“Eu odeio ter que ir a padaria de
manhã”.
Odeio, mais que tudo que odeio.
Para mim, o mundo regrediu. A minha avó contava que nos seus tempos o padeiro
levava os pães e o leite a porta de cada cliente, todos os dias, a mesma
quantidade. Também confessou que se alguém viesse lhe visitar e pernoitasse,
era preciso lembrar de deixar um bilhete no dia anterior, para que a quantidade
viesse maior no dia seguinte, do contrário, faltaria.
Tenho tanta preguiça de ir a
padaria que desde que me mudei para cá, ando a comprar pães de forma. Além da
indisposição, gosto do pão do dia, um paradoxo que já apresentei a solução.
Desde que me mudei para cá, o
maldito ás vezes me deixa com as “tampas”. Me refiro a primeira e a última
fatia do pão de forma. Eu não como as tampas, e nem ele.
Espero que ele desconfie antes que
minha paciência se esgote. Tentei algumas estratégias, exceto esconder a
comida. Não! Isso seria demais para mim, me sentiria tão mesquinho quanto ele.
Já pensei em consumir menos, tentando achar um padrão de sua mediocridade em
roubar-me os pães, em vão, já que sua gula é inversamente proporcional a minha
tolerância. Por vezes, acordei mais cedo, afim de diminuir minha indisposição e
pegar-lhe cometendo o “crime”, mas sua astúcia era tanta que a primeira
vez que o fiz não se arriscou e permaneceu em jejum, assim, passou a comer tudo
a noite.
Era um jogo interminável, um
xadrez sem xeque-mate. Eu então tentei a última das opções que me ocorreu:
pensei em acordar e ir a padaria pela manhã. E assim o fiz, acordei e ofereci
que lhe buscasse algo também, ele rejeitou obviamente, disse que não tomava
café da manhã. Busquei o pão e tomei o meu café, a questão é que seus estudos
eram a noite e ele sempre ia se deitar depois de mim, e o pão que havia
comprado naquela manhã já não existia na manhã seguinte, exceto as tampas.
Haviam dois quartos no
apartamento, e mesmo com um quarto a disposição, ele decidiu-se instalar no
mesmo que havia escolhido. Escolhi acreditar que isso era devido ao espaço
maior.
Ainda não havíamos comprados
sequer os moveis mais básicos, inclusive uma cama. De todas as minhas
preocupações a última seria uma TV. Não tenho o hábito de assistir,
principalmente depois que a internet havia proporcionado tanta coisa, não fazia
sentido em não escolher o que consumir, mesmo com todas as opções de uma
assinatura, mas para ele era uma necessidade tão fundamental quanto ter uma
privada no banheiro.
Tenho de dizer que esse fato me
deixou um tanto malicioso. Todas as minhas necessidades eram tão básicas e
jamais poderiam ser negligenciadas, tais como uma geladeira, uma mesa e um
fogão, nem sequer uma cama era preciso, somente um colchão, já a TV... bom, a
TV era tão superficial quanto um jarro de flores artificiais decorativo e sei
que fiz muito bem em decidir que era algo para o futuro, mesmo que esse futuro
nunca se realizasse. Ele mesmo assim insistiu, mas fiz o sentir que era uma
necessidade individual (o que de fato era), no entanto um erro meu, pois ele
comprou-a sozinho e tínhamos uma saída pronta para ser usada, do antigo
morador, com canais a cabo mesmo que ele só assistisse um, com seu reality
preferido.
Com um quarto grande e outro a
disposição, ainda procurávamos outro morador e logo encontramos e ele se mudou
para o outro quarto. As noites eram preenchidas com conversas até a madrugada,
jogadas fora por três pseudo intelectuais teólogos filosóficos. Eu sempre era o
primeiro a abandoná-los e ir deitar-me, o que ainda me deixava com as tampas
pela manhã. E todas as noites durantes as primeiras duas semanas assim se
seguiram. Ele assistia seu reality, junto as bolachas e o refrigerante que
havíamos comprado, depois desligava a TV e começávamos a conversa. Ás vezes o
assunto era o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados da federação:
o mais rico, a melhor infraestrutura, os maiores aeroportos, as maior malha
rodoviária, as melhores festas, a maior diversidade cultural... eu inocente,
ainda guiado pela mídia dos anos 90 era um torcedor palmeirense, diante a dois
corintianos paulistas.
