quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Artista Itinerante - Caio Machado

Para Gabriel e Caroline Soares

Faltará lirismo no caso em que relatarei. Mas quem se importa? Aquela cidade ainda era uma grande incógnita para mim. A rodoviária não era muito amigável e estava num processo de reforma, que a meu ver ainda iria bem devagar. O que dava uma primeira impressão de atraso e retrocesso a quem chegava naquela cidade não muito receptiva. Antes de me dirigir ao meu destino resolvi consultar o mapa da cidade para que eu me orientasse melhor. Havia um enorme cartaz fixado em uma das paredes do local. Não existiam muitos bairros e pelo que calculei não gastariam mais que algumas horas pra se circular por toda a cidade. Enquanto eu pousava os olhos no mapa um jovem engraxate se aproximou de mim e perguntou de maneira bastante coloquial se eu queria “dar um trato” em meus tênis. Habitualmente ele só deveria fazer a seguinte proposta a senhores trajando sapatos, mas a evidente fome em que ele se encontrava, acompanhada de um possível desespero induziu o rapaz a me propor o serviço. Eu não precisava necessariamente do serviço, mas acabei aceitando. Sentamos no banco mais próximo e ele se postou aos meus pés e começamos a trocar algumas palavras durante uns instantes. O rapaz que perdeu a mãe recentemente se viu forçado a trabalhar, mas a falta de estudos não lhe proporcionou muitas oportunidades. E já que o ganha pão de seu pai é todo investido em exploração etílica não lhe restou muito que se fazer senão seguir o ofício ensinado humildemente pelo seu falecido avô. O rapaz não se dava muito bem com o português, mas era bastante loquaz. Contou-me que quando era mais novo não agia de maneira muito correta e que até preso já foi, por um envolvimento em uma briga. Fez uma singela e grotesca comparação ao dizer que durante o tempo que permaneceu enjaulado ficou tão branco por não tomar sol que estava até parecendo um europeu. Perguntava-me sobre meus interesses e parecia não saber muito bem o que fazia em meu tênis. Ele usava uma mistura que provavelmente não passava de água e sabonete e o serviço dele não me custaria mais do que três reais, mas preferi pagar-lhe dez para que ele se se alimentasse melhor ou o que quer que seja que ele fosse fazer com o dinheiro. Ele agradeceu-me repetitivamente e apresentou-se como simplesmente Gil. Disse que não se esqueceria facilmente de mim e pediu que eu voltasse depois com algum sapato para que ele engraxasse para mim. Aproveitando a ocasião disse também algo sobre doação de roupas e mais coisas das quais não me recordam bem. Para um recém chegado eu agora já ostentava minha primeira amizade.
A rodoviária ficava localizada na orla de uma enorme lagoa que se não fosse pelo visível descaso seria linda. Provavelmente aquele era um dos únicos cartões postais da cidade e para mim já estava ficando claro que a cidade em questão era meio abandonada pelas autoridades políticas. Tanto que em poucos minutos presenciei inúmeras infrações de trânsito que pareciam passar despercebidas por todos ali. Ironicamente isso me deixou satisfeito, pois eu estava ali justamente para escrever um artigo sobre o espalhafatoso trânsito. Ao sair da rodoviária me deparei com um simpático senhor que trajava uma boina cinza e carregava uma pasta de desenhos. Eu com meus vinte e poucos anos não conseguia emanar tanta vida como aquela alma conseguia transbordar. Uma estranha curiosidade se encheu em mim e resolvi perguntar as horas ou mesmo alguma informação qualquer só para poder verificar do que se tratavam as figuras ilustradas em questão. E bem, o senhor se mostrou bastante acessível e carismático. Informou-me as horas, iniciou uma conversa trivial e logo me contou sobre as aulas de desenho que estava tomando e me mostrou quase todos os seus trabalhos que abrangiam em sua maioria objetos e cenários bucólicos. A grande dificuldade dele se mostrava em ilustras rostos humanos. Aqueles punhados de figuras coloridas e monocromáticas me deixaram muito feliz repentinamente. Lembrei-me de outrora quando o primo de minha namorada (que por sinal nunca se mostrava com essas minhas viagens a trabalho) dava aulas de desenho e os