprio degolado na cama onde ele dormia com sua falecida esposa. Em sua mão esquerda havia uma carta de despedida e na mão direita estava a estranha faca que por sinal quase arrancara sua cabeça. Para a surpresa de todos não passava de uma faca japonesa Deba Botyo que havia chegado para sua esposa junto com a coleção Sonho Oriental da Revista Caras no dia do seu assassinato. E se ainda associarmos o jornaleiro e o rapaz que fixava um anúncio da mesma revista no outdoor entenderíamos que o cozinheiro não morria de amores pela revista. Tamanha foi a sorte do rapaz que afixava o anúncio da Caras, pois o mesmo não havia tido conhecimento da morte do jornaleiro e não faria mais sentido divulgar a revista, já que não haveria mais outra banca de revistas para vender a revista na cidade. Mas onde é que a esposa do cozinheiro e o entregador de sanduíches entrariam nessa história? A carta de despedida esclarecia tudo. A primeira pessoa que o estudante conheceu foi a mulher do cozinheiro, que de maneira extremamente simpática o orientou para que conseguisse chegar ao prédio de seu curso na faculdade. A partir desse dia o contato dos dois passou a ser freqüente e logo se constatou um affair entre os dois. O cozinheiro notou certa distância de sua esposa e após segui-la descobriu o ocorrido. Enciumado acabou liquidando-a e como a faca japonesa escolhida como arma por puro acaso se tornou tão eficaz e irreconhecível resolveu matar o entregador também a usando. Seu único descuido foi tentar limpar as possíveis pistas assassinando a todos que divulgavam a revista pela cidade. Acabou custando-lhe a própria vida, mas rendeu um artigo policial nunca publicado antes em uma edição da Revista Caras e o encerramento e suspensão da coleção Sonho Oriental.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Inspiração - Uma mistura afrodisíaca, intrigante e insone... - Maele Finger

...Certamente com efeitos colaterais.
Uma madrugada bem habitual. Na calada da noite atravessando ruas, éramos muitos e caminhávamos para um encontro, uma infinidade de pessoas semi-nuas, subindo ao topo do mesmo morro. Completamente cativados, absorvidos pelo encanto das duas luas. Só o que não havia era sossego, tudo o que aquela gente não queria. Queriam movimento, ação, e eu desejando a calmaria. De súbito desperto do sonho, já em pé, suspiro ao lado da cama desarrumada, era a pura matemática do sono mais uma vez não resolvida.
Era a rotina do sono, dando trégua ao indesejável e absoluto mundo da insônia. Um lugar cheio de lilás e nuvens, de aroma levemente adocicado, que nessa sinestesia suave faz salivar ligeiramente. A saliva que antecede a sede, a sede pelo desconhecido, a curiosidade e inquietação vem trazendo aquela vontade de abrir uma porta que não existe, mas que ao mesmo tempo está sempre ali, esperando que você faça a si o desafio.
Na intimidade do ser, por instantes aguçam-se os sentidos. E o que por pré-conceito é indesejável, logo torna-se uma situação mágica e e­­­­m relação a todas as noites subseqüentes, única, estimulante e insubstituível.
Uma situação da qual deve-se aproveitar e sugar o que mais se puder descobrir de interessante. O fascínio da noite, e sedução característica das madrugadas de insônia, que por inumeráveis que possam ser, são intransferíveis em sua individualidade. A partir disso a questão é de escolha, provar da intensidade é por conta e risco – aceitar ou não o prazer da inspiração.
Deliciar-se nessa sensação, com as luzes apagadas, para não atrair atenção, raros são os momentos em que ela vem a tona, mas quando vem, com ímpeto me toma, cabe a mim aproveitar. No escuro, folhas de papel em branco, iluminadas pela brasa de um cigarro mentolado, tomo certo cuidado para não ateá-las fogo.
As linhas se tornam borradas pela fumaça, minha escrita se embaraça, tenho minhas dúvidas sobre às conseguir decifrar amanhã. Entre tossidelas e pigarro alheio, tento prestar atenção ao silêncio, sapatos de salto tocam o chão, não há quietude bastante para a minha inquietação. Mas nesses momentos de liberdade e solidão, os poucos minutos que sempre me restam, até hoje nunca foram em vão.
Um fugitivo ansiosamente procurado, em geladeiras, em cigarros, num copo de leite morno, num calmante, ou em filmes com temáticas chatas o suficiente para lhe projetar tão logo de volta à cama, sem defesas, rendido,no lugar onde deveria estar.
Se a estratégia do tédio não funcionar, cabe tentar algo mais ousado, desafio para os experientes, consiste em experimentar algo excitante o bastante para esquecer-se do estado de insônia. Normalmente tento a segunda opção - movo-me até a sacada, sento-me em uma cadeira de praia qualquer e no escuro permaneço, com uma xícara de vidro generosa, chá quente de capim-limão.
As linhas já não estão tão escuras mais. Meus olhos acostumados à pouca luz, já não precisam da brasa dos meus cigarros. Foi em vão o cuidado para não deixar-me notar, percebo que alguém me observa, um vizinho ao lado numa infeliz curiosidade, e pelo jeito não vai parar. Tenta esconder-se atrás de seus cigarros, arruinando meu momento íntimo e raro. Entre a folha de papel e a caneta, um vácuo já tratou de se criar. O turbilhão de idéias e pensamentos que mal começara, estava prestes a esvair-se das minhas mãos. Mal sabe ele como o odeio, por afugentar meu raro sopro de inspiração.
Como se não bastasse a presença humana para afastá-la, o sereno frio começa a arrepiar-me os pêlos finos dos braços, e a fagulha de inspiração se apaga sem deixar fumaça. Vou-me embora daqui, entregar-me ao mundo dos sonhos, ao tão sonhado sono, e ai de mim que desafio o sol, que impiedoso e pontual logo virá carregando o dia.
Um barulho estridente me assusta, a caneta rola até um par de pés frios, prendendo-se a minhas solas branquelas, que logo estariam molhadas pelo chá quente de capim limão. A xícara de vidro vai ao chão, os estilhaços rompem a pele no momento do atrito. A pele que era branquela agora parece avermelhada e ferida, a insônia que era só minha, agora estava dividida.
Uma ladra de noites, embriagada de inquietação. Como se não me bastasse engolir o próprio sono, bebo goles generosos do sono alheio sem querer. Noites de sono que talvez já haviam se perdido, como o meu, a uma porção de horas atrás.
A luz da lua refletia-se nos estilhaços, paro por aqui com minhas letrinhas feias de tinta azul em itálico. A cama desfeita nunca me pareceu tão convidativa, um ser humano vivendo ao contrário, e lá fora nascia mais um dia, atribulado enquanto eu dormia. A sedução da madrugada, o fascínio da meia luz, ou algo desconhecido que atraí para o nada. O nada em que encontro tudo, o tudo de um mundo que ninguém mais vê, mas traduzido através das minhas linhas se pode sentir pelo que se lê.
E os efeitos colaterais? Já dizia um velho amigo, que a inquietude é a essência da obra-prima...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Gaúcha Chimarrão - Henrique Donancio

