quinta-feira, 24 de março de 2011

Dixie - Caio Machado

O pardal pousou no muro cheio de musgo e se pos a descansar de seu longo vôo, poderia ter escolhido a fiação elétrica, mas preferiu aquele monte de tijolos preenchidos por toda aquela coloração opaca esverdeada. Do outro lado da rua a faminta gatinha Dixie a fitava e de maneira minuciosa iniciou a travessia da rua para o iminente ataque ao pássaro que garantiria seu lanche da tarde. A felina só não contava que um Volkswagen Fox beirando os 65 km/h a atropelaria lhe devolvendo ao mundo dos mortos transformando-a num ser inexistente e desprovido de vida, preservando assim a vida do pardal que nem sequer imaginou que a alguns segundos atrás se encontrava ameaçado. A roda dianteira partiu seu dorso que em instantes inundou sua pelagem branca de sangue. Dixie ainda teve forças para rastejar por uns segundos emitindo um fraco miado. O dono do veículo não se deixou ao luxo de parar e seguiu seu caminho apressadamente, provavelmente teria um compromisso mais importante do que a vida de animais alheios.
Apenas a duas quadras dali, Gustavo voltava de trabalho deslizando vagarosamente sobre o asfalto em sua Specialized Hard Rock, a velha bicicleta que pertencera a seu pai em importantes competições ciclísticas e que agora não lhe servia mais do que meio de transporte. Na esquina da rua de sua casa quase se chocou com o mesmo assassino de Dixie, que ainda se exibia acelerado e desconexo, mas Gustavo agiu com indiferença e seguiu seu caminho, estava habituado ao desrespeitoso transito da cidade. Ao se aproximar viu o corpo da gata estirado junto ao meio-fio em cima de uma enorme poça de sangue já bastante coagulada. Seus olhos encheram d’água instantaneamente ao reconhecer seu mascote e ele rapidamente entrou em sua casa evitando de olhá-la para avisar sua mãe que ao saber da novidade disparou uma torrente de lágrimas incessantes. Rafael, seu irmão mais velho e também o mais desligado e descompromissado da família foi o último, a saber, do triste ocorrido, mas não também o último a sofrer com a perda. Ele se lembrou do zelo e das freqüentes brincadeiras que tinha com Dixie, sem também esquecer de como ele conheceu sua atual namorada quando foi comprar latas de atum para Dixie no armazém do bairro onde a garota trabalhava. Dixie sem querer o fez encontrar o possível amor de sua juventude e quem sabe posteriormente sua futura esposa com quem teria filhos que brincariam com os filinhos de Dixie. As tragédias nem sempre acontecem desacompanhadas.
Por não disporem de um local de grandes proporções de terra em sua casa, decidiram por enterrar Dixie em um terreno baldio próximo a praça do bairro. O local já fora usado pelos irmãos quando ainda eram crianças para brincarem em suas intermináveis competições de bicicleta, aliás essa era a grande paixão da família. Gustavo sempre se mostrava o mais alienado, mas dessa vez se deu todo o trabalho de cavar o leito e de enterrá-la, a sensação de perda causava um grande nó em seu estomago e consequentemente o tornava mais apegado e responsável. Rafael e sua mãe colocaram junto da sepultura uma lata de atum Gomes da Costa e sua almofada amarela de veludo onde ela estava habituada a descansar. Não dá pra se prender um animal orgulhoso como um gato em sua casa, mas aquela família de uma maneira inexplicável exercia uma enorme influência sobre a finada gatinha. Abraçados e aos prantos, mãe e filho observaram enquanto Gustavo cobria o resto do leito com aquele monte avermelhado de terra.
Após o enterro um grande problema ainda restava para ser resolvido: uma semana antes do homicídio, se assim podermos o tratar por dizer respeito a apenas um pobre animal, Dixie deu a luz a seis filhotes e naquele momento eles ainda se encontravam bastante mirrados e famintos, necessitando assim de serem amamentados antes que viessem a falecer e seguirem o desolador destino da mãe. A cidade em que a família vivia era bastante interiorana e pouco desenvolvida, não dispunham sequer de bons médicos, imaginem só se eles fossem recorrer a algum veterinário, aqueles animaizinhos estariam perdidos se não tomassem uma devia providencia. No primeiro dia Rafael foi até o armazém onde sua querida Helen ainda trabalhava e comprou alguns litros de leites pasteurizados na tentativa de saciar a sede dos inofensivos filhotes que responderam bebendo pouco ou quase nada da bebida, inclusive alguns até relutaram em sequer provar da mesma. Ao segundo dia seu irmão menor sugeriu que tentassem com leite integral, já que haviam recusado o outro no dia anterior. Nada feito. A aversão ao UHT foi ainda maior que ao pasteurizado e um dos filhotes ainda veio a falecer por estar muito enfraquecido, deixando a mãe dos rapazes ainda mais deprimida e desolada.
Já meio sem esperanças em resolver o problema Gustavo avistou pela rua sua vizinha Lara, que assim como eles também possuía uma tara por animais. Ela possuía uma graciosa cadela feia que em sua infância lhe rendera milhares de apelidos e que agora a poucos dias coincidente também havia acabado de dar a luz a alguns cãezinhos. Numa idéia desvairada Gustavo contou-lhe sobre o falecimento de sua gatinha e propôs que experimentassem tentar que a sua cadela amamentasse os cincos filhotinhos felídeos restantes. Lara de início riu da situação comparando os animais com Cruzeirenses e Atleticanos e até mesmo com vampiros e sua aversão a luz solar, afirmando que isso nunca daria certo, mas logo notou que o garoto falava cada vez mais sério, mas não conseguia impor isso de uma maneira loquaz. Rafael que também estava de passagem pela rua observou que os dois travavam um principio de discussão no jardim e adentrou na residência de Lara. Ao se integrar da história conseguiu de uma forma devidamente manipuladora e eloqüente deixar Lara com um peso na consciência e afirmou também que a previsível morte dos filhotes se daria por culpa dela e sequencialmente a perturbariam por muito tempo. Lara naturalmente cedeu e assim se decidiu por tentarem a estranha amamentação.
E por mais bizarra que a idéia soasse, mais efetivo e inversamente proporcional os filhotes de Dixie se adaptaram ao leite da cadela feia que após os quatro primeiro dias já nem se lembrava que aqueles cincos exemplares não se tratavam de seus filhotes naturais e sim da finada gatinha Dixie que por muitas vezes a perseguiu pelo bairro. A grande incógnita agora se daria na maneira de como eles iriam desapegar os mesmos filhotes da gata de sua “nova mãe”, que agora sentia por eles o mesmo ou ainda maior afeto materno, mas que necessitavam devolve-los a verdadeira família. Mas nada a deixaria separa-la de seus novos filhotes, já se passariam trinta dias e os miados agora já se confundiam entre os latidos dos demais cãezinhos que nem de longe se aproximavam do visual repugnante de sua mãe e se apresentavam muito adoráveis com suas pelagens bastante castanhas e brilhantes. Lara assim como a família de Rafael compreendeu que seria impossível uma tentativa de separação naquele momento e conscientizou-se por pagar a metade das despesas alimentares daquela exótica família recém formada que agora crescia de maneira desenfreada em seu quintal. Pormenor Rafael conseguiu retirar o filhote que mais se assemelhava a Dixie e o batizou-o com o mesmo nome da mãe homenageando-a e presenteando sua mãe com a gatinha. Os quatro gatos ainda vivem com a cadela feia que por sinal expandiu seu paladar adicionando atum ao seu cardápio e também aos dos seus demais filhotes. Biológicos ou não.

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