quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O Violino do meu Amor - Paulo Cesar Corrêa

“Feche os olhos e ouça com atenção.
Escute uma música que só existe em você
e cante esta canção”.
Augusto Branco

     Vamos começar. Bem suave. O segundo movimento do Inverno de Vivaldi. Sim. Perfeito. Violino principal, sole como se estivesse andando sob a chuva leve. Violinos secundários, façam o pizzicato, imitando os pingos do chuvisco. Isso... muito bom. Andréa, você está rápida demais. Desacelere. Agora sim. Magnífico! Estupendo! Isso. Desse jeito estaremos prontos para tocar até mesmo no Châtelet... O quê?! Ahn?! Quem é você?! Droga...
(...)
    Está um dia chuvoso. Eu gosto assim. Principalmente para ficar sentado nos bancos da Praça Sérgio Pacheco. Uberlândia faz tanto calor que os dias nublados são uma bênção. Na maioria das vezes, evito pisar em poças d’água, com medo de serem pessoas derretidas. Você pode rir, porém é verdade. Mas vou parar de reclamar. Por mais que seja uma característica dos velhos ― reclamar de tudo ―, fiz uma promessa para minha neta que pararia de por defeito nas coisas ou dizer que os tempos antigos eram melhores. Prometi parar de dizer, mas continuo pensando assim.
    Na minha adolescência, os Beatles e os Rolling Stones estavam começando a fazer sucesso. Quando me casei, Richard Clayderman e Kenny G tocavam as músicas românticas mais emocionantes. Minha neta ousa dizer que One Direction é melhor. Que blasfêmia! Aqueles guris?! Melhores que o John Lennon, Mick Jagger e outros mestres da música?! Mas os tempos mudam. As opiniões também.
    Quando me formei na escola, meus pais não interferiram na minha decisão sobre que faculdade ou curso deveria fazer. A única obrigação era estudar francês. Hoje, sou grato a isso: dou aulas de francês numa escola chamada Flexion, na Alberto Alves Cabral, perto da UFU – Santa Mônica.  
    Na faculdade, estudei música. Mais especificamente, violino. Foi a melhor época da minha vida, pois conheci duas pessoas que mudaram minha história: Andréa, minha querida Andréa; e Antônio Vivaldi.
    Começo a sentir frio agora. Deixo meus livros de francês no colo e coloco minhas mãos deformadas por causa da artrite dentro do bolso. Andréa costumava esfregá-las até ficarem quentinhas e depois as beijava. Era bom. Sentir seus lábios finos sobre minha pele. Quando a vi pela primeira vez, nunca havia imaginado que nos casaríamos. Na verdade, acho que me escolheu por causa do francês. Ela brincou comigo sobre isso duas ou três vezes e, mais uma vez, agradeço meus pais por terem-me obrigado a estudar essa língua.
    Lembro-me que eu havia me destacado de entre os alunos. O professor me perguntou se eu tinha a intenção de ser maestro. Eu disse que sim. Seria uma honra para mim.
    ― Então, Levi ― o professor disse ―, se prepare. Daqui a dois meses tocaremos Vivaldi num concerto. Você será o maestro.
   “As Quatro Estações”. Era quase uma hora de concerto. Os tons mudavam a cada estação. Começava em Mi Maior na “Primavera” e terminava em Fá Menor, no “Inverno”. Tinha muita coisa a ser feita, pelo que me lembro. Estudei as partituras durante três semanas. Ensaiei com a orquestra durante o resto do tempo até chegar o dia do concerto. É claro, Andréa era a violinista solo. Formávamos uma dupla muito boa no palco.
    Hoje, a única coisa que me resta é a saudade. Está aí mais uma razão de eu pensar que o passado é melhor que o presente. Andréa morreu de câncer no estômago há 7 meses. O meu ortopedista me proibiu de tocar violino por causa da artrite. As melhores coisas que aconteceram na minha vida na época da faculdade, agora são só resquícios de uma outra era, bem distante dessa em que vivo hoje.  
    Mas ainda ouço o violino. Tantos anos tocando me fizeram decorar seu som e suas variações. Minha neta me deu um celular e, para me agradar, colocou música clássica na minha playlist. Ganhei um fone de ouvido também. Pego meu aparelho celular e conecto o fone nele. Dou play na Chuva de Vivaldi e começo a devanear. Eu sei que vai acontecer. Sempre acontece e não me importo de estar em um lugar público.