Era noite de carnaval. Corria sobre as feições de meu rosto um vento frio, vindos das correntes de ar das águas geladas do Atlântico. As ruas estavam demasiadamente iluminadas, com pisca-pisca de cores alegres. Havia muita gente se dirigindo para a avenida principal do balneário, onde todos festejavam. Ainda me adaptava a um novo estilo de vida, fazia amigos, deixava alastrar os primeiros nódulos de minhas raízes num lugar até então desconhecido. A blusa de frio condenava tudo isso. Era um dos poucos agasalhados, não que o tempo estivesse gelado, pelo contrário, estava agradável, o vento era o que me causava certo incomodo. Estudava todos aqueles rostos novos, com a esperança de reconhecer algum, mas era inútil, a mais de dois mil quilômetros de casa ninguém me era familiar. Zombava dos hábitos estranhos daquela gente com alguns amigos que também compartilhavam do mesmo sentimento, quando um grupo de garotas parou por detrás de nós três (não que tivesse reparado a princípio) e então uma delas, que trazia preso a cabeça uma bandana cor de rosa desapegou do grupo, e correndo enquanto dava lhe de costas veio em minha direção e deu me um tapa nas nádegas. Dei-lhe um olhar frustramente pouco exaltado, fitei para os que me acompanhavam, e todos me olhavam com a mesma expressão interrogativa talhada em seus rostos, então bati a mão no bolso de trás. A carteira! Minha carteira, que guardava algum dinheiro e todos os documentos essenciais para viver na vida socializada e burocrática do mundo moderno estava intacta.
- A carteira, sua carteira está ai?
- Está, ela está no meu bolso, me esperem aqui. E subitamente, e creio que até involuntariamente coloquei-me a correr atrás da garota.
Quando a avistei ela ria, provavelmente do seu feito, estava junto as mesmas pessoas que pararam por detrás de nós a pouco. Quando notaram que me aproximava alguém disse: “corre, corre”, ela arregalou os olhos, sorriu e pôs-se a correr dando gargalhadas.
Atalhava entre os corpos que andavam vagarosamente a olhar a festividade dos blocos carnavalescos. Tinha certo jeito de entrecortá-los, diferentemente de mim, que grotescamente os trombava com esbarrões. Apesar da sua agilidade, tinha pernas curtas e grossas, que pesaram na sua fuga, tanto que não tardou muito para os meus passos espaçados a alcançassem. Agarrei a pela braço e voltando a para mim disse:
- Me solte, me solte! Quem és tu para me agarrar assim!
Soltei-a pois suas palavras me fizeram por um curto espaço de tempo pensar que eu estivesse a agarrando, como um bêbado pegajoso que flerta, se é que pode assim ser considerado, pelas forças de suas mãos e pela insistência de trazer a mulher desejada por força bruta.
- Você é louca! Dá-me um tapa e quer que fique por assim mesmo?
Ela riu e então disse: -Então não gostastes de tapas?!. Sua vulgaridade começava desabrochar certo encanto em mim, pelo sorriso, pelo jeito atrevido de falar, me fitava com olhos reluzentes. Um olhar infantil dentro de uma mulher promíscua.
- É, não sei, enfim, acho que me equivoquei, ando bastante perturbado.
-Perturbado?! Em pleno carnaval? Bah, vamos lá! Tenho certeza que não és daqui, nunca o vi antes, e o modo como tu fala és estranho.
- Certamente, vim de Minas, e ainda estou me adaptando.
- Tu te adaptas fácil guri, fácil!
O grupo de amigas nos alcançou, mas perceberam que a situação já não tinha um clima hostil. Ela apalpava meu rosto delicadamente, quando então me convidou para beber algo.
Os bares da cidade vendiam poucas bebidas das quais gostava. Tinha certa preferência pela cerveja da garrafa verde, mas a última tinha sido vendida a pouco, argumentou a garçonete. Peguei uma garrafa longneck de Stela Artois, quando a menina voltou do grupo de amigos trazendo uma cuia transbordando mate.
Aquilo era para mim como um chá (adianto já que realmente se tratava de uma espécie), e jovens como nós, em minha terra não andam bebendo chás pelas ruas, aliás, se quer bebem. Então zombei:
- Se andasse com isso por onde eu moro, pensariam que estava bebendo maconha.
Ela riu da minha grosseria. De fato tal pensamento tinha certa hilaridade.
- Nunca bebestes chimarrão antes?
- Não, não vendem disso na minha região, e bem, o aspecto não é dos melhores.
- É, entendo, não é tão bom assim, mas é que se acostuma, então acabando viciando. Prove deste.
Quando estendeu a bomba rumo a minha boca retribui com repugnância, quando levantei os olhos e os pousei sobre seu rosto cedi, desci afim de encontrar a extremidade do canudo quando o tirou a do meu rumo e me deu um beijo. Era um beijo quente, e tinha o frescor de erva.
Sobre a garota dessa noite, bem, nunca mais a vi. Trocamos contato naquela noite, telefone, redes sociais... Mas creio que ela também não teve disposição para correr atrás de algo tão repentino e fugaz. Quanto a mim, todas as noites antes de sair, tomo uma cuia de mate para disseminar o beijo da gaúcha chimarrão.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Éden ao Avesso - Caio Machado

