"A infância é medida por sons, cheiros
e sinais.
Antes que a sombria hora da razão
cresça."
- John Betjeman
Sentia naquele momento a vida
se esvaindo por todos os seus poros, enquanto aquela mão pesada impedia que sua
respiração fluísse livremente fazendo o mundo não ter mais sentido e menos
ainda perspectivas futuras.
Em um devaneio lhe voltou a
mente a imagem da mãe que a algumas horas atrás havia lhe pedido para ir à casa
da avó deixar os comprimidos e em seguida lhe repassara os milhares de conselhos
que toda mãe parece saber decorados.
“Evite passar pela rua “tal”,
tome cuidado com os carros, não converse com pessoas estranhas...”.
Amabelle, uma garotinha de
treze anos, de pele clara e cabelos negros como qualquer outra que se vê
vagando pelas ruas da grande São Paulo, semanalmente passava na farmácia do
quarteirão onde morava, comprava remédios e levava a casa de sua avó. Hoje ela
havia contrariado a mãe, tomando um atalho pela rua proibida e como sempre
acontecia todas as vezes que por ali passava suas narinas foram invadidas pelo
odor dos narcóticos que exalava da fumaça produzida pelo grupo acocorado na
calçada. O cheiro lhe causara a familiar sensação de enjoo fazendo-a acelerar o
passo para tentar faze-la desaparecer.
Ela lembrava-se de ter usado
sua cópia da chave para abrir a porta e de estar á vista do estranho homem que
sem perceber sua presença enrolava apressadamente os fios do aparelho DVD da
avó. Lembrou-se de ver o corpo inconsciente de uma anciã jogado ao chão, mas o
que lembrou mais nitidamente foi do cheiro. Era o mesmo da rua proibida, e com
ele a mesma sensação de antes, só que desta vez mais forte e assustadora que a
anterior, que a arrebatou numa mistura de medo e pavor.
Não havia tido tempo de
reagir, pois de repente estava lutando contra uma mão poderosa que a prendia
sufocando seu choro. Mas pior que a falta de ar havia sido a dor que
estraçalhara seu corpo, ao ponto de agora já não sentir mais nada, apenas a sua
própria mente que rodopiava em coisas vagas e desconexas. A voz de sua
professora de literatura citando Lorde Byron...
“Entre dois mundos
paira a vida como uma estrela.
Entre noite e
manhã, em cima da linha do horizonte.
Quão pouco sabemos
o que somos!
Quanto menos o que
podemos ser!”
Era bem assim que se sentia
neste momento, como uma estrela perdendo todo o seu brilho para o universo sem
fim, sem saber o que é que significava tudo aquilo ou mesmo o que aconteceria
nos próximos segundos.
Quando finalmente o peso
moveu-se de cima de seu corpo frágil, facilitando a respiração, sentiu um pouco
de esperança, mas foi apenas por um breve momento, pois a poderosa mão agora
pressionava sua garganta. O teto ficou turvo e depois disso mais nada, só a
escuridão e o silêncio.
Somar literatura, arte e direito é um dom muito especial, que talento! Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirTexto maravilhoso!!! Caminho sem volta!!!
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