expunha em festivais musicais. Isso bem antes dele se formar em Artes Visuais e embarcar para a França. O senhor, que por sinal se chamava Erasmo me contou que era formado em História e que mastigou também alguns anos do curso de Filosofia, mas sem se formar. Acrescentou que aos oitenta e seis anos sua vida apenas começava e que independente do que eu fazia Deus me ajudaria no meu destino. E claro que não existe mais em mim essa crença em Deus com a mesma força que em tempos anteriores, mas mesmo assim agradeci as palavras e lhe desejei o mesmo. Fantástico como essa cidade feia carregava almas tão curiosas e expressáveis. Erasmo aproveitou da ocasião e se pos a desenhar um pássaro e reparei que ele não tinha muita destreza em segurar o lápis com a mão esquerda e antes mesmo que eu perguntasse me contou que estava trabalhando o lado esquerdo do corpo e que na sua juventude o pessoal dizia que quem nascia canhoto era ignorado por Deus. Incrível como na mesma proporção que a fé diminuía absurdos de coisas mundanas ela também os aumentava. Contei para ele que eu sofria o “mal” de ser canhoto e contei também minha curiosa história das aulas de violão que tive como destro e sobre como tive que inverter as cordas e o lado do violão para também me oficializar como canhoto musicalmente. Jimi Hendrix, Tony Iommy e recentemente meu último herói Kurt Cobain também eram canhotos e eu não conseguia me orgulhar muito dessa situação, já que só encarecia e reduzia a possibilidade de encontrar instrumentos musicais para canhotos. Às vezes me perguntou se alguém já ouviu falar em algum piano para canhotos? Mas de fato eu conseguia me enxergar naquele senhor e parecia também que ele sentia o mesmo em mim. Como se estivéssemos naqueles filmes de ficção cientifica da década de oitenta em que as pessoas se personificam em nós através de maquinas do tempo ou buracos de minhoca. De súbito o senhor se despediu apressadamente de mim e entrou em um ônibus de transporte público. Não entendi a pressa dele, mas minha admiração por idosos era tanta que eu achava injusto poucos privilégios como filas especiais ou transporte público gratuito. Eles merecem muito mais do que isso e, aliás, esse é futuro esperado para todos que são jovens agora. Reparei que sua pasta de desenhos tinha sido esquecida no banco da praça e que eu agora me sentia extraordinariamente destinado a entregá-la para ele. Informei-me sobre a linha em que o senhor tomou e sobre os bairros em que o ônibus percorria em seu trajeto. Com as poucas informações já obtidas declarei meu infortúnio que se daria ao perceber que eu não saberia sequer por onde começar e que eu não sabia ao certo para onde ele estaria indo. Encontrei um catálogo telefônico na rodoviária e procurei por todos os Erasmos da cidade. Dos cinco listados nenhum era ele. Minha busca se daria de forma exasperada agora. Pensei em pegar o primeiro ônibus que viesse e ir a alguns pontos referenciais do itinerário que me foi informado, mas não me parecia uma idéia sã e nem de longe sensata. Quase desisti da idéia, me dirigi a padaria mais próxima e fui me alimentar. A cidade tinha um delicioso refrigerante com nome indígena e durante meu lanche me veio a idéia de verificar o que havia na pasta. Além de dezenas de desenhos que já tinha visto havia também alguns poemas com uma marcante e perceptível influencia simbolista. Fiquei fascinado com alguns deles e inclusive entremeio aos papéis encontrei o cartão de visitas da escola de desenho onde o senhor estava matriculado e de imediato soube que eu o encontraria no local.