Aquele lugar se assemelhava a um jogo que eu costumava jogar no Playstation na época da faculdade. Havia construções nada convencionais e muita névoa e nuvens acinzentadas ou esverdeadas para todos os lados. Eu me sentia literalmente em uma fase de Silent Hill, com o adendo de que tudo também me lembrava um enorme celeiro. Várias pessoas caminhavam pelo lugar, cada qual caracterizada de maneira diferente, me parecia um grande carnaval de zumbis, mas de maneira alguma aquilo se mostrava assustador. Meu pai foi a primeira pessoa que eu reconheci naquela multidão toda.
- Pai, eu não me lembro de como foi que te encontrei por aqui, alias não me lembro de muita coisa, a última coisa de que me recordo foi de vê-lo no altar... Alias, por que você agora está tão jovem e que roupas descoladas são essas? Qual o motivo de todo esse bucolismo em forma de nuvens...
- Filho – ele disse isso numa voz tão suave que eu quase não a reconheci - Nós morremos no dia do seu casamento, na verdade eu faleci algumas horas antes de você, sofri meu segundo AVC a caminho do altar e você já tomado pela ansiedade do matrimônio enfartou ao saber que eu havia morrido durante a cerimônia. Curiosamente logo que cheguei, encontrei as pessoas certas para me guiarem por aqui e logo entendi tudo que se passava nesse lugar indubitavelmente esplêndido! Este é o paraíso e esse nome nunca fez tanto jus ao seu significado. As coisas por aqui não funcionam da maneira convencional e nem tudo é politicamente correto da forma que imaginávamos, mas é isso que o torna literalmente um paraíso! O melhor de tudo é que aqui é tudo totalmente personalizável, você escolhe o que quer ser e o que quer ver, estou me perguntando nesse momento por que eu não tinha morrido antes?! Você está pálido e um pouco assustado, mas ainda vai se acostumar com a idéia...
- O que?! Eu estou morto? E o senhor também? E por que eu não me chateei com isso ainda? Isso é um sonho...?
- Sim, estamos mortos e pra piorar você ainda largou a Cecília no altar! Quem diria que isso soaria tão trágico assim!
As coisas começaram a se clarear, o local ia se tornando mais agradável de maneira involuntária e o ar agora parecia até estar menos rarefeito. Na medida em que caminhávamos meu pai ia me explicando sobre o funcionamento do paraíso e por todo o caminho nos deparávamos com pessoas e situações no mínimo curiosas. Chegamos em frente de um gigantesco edifício cinzento, onde nem com grande esforço se conseguia avistar seu topo e por mais estranho que isso fosse ele ainda possuía uma estética totalmente celestial e moderna ao mesmo tempo.
- É aqui que praticamente todo mundo vive, os andares e apartamentos são renováveis na mesma proporção em que novas almas aparecem por aqui. Dá pra acreditar que o Lênin agora divide seu apartamento com ninguém menos do que Hitler? Ou que o Syd Barrett e o Richard Wright aguardam ansiosos que os outros três membros do Pink Floyd morram para eles celebrarem no salão de eventos um show de reunião que nunca aconteceria na Terra. É muito fácil presenciar essas estranhas questões de orgulho que esses porcos nunca teriam coragem de admitir ou fazer em vida! Por mais estranho que pareça nem o Renato Russo e nem o Jim Morrison morreram, dizem que o dois abriram um cassino na Tailândia... Tanta coisa bizarra acontece por aqui e eu ainda fico me perguntando por onde andam as pessoas humildes e sofredoras que sequer tiveram tempo em vida para se entregarem aos prazeres do pecado... Só mesmo essa corja vem parar aqui!
- Ei! Aquele ali não é o Dom Pedro II indo esquiar?
- É sobre isso que me referi agora! Quem encarava a vida como uma grande injustiça e preferia viver de maneira justa e honesta não entendia que essa era a pior maneira de se viver. Levando-se em conta claro, que as pessoas que estavam em destaque ou mesmo em posições de poder jamais agiriam de maneira honesta para alcançarem tais posições! Não é fácil discernir essas coisas em vida, ninguém imagina que dor e sofrimento alheio alimentem forças para se chegar até aqui. Acredito eu que o inferno seja uma grande fábrica de dor, onde as pessoas que já sofriam e eram passadas para trás acreditando estar fazendo o bem continuam assim e passarão o resto de seus dias sofrendo o triplo ou quádruplo de tudo até compreenderem que não agiam da maneira certa! Isso se essas pessoas não apenas sumiram e o inferno sequer exista também, uma vez em que não conheci ninguém aqui que se lembrasse ou referisse algo a respeito da existência do mesmo!
Já não dava para entender quase nada e por sinal eu teria apenas duas escolhas: ou eu passaria o resto de minha existência tentando compreender tudo ou eu apenas me conformaria com o fato e desfrutaria de tudo o que tenho direito por aqui! Essa última opção com certeza tem sido a mais preferida por quem já habita esse lugar, inclusive meu próprio pai já era adepto da mesma... Dirigimos-nos até o grande lobby do edifício e nos sentamos em um confortável sofá.
- E sobre Jesus? Eu gostaria muito de conhecê-lo, com certeza muita coisa nos seria esclarecida!
- Você já o conheceu...
- Já? Eu não lembro em qual ocasião!
- Ah, lembra sim, ninguém se esquece! Lembra-se de quando você era apenas um garoto e após a saída da aula esperava o ônibus para casa junto de seus amigos e um cara te perguntou de maneira nada inteligível sobre como chegar até um determinado lugar? Você de maneira impaciente o rejeitou apenas julgando o aspecto deplorável ao qual ele se encontrava, se lembra? Seus amigos acharam aquilo um grande barato, mas na verdade aquele era Jesus e você desperdiçou sua provável única chance de se dar bem com ele... Olha, é muita sorte que você tenha conseguido parar aqui! Ele quase nunca aparece por aqui e ninguém sabe a forma real dele, pois ele está sempre a mudando. Ele não é parecido com o John Frusciante que nem nos filmes, alias esse guitarrista já esteve bem perto de morrer e com certeza o destino dele não seria aqui... Voltando ao assunto, Hollywood tem essa mania de distorcer as coisas, aquele lance de olhos verdes, cabelos longos e barba... De fato a gente nunca vai saber bem quando encontrá-lo...
- Você só pode estar brincando né? Pai e se...
- Eu queria, mas não estou. Por sorte você agiu como um verdadeiro político corrupto celestial, sé é que podemos colocar isso dessa maneira, mas as coisas funcionam mais ou menos assim por aqui. Às vezes a proporção de hipocrisia encontrada aqui é ainda maior do que lá em baixo. A maioria de quem se encontra por aqui foram uns grandes merdas em vida, mas bajularam e blasfemaram tanto o nosso Senhor que acabaram vindos pra cá... O Cara gosta muito de uma bajulação pra enriquecer o ego onisciente dele... É muito fácil subornar Deus, você mesmo era muito bom nisso. Vivia rezando e colaborando na igreja, isso quando vez ou outra não estava trabalhando com seus projetinhos ecológicos ou mesmo ajudando instituições que tratam de deficientes físicos. Aquele bando de miseráveis asquerosos...
- Pai, se bem me lembro estamos no paraíso...! Vê se controla esse seu vocabulário!
- Depois que já estamos aqui não acontece mais nada, não haverá um segundo julgamento no purgatório ou algo que o valha, estamos livres para falarmos e fazermos o que quisermos por aqui! Ninguém sabe, mas as coisas por aqui são bem diferentes do que imaginávamos quando estávamos vivos... Há de se entender porque há mais homens solteiros do que casados por aqui? Casamento enlouquece a qualquer um! Boa parte das mulheres que vem parar aqui foram assassinadas por seus maridos tomados pelo seu ciúme doentio que elas lhe causavam e elas não precisavam nem estar necessariamente erradas. Aquela falsa sensação de que o casamento é como se fosse uma propriedade adquirida ou de que você ter que pensar por duas cabeças tira qualquer um do sério! Aposto que você só está aqui porque não chegou a se casar. Adultério, ataque de nervos e essas coisas são menos eventuais e destrutivas do que a angústia e a depressão que ocasionalmente atacam as pessoas mais solitárias, falando nisso, venha comigo. Vamos procurar umas garotas!
No fundo do edifício havia pelo menos umas trinta piscinas repletas das mais diversas pessoas e todo mundo por ali não parecia se importar com nada. Não existia racismo e nem preconceito e as pessoas aparentavam ser incrívelmente liberais. Uma grande orgia ocorria nas piscinas e aquilo nada feria o pudor de ninguém e sequer aparentavam incomodados ou afetados.
- Audous Huxley foi à única pessoa além de Jesus Cristo que teve a oportunidade de ressuscitar. Não é de se estranhar que tudo por aqui seja que nem em seu romance Admirável Mundo Novo. De maneira subliminar ou mesmo apocalíptica ele nos contou sobre como as coisas acontecem livres e descompromissadas por aqui e mesmo sabendo que ele seria castigado por isso, não se importou com as consequências. Tudo que ele buscava era um certo reconhecimento na história e sua única exigência por aqui foi que ele fosse exilado em uma ilha, assim como também ocorre com os personagens questionadores no livro. Quem acreditava que não se podia vender a alma para Deus estava completamente enganado... Também não dá pra se duvidar completamente da venda de indulgencias que ocorria na idade média ou de coisas semelhantes que víamos constantemente por aí... Filho? FILHO, O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
De maneira rápida e inexplicada o edifício começou a desmoronar e um grande clarão invadiu todo o lugar. As pessoas desesperadas corriam feito formigas tontas e enquanto algumas delas explodiam, outras apenas desapareciam. Parecia que eu agora estava a ponto de conhecer o inferno também. Meu pai se transformava em um enorme gigante e parecia que eu e ele iríamos logo explodir também...!
(...)
- Querido, você estava cochilando?
- Eu? Ahn? Não, não! Só estou um pouco anestesiado com a emoção de estar aqui!
- Aceita Cecília como sua legítima esposa prometendo amá-la e respeitá-la, na saúde..?
O Padre por sinal já repetia a mesma pergunta feita durante meu leve cochilo. Os olhos de Cecília brilhavam muito e davam a impressão de que lágrimas poderiam saltar deles a qualquer instante, seu vestido acentuava suas curvas e a deixava estúpidamente esplêndida. Meu velho agora me fitava com aquele olhar de negação que ele sempre emitia, ato contínuo piscou seu olho direito para mim soltando assim uma gostosa gargalhada que ecoou pela catedral. Eu já não tinha mais escolha...
- Sim, aceito!

