quarta-feira, 16 de março de 2011

Liberdade Incógnita - Maele Finger

Louise era o tipo de garota que escrevia em diários. Tinha seus diários de folhas coloridas com adesivos brilhosos e a cada dia da semana preenchia linhas de acontecimentos com uma caneta de gel de cor diferente. Seu pai adquirira o hábito de bisbilhotar nos diários da filha, e por isso há três anos ela começara a registrar tudo em código.
Em vários aspectos era como qualquer outra criança. Desenhava com a assimetria característica da idade o contorno da mãozinha, com linhas tortas e curvinhas discrepantes, tudo feito com lápis de grafite bem claro, meio apagado, e geralmente com borrões de tanto apagá-las e tornar a fazê-las. Em outros desenhos, perninhas grudadas no pescoço que alongavam-se até a extremidade inferior da folha. Um quarto de sol das três sempre despontando no vértice superior direito, num contexto em que o chão não existe, as flores e tudo mais ficam flutuando baixo.
Tinha a intuição apurada. Mostrava-se delicada e generosa o tempo todo. Seus gestos de gentileza encantavam a todos com quem estabelecia o mínimo contato, até mesmo através de um olhar despretensioso podia-se sentir a pureza e sinceridade da menina. Além do que, seu sexto sentido era algo perceptível, que lhe permitia exercer, sobre praticamente qualquer pessoa, um domínio quase hipnótico.
Era de uma cultura e educação tal que chegava a causar inveja nos pais das suas colegas de aula. Em encontros, jantares e outros eventos sociais, não raro era mencionada quando o assunto se tratava de casamento, era a candidata predileta à futura nora pelos pais dos colegas meninos que pertenciam ao mesmo círculo social, ou seja, as famílias da alta sociedade.
Seu maior pecado era pintar bigodes e dentes de preto nas capas de business magazines estampadas pelas faces dos pais com seus sócios. Louise tinha o costume de colecionar coisas, orgulhava-se disso e fazia questão de mostrar e esmiuçar em histórias infindáveis as particularidades de todos os itens de cada coleção a qualquer um que se mostrasse interessado em conhecê-las. No entanto, mantinha em segredo sua coleção predileta: um conjunto composto de cento e noventa e sete batons em tons avermelhados, peças de todos os lugares do mundo por onde já havia viajado com os pais.
Sempre dava um jeito de comprá-los escondidos e guardar sem levantar suspeitas dos pais, conhecia-os muito bem e sabia no que ia resultar se soubessem da existência dessa coleção. Seria uma ofensa para seu pai e despertaria a paranóia de sua mãe, que por fim mobilizaria no mínimo uns três especialistas em behaviorismo a fim de entender a origem desse comportamento. Supostamente uma afronta, um hábito que seria considerado repulsivo e vulgar.
No fundo no fundo, Louise sabia que as paranóias de sua mãe tinham lá algum fundamento, e que por trás da materialidade inânime de um batom vermelho qualquer existia mesmo algo mais, que até então mantinha-se subentendido. Seus pais nunca tomaram conhecimento da coleção. Mais tarde perceberam, nunca tomaram conhecimento de nada, inclusive da própria filha que pensavam ter. Sentia medo e insegurança, não gostava que as pessoas encostassem-se a ela, pelo receio que tinha de que pudessem ler ou sentir seus pensamentos, algo que a preocupava e envergonhava.
Louise cresceu, tornou-se uma moça tão encantadora e fascinante quanto era quando menina, mas agora, antes mesmo que pudessem contemplar a graça de sua personalidade, eram traídos pelos olhos. O tempo cobrou-lhe de volta a infantilidade, e como troco lhe pagou com os anos um bocado de sensualidade. Os olhares voltavam-se para seu corpo, e nele colavam-se ardendo em desejo. Em curvas que pareciam imantadas, magnetizavam-se os olhos alheios. Seu andar meigo e pueril dava lugar a passos vagarosos, substituindo o instante fisiológico de união das pálpebras dos admiradores, que por instantes, sem se darem conta as tinham paralisadas. Louise era mulher. Exalava feminilidade e delicadeza ao mesmo tempo em que transbordava em inconsciente provocação. Ela se tornou substantivo materializado, Louise era a tentação. Pura, nua e crua, tentação à flor da pele.
A superfície do corpo quente, aquecida por horas em outros corpos, entrava em contraste com as luzes frias azuis, quando na varanda da casa despedia-se do último cliente. Num robe de cetim vermelho, braços cruzados de modo a descansar as palmas das mãos sobre a cintura, apoiava-se na moldura da porta. No sereno sentia o cheiro de madrugada, exatamente no estreito daquela porta o odor de relento entrava em choque com o aroma de canela e jasmim, vindo de dentro. Louise sorria discreta, sozinha, com o cantinho da boca. Tirava do bolso do robe um batom vermelho, deslizava macio nos lábios e tornava a cruzar os braços. Ficou ali por mais três minutos... ainda conseguia ficar acordada por mais alguns, tempo suficiente para registrar, não mais em códigos, o que quisesse em seu diário.

8 comentários:

  1. Genial Maele! Você sempre tem essa sua maneira tão detalhista de se expressar usando um feminismo pueril e sensato extremamente loquaz! Valeu muito a espera pelo seu segundo conto!

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  2. Cortiinho ficou ferabite!!
    coitada da minina viro puta

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  3. Eu vejo o Barganha como um laboratório de experiências talvez até sem pretensão alguma. E esses experimentos na minha concepção nos dão algumas formulas, que no mínimo aprimoram a maneira como expressamos. Enfim, acho que nunca conversamos sobre literatura, gostos entre outros. Mas meus escritores prediletos são naturalistas/realistas e DETALHISTAS. Maele a descrição da fisionomia da sua personagem ficou impecável, talvez por mulheres terem esse senso mais apurado em sua genética. Como você certa vez elegeu um post como o seu preferido, acabo de eleger o meu preferido de Maele
    Finger.

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  4. Já aproveitando a deixa falarei sobre meus gêneros literários favoritos: adoro realismo e modernismo assim como também gosto de prosa poética simbolista, ressalto também afirmar que a literatura sul-americana é a melhor do mundo. Agora diz pra gente também Maele e eu ainda estou a espera de um próximo conto seu que eu possa eleger como meu favorito, já que meu favorito é aquele texto Máscaras do seu blog pessoal.

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  5. Realmente, não havia parado para pensar nisso, sobre o Barganha, mas tens razão Henrique, agora parando para analisar acaba sendo exatamente o que tu disse mesmo. Inclusive, já te respondendo Caio, gosto muito de literatura modernista, poesia/prosa simbolista, até alguns traços de romantismo... Tenho uma paixão especial pelo misterioso, o surreal e ilógico na literatura e nas artes em geral, por isso acho que o simbolismo acaba me atraindo mais do que o realismo. Mas como tu falou Henrique, sobre "esses experimentos que nos dão algumas fórmulas", é muito perceptível a influência realista e a atenção aos detalhes que vocês expressam nos contos de vocês, eu arriscaria dizer que é uma marca do Barganha: o realismo bem detalhado. Creio que acabei captando essa essência do Barganha e me afeiçoando bem mais ao realismo, como também dando mais atenção aos detalhes nos meus textos.

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  6. E fico bem feliz mesmo que vocês dois tenham gostado desse texto, a opinião de cada um de vocês dois é como se fosse um termômetro para os meus futuros textos, fora o fato de que é muito gratificante recebem um feedback tão bacana como esse. Obrigada mesmo meninos =)
    Estou adorando essa parceria de confecção literária!

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