segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Almas perdidas - Francinele Valdivino


"A infância é medida por sons, cheiros e sinais.
Antes que a sombria hora da razão cresça."
- John Betjeman

Sentia naquele momento a vida se esvaindo por todos os seus poros, enquanto aquela mão pesada impedia que sua respiração fluísse livremente fazendo o mundo não ter mais sentido e menos ainda perspectivas futuras.
Em um devaneio lhe voltou a mente a imagem da mãe que a algumas horas atrás havia lhe pedido para ir à casa da avó deixar os comprimidos e em seguida lhe repassara os milhares de conselhos que toda mãe parece saber decorados.
“Evite passar pela rua “tal”, tome cuidado com os carros, não converse com pessoas estranhas...”.
Amabelle, uma garotinha de treze anos, de pele clara e cabelos negros como qualquer outra que se vê vagando pelas ruas da grande São Paulo, semanalmente passava na farmácia do quarteirão onde morava, comprava remédios e levava a casa de sua avó. Hoje ela havia contrariado a mãe, tomando um atalho pela rua proibida e como sempre acontecia todas as vezes que por ali passava suas narinas foram invadidas pelo odor dos narcóticos que exalava da fumaça produzida pelo grupo acocorado na calçada. O cheiro lhe causara a familiar sensação de enjoo fazendo-a acelerar o passo para tentar faze-la desaparecer.
Ela lembrava-se de ter usado sua cópia da chave para abrir a porta e de estar á vista do estranho homem que sem perceber sua presença enrolava apressadamente os fios do aparelho DVD da avó. Lembrou-se de ver o corpo inconsciente de uma anciã jogado ao chão, mas o que lembrou mais nitidamente foi do cheiro. Era o mesmo da rua proibida, e com ele a mesma sensação de antes, só que desta vez mais forte e assustadora que a anterior, que a arrebatou numa mistura de medo e pavor.
Não havia tido tempo de reagir, pois de repente estava lutando contra uma mão poderosa que a prendia sufocando seu choro. Mas pior que a falta de ar havia sido a dor que estraçalhara seu corpo, ao ponto de agora já não sentir mais nada, apenas a sua própria mente que rodopiava em coisas vagas e desconexas. A voz de sua professora de literatura citando Lorde Byron...

“Entre dois mundos paira a vida como uma estrela.
Entre noite e manhã, em cima da linha do horizonte.
Quão pouco sabemos o que somos!
Quanto menos o que podemos ser!”

Era bem assim que se sentia neste momento, como uma estrela perdendo todo o seu brilho para o universo sem fim, sem saber o que é que significava tudo aquilo ou mesmo o que aconteceria nos próximos segundos.
Quando finalmente o peso moveu-se de cima de seu corpo frágil, facilitando a respiração, sentiu um pouco de esperança, mas foi apenas por um breve momento, pois a poderosa mão agora pressionava sua garganta. O teto ficou turvo e depois disso mais nada, só a escuridão e o silêncio.

2 comentários:

  1. Somar literatura, arte e direito é um dom muito especial, que talento! Parabéns pelo texto.

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  2. Texto maravilhoso!!! Caminho sem volta!!!

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