    Eu fecho os olhos. A melodia os faz lacrimejar. Aprumo meu corpo na posição de maestro e começo a reger. Em minha mente, Andréa está ali, solando. Ela, estranhamente, está tocando rápido demais e peço para que desacelere. O restante da orquestra também está presente. Leopoldo, Angélica, Luís... Peço para que larguem os arcos e façam o pizzicato. É o diferencial da música, pois caracteriza bem o som da chuva. Está tão bonito. Tão perfeito. Mas parece que alguém está se aproximando. Sinto alguém tocando em mim, tirando-me do meu devaneio.
      Abro os olhos:
      ― O que?! Ahn?! Quem é você?! Droga... ― Eu digo.
(...)
     É uma jovem. Deve ter cinco anos a mais que minha neta e não se parece nada com ela. Faz-me lembrar de alguém do meu passado. A jovem está escrevendo algo num pedaço de papel.
    ― Excusez-moi, monsieur. ― É o que ela escreve. ― Je peux me asseoir avec vous?
    ― Oui. ― Eu respondo. Ela sorri. Eu estou pensando: por que escrever ao invés de falar? Talvez seja surda e muda. E que pergunta era aquela? “Com licença, senhor, posso me sentar com você?”. Ora, o banco está numa praça pública! É claro que sim.
    Ela se arruma no banco e volta a escrever. ― Se il vous plaît, pardonnez-moi. Je suis sans voix.
   Está explicado. A guria não é surda nem muda. Está somente sem voz. Olho para ela e tento reconhecê-la, mas não se parece com nenhuma de minhas alunas no Flexion. Nem com aluna nenhuma daquela escola. Os livros de francês no meu colo entregaram que eu falo a língua dela.
    Pergunto de onde ela é e o que está fazendo. Primeiro, ela diz seu nome: Helene Laurient. Pergunta pelo meu: “Levi”, digo. Somente depois disso que ela responde minha pergunta. Ela é de Tolousse, na França e está em Uberlândia por causa do namorado. Bom, ex-namorado, ela corrige. Haviam se conhecido num intercâmbio em Berna e estavam juntos há um ano e meio. Ela havia chegado essa madrugada, de surpresa, e o pegara com uma menina dentro do carro dele, em frente à casa do ex. A passagem de volta é só dali a uma semana. Está sem lugar para ficar.
    ― Quand je suis nerveux, ma voix échoue. ― Helene rabisca rápido no seu papelzinho, explicando que quando fica nervosa, sua voz falha.
    Olho para ela. Seus olhos são verdes e os cabelos, loiros. Pintados, percebo. Tem duas pintas no pescoço. Não usa maquiagem, mas é óbvio. Depois de uma longa viagem e uma madrugada triste, que mulher estaria maquiada? Começo a perceber com quem ela se parece. Ela é parecida com minha esposa. Com a minha Andréa. Estou a devanear, novamente. Eu regia para ninguém há dez minutos, imaginando minha esposa e, de repente, abro os olhos e me deparo com uma francesa que se parece com Andréa! Que louco. Faço uma nota mental para lembrar-me de parar de tomar os remédios tarja preta.
    Mas... não. Não pode ser. Não creio em reencarnação nem em pessoas que voltam do além. No entanto, eu queria acreditar que era ela. Que ela havia voltado para mim através da música de Vivaldi.
    ― Aimez-vous jouer à personne? ― Recebo mais um bilhete. Eu rio. Ela está perguntando se eu gosto de tocar para ninguém. Respondo-a que não estava tocando e sim regendo e que não, não gostava de reger para ninguém, mas aquilo acontecia sem que eu percebesse.
    Ela tenta rir, mas está sem voz. Helene me olha e seus olhos estão brilhando, da mesma forma como os de Andréa faziam e isto me dói. Quero que Helene vá embora para eu parar de sofrer. Para eu voltar a reger uma orquestra e uma Andréa mentais. Mas existe um motivo para tudo. Helene não saiu da França somente para ser largada pelo ex-namorado. Novamente, olho para ela e digo:
    ― J'ai faim. Et vous?
    Ela confirma. Está com fome.
(...)
    Normalmente, não como em lanchonetes, mas faço uma exceção por causa de Helene. Ela toma Pepsi e eu, café. Ela está comendo a segunda coxinha e eu, um pão de queijo. Sei que vamos ter azia em meia hora. O silêncio entre nós é divertido. Os olhares dizem tudo. Ela está cansada de escrever, então, comunicamo-nos por leitura labial e olhares.
    Ela é inteligente, percebo. Sussurra que estuda Economia e que sonha em fazer diferença no país. Coleciona quadros de Tolousse-Lautrec como hobby e pretende aprender algum instrumento. Nada barulhento, acrescenta ela. Talvez piano. Quem sabe, violino. Até brinca com a possibilidade de eu ensiná-la. Minha neta tem muito a aprender com ela.
     ― Vous devez me apprendre le violon. ― Helene escreve de novo. ― Se il vous plaît. ― E faz uma carinha de “pidona”. Ela quer que eu a ensine violino.