quarta-feira, 13 de abril de 2011

E se não houvesse funeral? - Caio Machado

Seu subconsciente sempre te trai.
Breno sempre vinha com uma história de que durante os últimos dois anos morou em Lages, uma cidadezinha no interior de Santa Catarina e que por lá cursava Engenharia Ambiental em uma universidade particular, sendo colega de um tal de Marcos, com quem ele jogava basquete nas terças e mantinha um princípio de amizade. Além de ser alto, corpulento e dispor de um puta fôlego, o tal do Marcos ainda era gaitista e tocava em uma banda de blues. Diziam que ele era o único gaitista do pedaço e por mais que surgisse outro ele continuaria sendo a única referência local, porque ele era o melhor no que fazia. Segundo Breno era muito comum existirem bandas de blues naquela cidade, o que dava um toque verossímil a toda aquela anedota sobre seus estudos. Depois de uns oito meses de curso Marcos resolveu trancar a faculdade e se dedicar somente a música, se integrando num tal de Circuito Fora do Eixo e participando ativamente da maioria das bandas da cidade, tanto na parte de performance, quanto na parte de produção. Para o Breno aquilo foi um baita choque, porque ele era seu único companheiro e ele dificilmente se socializava com as demais pessoas da faculdade. Dessa maneira seu rendimento começou a cair na faculdade e ele se encontrava constantemente envolvido em discussões com colegas e professores, que em muitas das vezes se sentiam humilhados pela tamanha eloqüência e capacidade de argumentação de Breno, que em contrapartida na maior parte das vezes se mostrava distante e desconexo com o ambiente acadêmico. Com esse pretexto da saída de Marcos e pelo seu péssimo relacionamento com a sociedade ele voltou para casa de seus pais no interior de Minas Gerais e por lá começou a espalhar essa história. Foi aí que surgiu na cidade sua fama de esquizofrênico ou mesmo de lunático, pois todo mundo sabia ou ao menos pensava que sabia que ele jamais morou em Santa Catarina e que dificilmente Marcos ou qualquer outra pessoa citada por ele pudessem existir. Enfatizando o detalhe de que ninguém sabia o que acontecia com o dinheiro que os pais de Breno depositavam para ele quando ele estava fora, apenas sabiam que era investido em seus estudos e no aluguel de um quarto barato em uma pensão. Seus pais nunca se preocuparam com a integridade ou mesmo com o comportamento do filho enquanto ele esteve ausente.
Na primeira clínica psiquiátrica ele quase não falava mais no assunto. Dizia que detestava o comportamento preconceituoso das pessoas que se depararem com um esquizofrênico e que vinha bolando um método que derrubaria tudo que Freud e os atuais especialistas afirmavam sobre o tema. Vou quebrar as barreiras e parâmetros da psicanálise, era o que ele sempre repetia. Os enfermeiros nunca levavam isso a sério, mas já percebiam que se tratava de um rapaz comum. Enquanto esteve internado passou a estudar freneticamente São Tomaz de Aquino na biblioteca da clínica, mas ainda sim insistia na questão da psicanálise sem se deixar influenciar pela fé ou pela sua respectiva filosofia. Não demorou que a diretora da clínica movida pelo fervor de sua fé se comovesse deixando que ele retornasse para a casa dos pais, alegando um ótimo desempenho e progresso da parte de Breno. Lá estando subitamente o rapaz passou a frequentar o AA e se dizia um alcoólatra irreversível, compartilhando a experiência de ter iniciado o vício após um único gole de vodca. Por ser de conhecimentos de muitas pessoas na cidade de que ele era abstêmio declarado, não tardou que ele fosse desmascarado dois meses após seu ingresso na instituição. Esse ato pueril foi responsável pelo desencadeamento de um enorme conflito de alguns frequentadores que acreditavam estarem vivendo um enorme teatro e Breno acabou quase sendo preso, porém sua fama de lunático o afastou do cárcere. Seus pais foram informados e novamente a suspeita de esquizofrenia pairava pela casa motivando-os a uma nova internação do rapaz que dessa vez alegava sim beber e que fariam um enorme mal o retirando dali.
Me acho legal o bastante para conversar comigo mesmo, dizia Breno para sua mãe. Era essa a sua justificativa mais cabível quando se mostrava irritado por desacreditarem de algum nexo relacionado aos seus laços de afeto com Lorena, sua suposta primeira amiga imaginaria. A garota apareceu de maneira rápida em sua vida sendo sua primeira amiga de infância e mesmo antes de completar dez anos vivenciou suas primeiras experiências eróticas com ela, que por sua vez já tinha treze anos e se mostrava bastante emancipada, experiente, flertando fluentemente com a puberdade que a esculpia primorosamente. Ao retornar de Santa Catarina Breno afirmou estar namorando com a moça, mas curiosamente a mesma nunca fora apresentada aos pais, familiares ou amigos. Sequer os dois já haviam sido vistos juntos. Sua mãe acreditava que aquilo seria seu principal sintoma de perturbação, já que a garota atormentava sua infância e agora também sua vida adulta. Dois dos três psiquiatras posteriores disseram que esse medo de mostrar a primeira namorada aos pais é frequente e que seus pais só ainda não tiveram oportunidades de conhecê-la devido ao acaso que se mostrava um grande bastardo ao evitar que isso ocorresse. O terceiro psiquiatra foi consultado na capital de Minas Gerais por indicação de amigos e lhes recomendou que o matriculassem num colégio militar de regimento interno. Pela fama e confiança que colocavam no especialista seus pais acreditavam que Breno poderia ter um futuro militar brilhante. Foi a partir daí que os seus já pré-diagnosticados problemas de alienação e esquizofrenia se intensificaram. O resto não será mencionado posteriormente.
Marcos recebeu um envelope rosado em sua casa e outro na sede de seu coletivo vinculado ao Fora do Eixo. Breno não queria que a mensagem fosse extraviada e se assegurou de que chegaria a Marcos independente de onde ele estivesse. Aquele seria o primeiro convite para um velório em que o próprio morto o convidaria para sua cerimônia póstuma. Breno orquestrou seu suicido de maneira que coincidisse com o mesmo dia do show que a banda de Marcos faria em sua cidade em um discreto e relevante festival de Blues. O suicídio se realizou através de enforcamento através de um pedaço de uma rede de descanso. Breno se pendurou e se jogou da janela de seu quarto. Por se tratar do terceiro andar do prédio da junta militar a pressão exercida pela corda foi o bastante para que quebrasse o seu pescoço, impedindo assim que ele sofresse asfixiação ou mesmo uma morte lenta. Junto ao bolso da calça deixou uma carta com sua despedida e algumas instruções de publicação sobre um trabalho que havia concluído há pouco. Seus companheiros de quarto o encontraram quatro horas após o ocorrido e na instalação havia em cima da escrivaninha uma enorme pasta com um ensaio de aproximadamente setecentas páginas sobre sua tese a respeito do estudo de behaviorismo através da esquizofrenia. Os colegas disseram que ele vinha escrevendo e trabalhando nisso desde que se instalou na escola militar. A dedicatória dizia “Ao Marcos e Lorena, pelo único amor concebido e aos meus pais que desacreditando de mim me fizeram me envolver ainda mais nisso”. Um especialista da perícia teve acesso ao ensaio de Breno e num surto de emoção resolveu editar e financiar a publicação do mesmo, que segundo ele são os mais brilhantes estudos sobre psicanálise já escritos. Posteriormente o ensaio se tornou um Best-seller referencial em estudos psiquiátricos e neurológicos. A família de Breno não receberia um centavo sequer dos lucros, exigência explicita pelo filho em sua carta de despedida.
Ao redor de seu corpo uma moça desconhecida chorava muito e todos os presentes naquela funerária explodiam de curiosidade acerca da identidade da moça que não cessava mais suas lágrimas. A moça tinha cabelos castanhos cacheados, olhos claros e parecia ser pouco mais velha que o Breno. Um rapaz corpulento e com um enorme bigode compareceu duas horas antes de o enterro iniciar-se, ele portava uma enorme mala provavelmente lotada de roupas e aparatos musicais. A moça não conseguia notar a presença do rapaz ou de qualquer outra pessoa no local, sua atenção estava toda focava no cadáver de Breno que jazia naquela pequena saleta. Num breve momento de desvio de atenção notou aquela silhueta que não lhe soava estranha e automaticamente gritou pelo nome de Marcos, novamente caindo em pranto. Marcos seria a única presença por ali capaz de conformá-la, o rapaz a abraçou e eles permaneceram assim por bastante tempo. Ele conseguia segurar suas lágrimas, mas sua tristeza era certeira, uma vez que ao observar Breno todas as suas partidas de basquetes e longas conversas se remetiam ao seu pensamento, acompanhados de um forte sentimento de arrependimento de não ter usufruído mais daquela amizade. Todos os ali presentes se arrepiaram e ao notarem que Marcos era real deduziram automaticamente que a moça se tratava de Lorena: a mesma garota que Breno dizia sempre encontrar no jardim do Parque Municipal e que ninguém dava o braço a torcer pela sua existência. O sentimento de culpa e ressentimento invadiu as mentes de seus pais que arrependidos dariam suas próprias vidas para recuperarem a vida do filho que sempre consideraram como caso perdido ou que mesmo nunca se importaram com a presença do mesmo, preferindo gastar suas economias em viagens por praias em todo o país. Marcos quis carregar o caixão de Breno até a sua lápide no cemitério, mas sua família envergonhada teria somente este fardo para provar que podiam ser algo pra Breno. Aos menos em seus instantes finais.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Rita Promíscua - Henrique Donancio