Antes que eu fosse até lá resolvi me hospedar em um dos hotéis que cercavam a rodoviária. Curiosamente todos tinham letreiros luminosos e seus aspectos deploráveis me remetiam a motéis baratos de Los Angeles. Não que eu já tivesse ido para L.A., mas o cinema os retrata bem assim. Quase todos eles tinham nomes de mulheres o que engrandecia ainda mais o iminente estereotipo de espelunca. Escolhi o hotel com a fachada menos velha e com o nome feminino menos grosseiro e me hospedei naquela mesma tarde nublada. Minha primeira exigência no Hotel Lucíola foi que me colocassem em um quarto com muitas janelas e sem ar condicionado. A segunda logo foi que me emprestassem o catálogo telefônico. Obviamente o deles estava desatualizado e faltando diversas páginas toscamente arrancadas, mas felizmente na minha consulta percebi que a escola de desenho ficava a poucas quadras dali e que seria muito fácil encontra-la. Decidi-me por ir até lá na manhã seguinte para a devolução dos desenhos. Sem me esquecer é claro, que eu me encontrava na cidade para escrever sobre as calamidades que estavam acontecendo nas reformas do transito e sobre o confuso e desrespeitoso tráfego. Deixei minha mala em cima da velha mesa que havia no flat. Fora isso os únicos móveis que haviam por ali eram a cama e a estante improvisada para o televisor. Durante o resto da tarde fiz algumas anotações sobre os semáforos furados, calçadas sem acessibilidade para deficientes, ultrapassagens perigosas e limites de velocidades excedidas que eu já havia presenciado durante minhas poucas horas na cidade. Ao dormir deixei a TV ligada e uma das duas janelas entreabertas. É natural que eu só consiga pegar no sono com alguma coisa me deixando sempre alerta, não suporto silêncios absolutos.
Na manhã seguinte tomei café na mesma padaria e o saboroso pão de queijo era ainda melhor recém saído do forno. Dessa vez deixei o refrigerante local de lado e me deliciei com um café expresso com bastante açúcar. De lá mesmo me dirigi até a escola de desenhos. Pensei na possibilidade de alugar um carro, mas a urgência por encontrar Erasmo e os ares de interior daquela cidade me deixava instigado a caminhar e desbravar tudo o que fosse possível por ali. Sempre adorei essa sensação de reconhecer território. Quatro quarteirões depois e lá estava eu de frente a escola de desenho, que por sua vez era um duplex azulado e sem dúvida era mais bem tratada do que a rodoviária, a lagoa e claro, todos os hotéis sujos que havia me deparado ontem. Para minha surpresa ou mesmo sorte o próprio senhor Erasmo já se encontrava na recepção conversando veemente com a secretaria. Sua leve expressão de desolação deu lugar a um largo sorriso ao me ver e ele logo me perguntou se a nossa conversa havia me deixado interessado nas aulas de desenho. Respondi que não, mas logo em seguida voltei atrás e disse que sim e que até tinha trago uns desenhos meus para mostrar na escola para ver se eu mostrava alguma vocação. Outro sorriso se abriu e o senhor Erasmo mal reparou que o que eu segurava era sua própria pasta de desenhos. Ao notar que se tratava de seus desenhos ficou um pouco surpreso e frustrado e me agradeceu dizendo que ele tinha o estranho hábito de fingir que esquecia seus desenhos para presentear pessoas especiais que conhecesse por aí. Especialmente turistas recém-chegados. Disse que fez isso durante sua vida toda e que durante todo esse tempo eu havia sido a primeira pessoa que o procurou para devolvê-los. Fiquei extasiado com aquela história e perguntei se ele não se preocupava em perder todas as artes e poemas. Ele me respondeu astutamente que não possuía mais parentes e nem herdeiros para serem presenteados e que se livrando de seu legado se via sempre obrigado a recomeçar e produzir cada vez mais e com isso iria sempre se aperfeiçoar. Senti-me comovido com aquela lição e o abracei vigorosamente. Ele notou as lágrimas que estavam se formando em meus olhos e disse para que eu fosse embora e que levasse tudo comigo. Ele insistia por isso. Além de tudo, ressaltou ainda a importância de não se apegar muito a coisas materiais e de sempre aproveitar cada situação como uma maneira de se engrandecer como pessoa. Agradeci por tudo e sai da escola sem olhar para trás. Que se dane esse trânsito patético. Um grande artigo ou crônica sobre um artista itinerante estava prestes a ser redigido por mim!

2 comentários:

  1. Amei o texto!
    Realmente é disso q você gosta!
    Siga em frente!

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  2. muito massa, a forma q escreveu deixou bem uma história q podia ser vivida por qualquer leitor interessado e que tal tbm seria marcante a ele, a ponto de se inspirar ou msmo ter uma boa historia de viajem que teria a honra em dizer para as pessoas!

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