    Olho minhas mãos deformadas. Relembro os momentos de glória da minha juventude. Todas as lamentações e murmurações da minha velhice são devidas ao fato de não poder mais tocar e aqui está minha chance. Helene me olha, cheia de expectativa.
    ― Oui. ― Respondo, aceitando o convite.
(...)
    Tenho dois violinos Stradivarius em casa. Estão empoeirados, talvez até com teias de aranha. Aviso Helene para não esperar muita coisa de um velho como eu. Ela sorri gentilmente e diz que sabe que eu sou bom. Fico a me perguntar como ela sabe disso, mas deixo para lá.
    Pego os instrumentos e limpo a poeira. Sou lento, mas ela parece não ser impaciente. Vou à cozinha e pego uma colher e mel. Ofereço para ela, dizendo que vai fazê-la melhorar.
     ― Mercì, monsieur ― Ela agradece.
     Toma o mel e sussurra que está pronta para as lições. Faço exercícios com minhas mãos. Os dedos estalam. Ela também exercita seus dedos. Pego o violino. Pareço não ter mais o jeito. Acho que esqueci como se segura. Helene se levanta da cadeira de onde está e coloca o violino na posição correta para mim. Pergunto-a como ela sabia e a senhorita Laurent simplesmente sorri e escreve que viu na televisão francesa. Precisamos de algo educativo na TV brasileira, penso.
     O arco, em minha opinião, é a parte mais chata. Tem de ser firme e delicado ao mesmo tempo. Demoro um pouco para pegar o jeito, mas, logo, estou tocando. Lento, mas bem. Afinado, o que é mais importante. Estou de olhos fechados, mas sei que Helene está sorrindo a me ver e me ouvir. Não toco Vivaldi. Seria demais para mim. Toco Ode à Alegria, a 9ª sinfonia de Beethoven. Fácil, mas, na minha atual condição, a única coisa que me importa é me sair bem e não passar vergonha.
     Pego o outro violino e o entrego a Helene. Conto a ela os nomes das partes do instrumento: alma, cavalete, espelho, ouvidos, estandarte... Ela tenta falar e um fiapo de voz sai de sua boca. Eu rio de satisfação. Definitivamente, ela não havia vindo ao Brasil simplesmente para ser largada. Na verdade, sua missão, mesmo que não soubesse, era resgatar este velho da caverna e da desgraça.
     Digo os nomes das cordas. Mostro-a como pegar no arco. Ela põe o violino no ombro. Espero ela me pedir para ensiná-la alguma coisa, porém, ao invés disso, ela começa, suavemente, a tocar A Chuva de Vivaldi.
     Estou parado. Congelès. Isso não é possível. Ela me pediu para ensiná-la, mas..
     Mas...
     Mas ela está, tão divinamente, tocando, seus dedos viajando pelas cordas. O movimento do arco é tão perfeito. Ela me olha, sem parar de tocar. Estou chorando e ela ri. Gargalha. Sinto meus pelos arrepiados.
     Helene Laurient termina e fixa seus olhos em mim. Parece estar se divertindo com tudo. Ela é tão bela.
     ― Andréa... ― Sussurro.
    Ela nega com a cabeça. Diz que não é Andréa. Aproxima-se de mim. Abraça-me. O cheiro é conhecido. Convivi com essa fragrância por tanto tempo.
     ― Andréa... ― Novamente, sussurro.
    Helene, novamente, nega. ― Je ne suis pas Andréa. Mais, si vous voulez, je peux être elle. Pour vous rendre heureux.
     Dessa vez, a voz verdadeira dela saiu. Era como a de minha esposa. Ela continuava a dizer que não era Andréa, mas, se eu quisesse, ela poderia sê-la, para me deixar feliz.
      Estou soluçando.
     ― Êtes-vous ok? ― Helene pergunta.
     ― Sim, estou ok. Mas emocionado.
    A música a trouxe de volta para mim. Eu a toco e ela não se afasta. Sinto seu cabelo, sedoso e macio. Ela tem um olhar misterioso, fascinante. Poderia olhar para ela por horas. Por mais que negue, eu sei que é ela. Só pode ser ela.
    Conversamos por horas. Fiz chá matte, mas ela recusa, dizendo que só toma Namastea. Rio da brincadeira que ela faz com as palavras indiana e inglesa. Pergunto, mais uma vez, se ela não é minha esposa. Helene se levanta da cadeira, guarda o violino, arruma a roupa e diz:
     ― Adiéu, mon ami. ― E desaparece, como se nunca houvesse existido.
     “Adiéu”, eu digo, certo de que nunca mais tomarei tarjas pretas. 

* Para escutar a música base deste conto, clique no link abaixo.

Um comentário:

  1. Paulo César viajei com o seu texto! Adoro música clássica!!! Coloquei Beethoven antes de chegar ao final do texto.

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