Eu não consigo diferir o que é verdade, do que não é. Minhas alucinações prendem-me a duas dimensões distintas. Eu não sei quando estou acordado, nem quando estou dormindo, e não sei agora.Tudo parece ser real, mas recuso me a aceitar, prefiro crer que estou sonhando, como tantas outras vezes.
Fiz coisas do mesmo feitio, e despertei com um lindo raio de sol tocando meu rosto com seu brilho ardente, encharcado pelo suor da minha elucides, com o coração bombeando fortemente sangue pelas minhas artérias, o podia sentir, se mais um pouco, o apoiar com as mãos, acolchoando suavemente entre duas palmas calejadas de trabalho.Devo estar sonhando, devo, será questão de tempo para que minha consciência torne ao que se chama de mundo físico.
Minha garganta seca, minhas mãos tremem, estou sujo, o suor, não o mesmo de uma alucinação, mais viscoso, o de trabalho, começa a aderir ao tecido de minha camisa que já contém um odor típico de um dia inteiro debaixo o sol. Não me pertuba, mas Rita se incomodava com o cheiro, tratava de por me debaixo o chuveiro, ou debaixo do brilho da lua. Ás vezes, cansado e em dias frios, repudiava ter que ficar debaixo daquele bico d’água gelada que chamam de chuveiro. Então não me importava de ficar na rede olhando a lua até adormecer, Rita não me dava amor mais, e seu cheiro também não me agradava. Ela fedia perfume bom, e dizia que era presente da mãe. Veja se a velha moribunda e morta de fome daria um negócio granfino daqueles pra filha biscate! Quem presenteava era o talarico dono da farmácia, que bem por cá dava as caras quando me punha ao trabalho. Filho da mãe! Mal sabe gastar o dinheiro que ganhas. Logo com Rita, que cintura já não se via, as tetas caídas pendiam como saco vazio, e sua buceta mucha e gorda não dava caldo. Filho da mãe! Por quase não o pego também.- Só você pagou por isso Rita burra! – Converso com o defunto ensangüentado sobre a cama.
Deixá-la-ei bem aqui, para quando o seu amante vir lhe meter o pegue com a mesma faca, e a contorça dentro do seu cangote, não antes de lhe dar a chance de se defender e morrer como homem.
- Rita! Rita! Rita! Grito, porque amo a vagabunda esquartejada sobre a cama.
- Não era pra ser assim meu amor, não era, eu juro por tudo que é mais sagrado que te amo, não foi sua culpa, sei que não tinhas a intenção de me trair, sei que não!

- Pare de berrar homem e se arrete que já é dia! A voz de Rita estrala dentro da minha cabeça. Aconteceu de novo, era só coisa da minha imaginação, a velha Rita ainda está aí gorda como sempre. Visto-me e coloco-me a mesa para o café. Ela tagarela seus problemas.Enfim parto para a labuta, o sol arde, corre do meu chapéu uma gota de suor que cai e ofusca minhas vistas. Ouço um carro vindo em alta velocidade cortando-me, chega a frente e abre uma de suas portas, dou uma coçada no olho e os ponho em direção ao automóvel, um tipo barbudo saca uma arma e aponta para mim, dispara três e adentra novamente no automóvel, partindo com pressa. Estirado sob o sol vou perdendo os sentidos, ouço movimentos vindos de minha casa, Rita não vem ao meu socorro, outro carro, só que agora lentamente vem em minha direção, apenas sinto suas rodas tocarem o asfalto, para e sombrea meu corpo com sua estrutura, o filho da mãe tira os óculos, deve ter vindo conferir o serviço, farmacêutico filho da mãe! Ele se afasta, com velocidade agora, os raios de sol voltam a me tocar, são os últimos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Dixie - Caio Machado