Em outras noites a conversa puxava
para religião. Eu, um batizado pela igreja católica mas agnóstico, ele um
praticante de alguma igreja protestante distinguida por alguma forma
geométrica, e o outro um indeciso que pendia pela dúvida. Numa dessas conversas
ele enrolou sua toalha e fez uma linha que dividia a sala de estar ao meio. Me
explicou que se ele seguisse o catolicismo, que não restringia e nem alertava
seus crentes aos males da vida, negligenciando a vida libidinosa, ele estava se
afastando daquela linha rumo ao inferno, que era retradado pela porta da sala,
a extrema esquerda da minha visão da sala. Já se ele participasse dos cultos na
igreja, e seguisse os conselhos do pastor e de sua fé, ele rumaria junto a Deus
e ao céu, que era retratado pela janela, na extrema direita do cômodo. Foi
então que o outro paulista o perguntou aonde ele estava e ele se postou ao
parapeito da janela.
Para por fim as “tampas” numa
conversa com o paulista recém chegado, que já a essa altura havia sobrado com
elas também, decidimos criar uma caderneta onde tudo que se consumia era
anotado. Se eu comprasse um pão que fosse e alguém consumisse mesmo que uma
fatia, era dado a contribuição fosse dividida entre dois ou mesmo entre os três,
proporcionalmente aos “clientes”. Quando propomos a medida a ele, seus olhos
não poderiam tê-lo entregado tanto. De certo esperaria uma briga, uma discussão
que fosse, mas aquilo era cruel a sua atitude e lhe restou aceitar, não antes
de um breve questionamento se aquilo era necessário.
Creio que já me odiava em tão
poucas semanas. Antes de me mudar, tomei algumas breves lições de culinária, o
que me trouxe a habilidade de fazer um macarrão bastante ruim. Com o tempo,
todas as minhas atitudes, quaisquer que fossem eram questionadas. Aos sábados,
saíamos as compras pois todos estavam em casa. O meu macarrão eram um dos dois
pratos que tínhamos conhecimento, além de frituras.
- Gosto de azeitonas, o que acham?
– eu disse.
- Pegue essa, que está sem caroço,
daí não temos o trabalho de tirar.
“Qual o maldito trabalho de tirar o caroço de uma azeitona e
pagar quase o dobro por essa facilidade? “-pensei. Nesse mesmo dia, enquanto
ele fritava steaks, disse que devia aprender a me virar. Talvez seja a
hora de revelar o segundo prato que sabíamos fazer: era arroz, e não era ele
quem detinha o conhecimento.
Em algumas semanas, o assunto era
exclusivamente religião e o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados.
A sua alienação era tanta que chegava a interferir nas suas escolhas amorosas.
Mas tenho de dizer que isso o tocava mais que a mim, e parecia enclausurado na
sua própria crença. Me senti o próprio diabo perseguindo Cristo no deserto. Era
inconcebível a ideia de ter de escolher alguém dentro da própria igreja para
ser feliz e continuar no bom caminho, pois essa pessoa certamente era melhor
que qualquer outra que não fizesse parte daquilo. Como doentio isso soava! Não
podia alguém em sã consciência dar ouvidos a isso!
Eu o testei, o questionei e
diferente do que tentou, não o impus uma ideia, até pela carência delas. Ele me
ouvia, tenho certeza, mas odiava-me a proporcionalmente. Sentiu-se fraco,
talvez questionasse agora e tratou de arrumar uma igreja que pudesse ir. Passou
a tarde a procura, e o que encontrou foi uma figura geométrica próxima a que
frequentava, talvez como um triângulo de ângulo reto está próximo a um
retângulo.
E nos sábados seguintes ele foi, punha a bíblia debaixo do braço e assim que colocava a mão na maçaneta me
convidava:
- Vamos no culto Guilherme?
- Quem sabe na próxima! – eu o respondia.
Isso durou tanto que já nos
dávamos melhor. A única discussão séria foi quando me contou do surgimento do
próprio Lúcifer. Um traidor, que invejara o reino do próprio Criador.
- Mas se Deus criou o arcanjo que
o traiu, então Deus criou o Diabo? – perguntei.
- Isso é blasfêmia! Tome cuidado
com isso, você está blasfemando contra Deus!
Um silêncio tomou conta da sala
enquanto seu dedo apontava em minha direção. Foi a única vez que o fiz perder a
cabeça, que nos encontramos pela manhã receosos da conversa da noite anterior.
Nas semanas seguintes parecia que
nossa convivência estava atada a um fio que sustentava o enorme peso de nossa
autoafirmação. Creio eu que pessoas como nós nunca poderíamos conviver num
mesmo ambiente, somos como animais que brigam pela supremacia de seu
território, vamos lapidando um ao outro em busca da real natureza humana tal
como uma pedra preciosa, e pouco a pouco retiramos os resíduos que nos reveste
de bom senso e cordialidade.
Numa terça feira disse que
precisava conversar. Estávamos os três sentados a sala quando disse que havia decidido
se mudar. De fato estava a se isolar cada vez mais, e me pareceu ter tomado uma
decisão acertada. Na manhã seguintes levou algumas panelas que havia trago,
tapetes e sua TV.
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