O pardal pousou no muro cheio de musgo e se pos a descansar de seu longo vôo, poderia ter escolhido a fiação elétrica, mas preferiu aquele monte de tijolos preenchidos por toda aquela coloração opaca esverdeada. Do outro lado da rua a faminta gatinha Dixie a fitava e de maneira minuciosa iniciou a travessia da rua para o iminente ataque ao pássaro que garantiria seu lanche da tarde. A felina só não contava que um Volkswagen Fox beirando os 65 km/h a atropelaria lhe devolvendo ao mundo dos mortos transformando-a num ser inexistente e desprovido de vida, preservando assim a vida do pardal que nem sequer imaginou que a alguns segundos atrás se encontrava ameaçado. A roda dianteira partiu seu dorso que em instantes inundou sua pelagem branca de sangue. Dixie ainda teve forças para rastejar por uns segundos emitindo um fraco miado. O dono do veículo não se deixou ao luxo de parar e seguiu seu caminho apressadamente, provavelmente teria um compromisso mais importante do que a vida de animais alheios.
Apenas a duas quadras dali, Gustavo voltava de trabalho deslizando vagarosamente sobre o asfalto em sua Specialized Hard Rock, a velha bicicleta que pertencera a seu pai em importantes competições ciclísticas e que agora não lhe servia mais do que meio de transporte. Na esquina da rua de sua casa quase se chocou com o mesmo assassino de Dixie, que ainda se exibia acelerado e desconexo, mas Gustavo agiu com indiferença e seguiu seu caminho, estava habituado ao desrespeitoso transito da cidade. Ao se aproximar viu o corpo da gata estirado junto ao meio-fio em cima de uma enorme poça de sangue já bastante coagulada. Seus olhos encheram d’água instantaneamente ao reconhecer seu mascote e ele rapidamente entrou em sua casa evitando de olhá-la para avisar sua mãe que ao saber da novidade disparou uma torrente de lágrimas incessantes. Rafael, seu irmão mais velho e também o mais desligado e descompromissado da família foi o último, a saber, do triste ocorrido, mas não também o último a sofrer com a perda. Ele se lembrou do zelo e das freqüentes brincadeiras que tinha com Dixie, sem também esquecer de como ele conheceu sua atual namorada quando foi comprar latas de atum para Dixie no armazém do bairro onde a garota trabalhava. Dixie sem querer o fez encontrar o possível amor de sua juventude e quem sabe posteriormente sua futura esposa com quem teria filhos que brincariam com os filinhos de Dixie. As tragédias nem sempre acontecem desacompanhadas.
Por não disporem de um local de grandes proporções de terra em sua casa, decidiram por enterrar Dixie em um terreno baldio próximo a praça do bairro. O local já fora usado pelos irmãos quando ainda eram crianças para brincarem em suas intermináveis competições de bicicleta, aliás essa era a grande paixão da família. Gustavo sempre se mostrava o mais alienado, mas dessa vez se deu todo o trabalho de cavar o leito e de enterrá-la, a sensação de perda causava um grande nó em seu estomago e consequentemente o tornava mais apegado e responsável. Rafael e sua mãe colocaram junto da sepultura uma lata de atum Gomes da Costa e sua almofada amarela de veludo onde ela estava habituada a descansar. Não dá pra se prender um animal orgulhoso como um gato em sua casa, mas aquela família de uma maneira inexplicável exercia uma enorme influência sobre a finada gatinha. Abraçados e aos prantos, mãe e filho observaram enquanto Gustavo cobria o resto do leito com aquele monte avermelhado de terra.
Após o enterro um grande problema ainda restava para ser resolvido: uma semana antes do homicídio, se assim podermos o tratar por dizer respeito a apenas um pobre animal, Dixie deu a luz a seis filhotes e naquele momento eles ainda se encontravam bastante mirrados e famintos, necessitando assim de serem amamentados antes que viessem a falecer e seguirem o desolador destino da mãe. A cidade em que a família vivia era bastante interiorana e pouco desenvolvida, não dispunham sequer de bons médicos, imaginem só se eles fossem recorrer a algum veterinário, aqueles animaizinhos estariam perdidos se não tomassem uma devia providencia. No primeiro dia Rafael foi até o armazém onde sua querida Helen ainda trabalhava e comprou alguns litros de leites pasteurizados na tentativa de saciar a sede dos inofensivos filhotes que responderam bebendo pouco ou quase nada da bebida, inclusive alguns até relutaram em sequer provar da mesma. Ao segundo dia seu irmão menor sugeriu que tentassem com leite integral, já que haviam recusado o outro no dia anterior. Nada feito. A aversão ao UHT foi ainda maior que ao pasteurizado e um dos filhotes ainda veio a falecer por estar muito enfraquecido, deixando a mãe dos rapazes ainda mais deprimida e desolada.
Já meio sem esperanças em resolver o problema Gustavo avistou pela rua sua vizinha Lara, que assim como eles também possuía uma tara por animais. Ela possuía uma graciosa cadela feia que em sua infância lhe rendera milhares de apelidos e que agora a poucos dias coincidente também havia acabado de dar a luz a alguns cãezinhos. Numa idéia desvairada Gustavo contou-lhe sobre o falecimento de sua gatinha e propôs que experimentassem tentar que a sua cadela amamentasse os cincos filhotinhos felídeos restantes. Lara de início riu da situação comparando os animais com Cruzeirenses e Atleticanos e até mesmo com vampiros e sua aversão a luz solar, afirmando que isso nunca daria certo, mas logo notou que o garoto falava cada vez mais sério, mas não conseguia impor isso de uma maneira loquaz. Rafael que também estava de passagem pela rua observou que os dois travavam um principio de discussão no jardim e adentrou na residência de Lara. Ao se integrar da história conseguiu de uma forma devidamente manipuladora e eloqüente deixar Lara com um peso na consciência e afirmou também que a previsível morte dos filhotes se daria por culpa dela e sequencialmente a perturbariam por muito tempo. Lara naturalmente cedeu e assim se decidiu por tentarem a estranha amamentação.
E por mais bizarra que a idéia soasse, mais efetivo e inversamente proporcional os filhotes de Dixie se adaptaram ao leite da cadela feia que após os quatro primeiro dias já nem se lembrava que aqueles cincos exemplares não se tratavam de seus filhotes naturais e sim da finada gatinha Dixie que por muitas vezes a perseguiu pelo bairro. A grande incógnita agora se daria na maneira de como eles iriam desapegar os mesmos filhotes da gata de sua “nova mãe”, que agora sentia por eles o mesmo ou ainda maior afeto materno, mas que necessitavam devolve-los a verdadeira família. Mas nada a deixaria separa-la de seus novos filhotes, já se passariam trinta dias e os miados agora já se confundiam entre os latidos dos demais cãezinhos que nem de longe se aproximavam do visual repugnante de sua mãe e se apresentavam muito adoráveis com suas pelagens bastante castanhas e brilhantes. Lara assim como a família de Rafael compreendeu que seria impossível uma tentativa de separação naquele momento e conscientizou-se por pagar a metade das despesas alimentares daquela exótica família recém formada que agora crescia de maneira desenfreada em seu quintal. Pormenor Rafael conseguiu retirar o filhote que mais se assemelhava a Dixie e o batizou-o com o mesmo nome da mãe homenageando-a e presenteando sua mãe com a gatinha. Os quatro gatos ainda vivem com a cadela feia que por sinal expandiu seu paladar adicionando atum ao seu cardápio e também aos dos seus demais filhotes. Biológicos ou não.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Liberdade Incógnita - Maele Finger

Louise era o tipo de garota que escrevia em diários. Tinha seus diários de folhas coloridas com adesivos brilhosos e a cada dia da semana preenchia linhas de acontecimentos com uma caneta de gel de cor diferente. Seu pai adquirira o hábito de bisbilhotar nos diários da filha, e por isso há três anos ela começara a registrar tudo em código.
Em vários aspectos era como qualquer outra criança. Desenhava com a assimetria característica da idade o contorno da mãozinha, com linhas tortas e curvinhas discrepantes, tudo feito com lápis de grafite bem claro, meio apagado, e geralmente com borrões de tanto apagá-las e tornar a fazê-las. Em outros desenhos, perninhas grudadas no pescoço que alongavam-se até a extremidade inferior da folha. Um quarto de sol das três sempre despontando no vértice superior direito, num contexto em que o chão não existe, as flores e tudo mais ficam flutuando baixo.
Tinha a intuição apurada. Mostrava-se delicada e generosa o tempo todo. Seus gestos de gentileza encantavam a todos com quem estabelecia o mínimo contato, até mesmo através de um olhar despretensioso podia-se sentir a pureza e sinceridade da menina. Além do que, seu sexto sentido era algo perceptível, que lhe permitia exercer, sobre praticamente qualquer pessoa, um domínio quase hipnótico.
Era de uma cultura e educação tal que chegava a causar inveja nos pais das suas colegas de aula. Em encontros, jantares e outros eventos sociais, não raro era mencionada quando o assunto se tratava de casamento, era a candidata predileta à futura nora pelos pais dos colegas meninos que pertenciam ao mesmo círculo social, ou seja, as famílias da alta sociedade.
Seu maior pecado era pintar bigodes e dentes de preto nas capas de business magazines estampadas pelas faces dos pais com seus sócios. Louise tinha o costume de colecionar coisas, orgulhava-se disso e fazia questão de mostrar e esmiuçar em histórias infindáveis as particularidades de todos os itens de cada coleção a qualquer um que se mostrasse interessado em conhecê-las. No entanto, mantinha em segredo sua coleção predileta: um conjunto composto de cento e noventa e sete batons em tons avermelhados, peças de todos os lugares do mundo por onde já havia viajado com os pais.
Sempre dava um jeito de comprá-los escondidos e guardar sem levantar suspeitas dos pais, conhecia-os muito bem e sabia no que ia resultar se soubessem da existência dessa coleção. Seria uma ofensa para seu pai e despertaria a paranóia de sua mãe, que por fim mobilizaria no mínimo uns três especialistas em behaviorismo a fim de entender a origem desse comportamento. Supostamente uma afronta, um hábito que seria considerado repulsivo e vulgar.
No fundo no fundo, Louise sabia que as paranóias de sua mãe tinham lá algum fundamento, e que por trás da materialidade inânime de um batom vermelho qualquer existia mesmo algo mais, que até então mantinha-se subentendido. Seus pais nunca tomaram conhecimento da coleção. Mais tarde perceberam, nunca tomaram conhecimento de nada, inclusive da própria filha que pensavam ter. Sentia medo e insegurança, não gostava que as pessoas encostassem-se a ela, pelo receio que tinha de que pudessem ler ou sentir seus pensamentos, algo que a preocupava e envergonhava.
Louise cresceu, tornou-se uma moça tão encantadora e fascinante quanto era quando menina, mas agora, antes mesmo que pudessem contemplar a graça de sua personalidade, eram traídos pelos olhos. O tempo cobrou-lhe de volta a infantilidade, e como troco lhe pagou com os anos um bocado de sensualidade. Os olhares voltavam-se para seu corpo, e nele colavam-se ardendo em desejo. Em curvas que pareciam imantadas, magnetizavam-se os olhos alheios. Seu andar meigo e pueril dava lugar a passos vagarosos, substituindo o instante fisiológico de união das pálpebras dos admiradores, que por instantes, sem se darem conta as tinham paralisadas. Louise era mulher. Exalava feminilidade e delicadeza ao mesmo tempo em que transbordava em inconsciente provocação. Ela se tornou substantivo materializado, Louise era a tentação. Pura, nua e crua, tentação à flor da pele.
A superfície do corpo quente, aquecida por horas em outros corpos, entrava em contraste com as luzes frias azuis, quando na varanda da casa despedia-se do último cliente. Num robe de cetim vermelho, braços cruzados de modo a descansar as palmas das mãos sobre a cintura, apoiava-se na moldura da porta. No sereno sentia o cheiro de madrugada, exatamente no estreito daquela porta o odor de relento entrava em choque com o aroma de canela e jasmim, vindo de dentro. Louise sorria discreta, sozinha, com o cantinho da boca. Tirava do bolso do robe um batom vermelho, deslizava macio nos lábios e tornava a cruzar os braços. Ficou ali por mais três minutos... ainda conseguia ficar acordada por mais alguns, tempo suficiente para registrar, não mais em códigos, o que quisesse em seu diário.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Pacto com o Diabo - Henrique Donancio

Há homens que tem a fé como norte de suas vidas. Guiam-se pelas palavras interpretadas de livros sagrados, doam-se inteiramente aquilo que nunca viram, mas pressentem sentir. O pescador Américo, o Sr. Américo, era um desses homens. Dedicava seus domingos a família, e claro, a religião. Fazia todos que morava debaixo do seu teto seguir os mesmos hábitos, rezavam, pediam ao bom Deus proteção, agradecia a saúde, a comida no prato, o dinheiro no fim do mês para pagar as contas, e tudo que mais dele parecia provir. Quando a pesca lhe rendia algum a mais, doava uma boa fatia do excedente para a caridade. Américo era um homem generoso.
Quando sua filha mais nova Maria Lúcia de cinco anos adoeceu, Américo parecia padecer junto a ela. A menina, a mais nova de sete filhos, já era a que tinha lhe tinha mais apreço. Levava-a na boleia do barco para a pesca todas as manhas, pois a garota tinha mais necessidade de estar junto ao pai, do que dormir o sono da jovialidade, essencial para seu crescimento. A tosse incessante que lhe acometia além de a cada dia expelir um pouco mais da sua vivacidade punha fora também a vontade de viver de seu velho. O médico que raramente visitava a vila dos pescadores já fora categórico: “Não tem oração que a salve desta”.
No lado norte da cidade corria o boato que Zeferina, uma velha corcunda, enrugada, queimada de sol, praticava milagres. Habitava uma casa que caía aos pedaços, que dava de frente para um lado lúgubre do mar. Se a procurasse a noite e desconhecesse aquela região, dificilmente encontraria seu barraco, que era iluminado a velas. Américo sempre soube de sua fama, e por isso a evitava, diziam que os poderes eram devidos a parte com o diabo.
Alguns meses se passaram e cada vez mais a pequena Maria chegava próxima ao fim. Toda a reza e fé depositadas na melhora da garota não surtiam efeito algum. Foi quando Sebastiana pediu que o marido deixasse ver a velha do lado norte, talvez sua fé fosse grande demais e que nada pudesse contra, argumentava que o pacto com o cão pudesse ser só conversa daquele povo.
Depois da última visita do médico Américo atendeu aos apelos da mulher, e foi ter com Zeferina. Foi à noite, em lua cheia, conhecia bem aquela parte da cidade, fora criado ali, e a velha do barraco de madeira, bem, era sua tia Zeferina.
- Então enfim procurastes sua velha tia meu rapaz.
- Deixe de conversa sua moribunda, sabes bem por que vim.
A velha riu, num sorriso de escárnio, levantou os olhos, fixou-os bem no rosto do sobrinho e respondeu-lhe. – Certamente seu bastardo, certamente.
- Então ande logo que não estou para conversas.
- Não se afoite meu jovem, não se afoite, quero que me preste um favor antes.
- Seja lá o que for, ande, desembuche.
- Quero que tenhas o mesmo fim que sua velha tia aqui. Deslaçando o pano estampado que a cobria, pôs as vistas do sobrinho um par de seios murchos e enrugados, caídos, pendendo como um saco escrotal.
- Velha desgraçada! Vamos faça-o e rápido, não quero dar tempo ao arrependimento.
Zeferina, irmã de Consolação quase fora casada uma vez com o pai de Américo. Porém véspera do casamento se viu abandonada pelo noivo que a trocou pela irmã mais nova. Fugiram para o oeste algum tempo, mas logo tornaram quando estava grávida do primeiro filho. Zeferina se entregou a beatitude, desde que fizera um pacto com seu novo amante, o diabo, que lhe prometeu tirar a vida da irmã em troca de se guardar do gozo dos prazeres até o fim da sua existência no plano espiritual que se encontrava, e assim o fez. Consolação faleceu uma semana depois, pois escorregou bateu a cabeça numa pedra pontiaguda, quando lavava roupas no riacho que cortava a vila.
Maria Lúcia, sofregamente resistiu por duas semanas, até que por fim se viu curada de vez. O médico mostrou-se impressionado com sua recuperação, coisa jamais vista em toda sua carreira. Pouco tempo depois lá estava ela na boleia do barco de seu pai que agora se mostrava apático a radiação de seu sorriso.
Américo viu mulher e filhos morrer de velhice e outros infortúnios, só lhe restando Maria Lúcia, que agora se perdia nas esquinas das ruas que davam para o cais. Diziam ser a melhor mulher da vida daquela região, já velha e moribunda como sua tia, mas ainda competente no que fazia.
Pouco tempo depois, também morreu, vítima do vírus HIV, só restando o velho Américo com alguns netos e bisnetos, fruto de bons e maus casamentos, e também da profissão de Maria Lúcia. Em Outubro de 1953, o velho faleceu de infarto.
No julgamento final, foi posto junto a uma mesa frente a Deus, alguns anjos, Maria e outros santos. O Diabo assistia de longe numa espécie de camarote celeste, a mais um julgamento de seus filhos bastardos.
Deus então disse. – És acusado, Américo, de se juntar, de dar parte ao Diabo, para gozar de benefícios próprios, de contrariar a lei, a minha lei, de que todos os seres tem um inicio e fim determinado, que cada um tem sua hora de partir, e o senhor, que tão crente se mostrou aos meus legados desrespeitou, desrespeitou a mim!
- O senhor é injusto!
- Injusto! Dei-lhe da maior saúde, do amor de uma mulher fiel, filhos trabalhadores e honestos, e por querer tirar-lhe uma prostituta, uma mulher da vida, me chamas de injusto!
- Sim injusto, não cumpres com tua palavra.
- Cale-se seu ser medíocre! Minhas palavras deixaram-lhe até registrada, e dizes ainda que não a cumpro?! Seguistes ela e recompensei-lhe, então desandastes e terá sua pena por isso, arderá no calor, junto com quem lhe é justo.
- Pois seja assim, mas justo é ele, que dá riqueza aos seus devotos, veja, e olhe, quantos ricos são do seu feitio? Só pobres que ardem no sol para trabalhar que lhe são fieis, e como é que lhes recompensa por isso?! Dando lhes pobrezas, pragas, doenças que não tem cura! E promete-lhes um dia ser recompensados por isso? Já vivi no inferno uma vez meu senhor, duas não será demais.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Vaga-lume - Caio Machado

Todas as luzes do meu apartamento estavam queimadas. Só me restava agora a luz que vinha da lâmpada da geladeira, mas por mim daquele jeito estava perfeito e seria o bastante para iluminar as minhas cervejas. Levando-se em conta também que eu nunca chegaria sóbrio em casa até o escurecer ou que quando isso me ocorre sempre estou em algum bar durante a noite, dispensa-se o uso de lâmpadas. Já me aconteceu de algumas vezes eu tropeçar na mesa de centro da sala, mas com o tempo você se torna um verdadeiro cego adestrado e olha que você nem precisa de um cão guia ou tampouco de muletas. Depois que aposentei por invalidez minha vida se transformou no que Rimbaud chamaria de barco ébrio. Meu gordo salário de militar era liquidado todo em bebidas, futilidades e outras cositas más. Inclusive, eu ainda não repus as lâmpadas porque elas valem menos do que eu poderia gastar em algumas boas garrafas de tequila. Sobre como consegui essa vida? Eu quase precisei amputar minha mão direita, que quase foi esmagada em um treino no exército. Não quero entrar em detalhes, mas meu dedo mindinho perdeu três milímetros e não consigo mais dobrar meu dedo anular, mas eu digo sim, que aposentar por invalidez tem suas vantagens que vem a calhar.

Com o tempo eu passei a deixar de usar desodorante, pasta dental e uma grande quantidade de porcarias que encareciam quase 60% de minhas compras. Até mesmo papel higiênico eu havia descartado, alias, eu tomo banho todos os dias, não seria necessário tamanho desperdício de papel. A natureza agradece. Alias esse papo de ecologista sustentável é uma puta hipocrisia, pro inferno com esses vegetarianos que pensam que estão salvando vacas ao deixarem de comer carne. Os açougues e abatedouros não deixaram de existir por causa deles. Se quiserem ir para o paraíso ou se desejam a salvação de suas almas pecadoras, comecem por ajudar pessoas necessitadas ou mesmo a lavar as louças para a sua mãe. Sobre deixar essas “necessidades básicas de higiene” de lado, eu ainda conseguia cheirar bem, me portando como um verdadeiro gentleman e ainda sim conseguia alguma paquera. Alguns ex-colegas meus do exército realmente invejavam meu estilo de vida e toda essa minha mania de querer experimentar de tudo o que era possível, sobretudo até me julgavam como niilista. No meu ponto de vista isto soaria como um elogio a ociosidade e dessa maneira comecei a ficar alheio a sociedade e conseqüentemente, demasiadamente abandonado.

Quando eu ainda usava pasta dental tinha o ótimo habito de escovar os dentes na pia da cozinha. Assim não gastaria detergente para lavar toda aquela louça. A cada escovada dava pra lavar quase três pratos com a espuma que eu fazia com o enxágüe e às vezes até os copos que eu sujava quando preparava minha Piña Colada, que eu já estava habituado e a nomeei como café da manhã. Infelizmente não uso mais pasta de dente e nem mais detergente, só a Piña Colada e às vezes quando o mau hálito aperta, a escova de dente.

Fervia meu aparelho de barbear todas as vezes que o mesmo se entupia de pelos. Depois de três meses ele perdeu totalmente o fio da lâmina. Foi aí que decidi parar de me barbear. Nos primeiros dois meses minha barba não se mostrava tão repugnante, mas depois de uns dias o rapaz do armazém não permitia que eu entrasse em seu estabelecimento por eu estar apavorando e sumindo com toda a sua clientela hipócrita e conservadora que não queria ver ninguém com aparência de terrorista enquanto compravam seus chocolates, preservativos, engovs e nuggets gordurosos. Como eu não queria (e nem devia) gastar meus solados para ir até o supermercado mais próximo ou qualquer outro lugar continuei rondando pelo armazém e na minha primeira oportunidade mostrei para o caixa minha carteira recheada de dinheiro. Ele entendeu do que se tratava e pediu que eu o esperasse lá fora, nos fundos, próximo aos sacos de lixo. Ao desocupar de clientes se dirigiu até mim e me disse para que eu viesse comprar depois das nove porque o atendimento era mais escasso e quase sempre ninguém aparecia por lá. Eu provavelmente fui seu cliente mais fiel, mesmo que minhas compras só diminuíssem a cada vez que eu voltasse lá. Minha maneira de selecionar as reais necessidades vinha se tornando um dom.

Estoquei todo tipo de comida enlatada no armário inferior da cozinha. O estralo na coluna ao abaixar-me para abri-lo era cada vez mais freqüente e mesmo assim me indicava que eu ainda estava vivo. Comia milho, ervilhas, feijão, sardinha, atum e às vezes até mesmo salsichas do tipo Viena. Comia tudo, bebia aquela água amarga e todo o óleo nas latas de peixe, não poderia haver desperdício. Sempre me cortava com as latas maiores, mas mesmo assim não limpava o sangue e raramente me incomodava em preparar algum curativo. Aprendi a me relacionar melhor com a dor, diria até que estava apaixonado ou mesmo obcecado por ela. Aquele era um excêntrico sentimento e certamente o mais puro e irrefutável que eu poderia experimentar.

Provavelmente eu não passaria daquela noite. Estava com indigestão, minhas feridas no rosto não cicatrizavam mais e eu enfraquecia cada vez mais e mais em minha cama na frustrada tentativa de dormir, pois eu saberia que talvez não fosse mais acordar e caminhava por acelerar o processo. Eu suava frio, mas o ardente calor insistia e me mantinha aquecido. Na tentativa de me resfriar e de equilibrar minha temperatura na esperança de que eu não morresse por um choque térmico me despi. Não funcionou, resolvi abrir uma pequena fresta na janela para que o ar circulasse sobre o quarto. Meu colchão já se encontrava umedecido, mas eu não me desfiz dele. Continuaria por ali mesmo. O esforço para abrir a janela violentou a minha resistência e me informou de que eu estava realmente fraco. Já não dispunha mais da minha força viril que uma vez me qualificou como melhor soldado. Se ao menos meus amigos não tivessem me abandonado, mas a questão não é essa! Eles seguiram com suas vidas, arcaram com suas escolhas, e eu por minha vez só escolhi não escolher. Driblando o que seria minha última crise existencial meu último inquilino adentrou no meu quarto pela janela. Eu era motefóbico e tinha aversão a todos os tipos de insetos (bem, as baratas da casa já me fizeram por acostumado), mas a presença daquele vaga-lume não podia me aturdir o bastante. O inseto pairava pelo teto do quarto como a mais suave sinfonia de Brahms, iluminando toda aquela imundície e mofo acumulado nas paredes devido as infiltrações. Sentia que ele era meu anjo da guarda que viria em morfologia de estrela cadente, com suas pequenas e singelas foto-explosões para me aliviar do fardo de viver. Em cada lapso de luz eu imaginava a sua grandeza derivada de um pequeno corpo de inseto. Me sentia livre como ele, mas mesmo assim conseguia chamar a atenção de tudo e todos ao meu redor. Tudo se direcionava a luz que ele emitia, alguns insetos sabiam existir com mais classe do que os outros. Ele sabia bem o que eu sentia: eu era ele e ele era eu. Na medida em que nos conectávamos espiritualmente o pequeno vaga-lume se dirigiu até mim, num vôo lento e rasante, com a intensidade de seu brilho cada vez maior. O tilintar de suas asas batendo rápidas e minha respiração arfante se confundindo no ar eram os únicos e últimos sons que habitariam a atmosfera de meu quarto. Ele se aproximava sempre mais, até que a última coisa que eu conseguiria ver seria o enorme clarão, a mesma coisa que os bebês vêem ao nascer, só que do acesso. Eu estava livre.