Todas as luzes do meu apartamento estavam queimadas. Só me restava agora a luz que vinha da lâmpada da geladeira, mas por mim daquele jeito estava perfeito e seria o bastante para iluminar as minhas cervejas. Levando-se em conta também que eu nunca chegaria sóbrio em casa até o escurecer ou que quando isso me ocorre sempre estou em algum bar durante a noite, dispensa-se o uso de lâmpadas. Já me aconteceu de algumas vezes eu tropeçar na mesa de centro da sala, mas com o tempo você se torna um verdadeiro cego adestrado e olha que você nem precisa de um cão guia ou tampouco de muletas. Depois que aposentei por invalidez minha vida se transformou no que Rimbaud chamaria de barco ébrio. Meu gordo salário de militar era liquidado todo em bebidas, futilidades e outras cositas más. Inclusive, eu ainda não repus as lâmpadas porque elas valem menos do que eu poderia gastar em algumas boas garrafas de tequila. Sobre como consegui essa vida? Eu quase precisei amputar minha mão direita, que quase foi esmagada em um treino no exército. Não quero entrar em detalhes, mas meu dedo mindinho perdeu três milímetros e não consigo mais dobrar meu dedo anular, mas eu digo sim, que aposentar por invalidez tem suas vantagens que vem a calhar.
Com o tempo eu passei a deixar de usar desodorante, pasta dental e uma grande quantidade de porcarias que encareciam quase 60% de minhas compras. Até mesmo papel higiênico eu havia descartado, alias, eu tomo banho todos os dias, não seria necessário tamanho desperdício de papel. A natureza agradece. Alias esse papo de ecologista sustentável é uma puta hipocrisia, pro inferno com esses vegetarianos que pensam que estão salvando vacas ao deixarem de comer carne. Os açougues e abatedouros não deixaram de existir por causa deles. Se quiserem ir para o paraíso ou se desejam a salvação de suas almas pecadoras, comecem por ajudar pessoas necessitadas ou mesmo a lavar as louças para a sua mãe. Sobre deixar essas “necessidades básicas de higiene” de lado, eu ainda conseguia cheirar bem, me portando como um verdadeiro gentleman e ainda sim conseguia alguma paquera. Alguns ex-colegas meus do exército realmente invejavam meu estilo de vida e toda essa minha mania de querer experimentar de tudo o que era possível, sobretudo até me julgavam como niilista. No meu ponto de vista isto soaria como um elogio a ociosidade e dessa maneira comecei a ficar alheio a sociedade e conseqüentemente, demasiadamente abandonado.
Quando eu ainda usava pasta dental tinha o ótimo habito de escovar os dentes na pia da cozinha. Assim não gastaria detergente para lavar toda aquela louça. A cada escovada dava pra lavar quase três pratos com a espuma que eu fazia com o enxágüe e às vezes até os copos que eu sujava quando preparava minha Piña Colada, que eu já estava habituado e a nomeei como café da manhã. Infelizmente não uso mais pasta de dente e nem mais detergente, só a Piña Colada e às vezes quando o mau hálito aperta, a escova de dente.
Fervia meu aparelho de barbear todas as vezes que o mesmo se entupia de pelos. Depois de três meses ele perdeu totalmente o fio da lâmina. Foi aí que decidi parar de me barbear. Nos primeiros dois meses minha barba não se mostrava tão repugnante, mas depois de uns dias o rapaz do armazém não permitia que eu entrasse em seu estabelecimento por eu estar apavorando e sumindo com toda a sua clientela hipócrita e conservadora que não queria ver ninguém com aparência de terrorista enquanto compravam seus chocolates, preservativos, engovs e nuggets gordurosos. Como eu não queria (e nem devia) gastar meus solados para ir até o supermercado mais próximo ou qualquer outro lugar continuei rondando pelo armazém e na minha primeira oportunidade mostrei para o caixa minha carteira recheada de dinheiro. Ele entendeu do que se tratava e pediu que eu o esperasse lá fora, nos fundos, próximo aos sacos de lixo. Ao desocupar de clientes se dirigiu até mim e me disse para que eu viesse comprar depois das nove porque o atendimento era mais escasso e quase sempre ninguém aparecia por lá. Eu provavelmente fui seu cliente mais fiel, mesmo que minhas compras só diminuíssem a cada vez que eu voltasse lá. Minha maneira de selecionar as reais necessidades vinha se tornando um dom.
Estoquei todo tipo de comida enlatada no armário inferior da cozinha. O estralo na coluna ao abaixar-me para abri-lo era cada vez mais freqüente e mesmo assim me indicava que eu ainda estava vivo. Comia milho, ervilhas, feijão, sardinha, atum e às vezes até mesmo salsichas do tipo Viena. Comia tudo, bebia aquela água amarga e todo o óleo nas latas de peixe, não poderia haver desperdício. Sempre me cortava com as latas maiores, mas mesmo assim não limpava o sangue e raramente me incomodava em preparar algum curativo. Aprendi a me relacionar melhor com a dor, diria até que estava apaixonado ou mesmo obcecado por ela. Aquele era um excêntrico sentimento e certamente o mais puro e irrefutável que eu poderia experimentar.
Provavelmente eu não passaria daquela noite. Estava com indigestão, minhas feridas no rosto não cicatrizavam mais e eu enfraquecia cada vez mais e mais em minha cama na frustrada tentativa de dormir, pois eu saberia que talvez não fosse mais acordar e caminhava por acelerar o processo. Eu suava frio, mas o ardente calor insistia e me mantinha aquecido. Na tentativa de me resfriar e de equilibrar minha temperatura na esperança de que eu não morresse por um choque térmico me despi. Não funcionou, resolvi abrir uma pequena fresta na janela para que o ar circulasse sobre o quarto. Meu colchão já se encontrava umedecido, mas eu não me desfiz dele. Continuaria por ali mesmo. O esforço para abrir a janela violentou a minha resistência e me informou de que eu estava realmente fraco. Já não dispunha mais da minha força viril que uma vez me qualificou como melhor soldado. Se ao menos meus amigos não tivessem me abandonado, mas a questão não é essa! Eles seguiram com suas vidas, arcaram com suas escolhas, e eu por minha vez só escolhi não escolher. Driblando o que seria minha última crise existencial meu último inquilino adentrou no meu quarto pela janela. Eu era motefóbico e tinha aversão a todos os tipos de insetos (bem, as baratas da casa já me fizeram por acostumado), mas a presença daquele vaga-lume não podia me aturdir o bastante. O inseto pairava pelo teto do quarto como a mais suave sinfonia de Brahms, iluminando toda aquela imundície e mofo acumulado nas paredes devido as infiltrações. Sentia que ele era meu anjo da guarda que viria em morfologia de estrela cadente, com suas pequenas e singelas foto-explosões para me aliviar do fardo de viver. Em cada lapso de luz eu imaginava a sua grandeza derivada de um pequeno corpo de inseto. Me sentia livre como ele, mas mesmo assim conseguia chamar a atenção de tudo e todos ao meu redor. Tudo se direcionava a luz que ele emitia, alguns insetos sabiam existir com mais classe do que os outros. Ele sabia bem o que eu sentia: eu era ele e ele era eu. Na medida em que nos conectávamos espiritualmente o pequeno vaga-lume se dirigiu até mim, num vôo lento e rasante, com a intensidade de seu brilho cada vez maior. O tilintar de suas asas batendo rápidas e minha respiração arfante se confundindo no ar eram os únicos e últimos sons que habitariam a atmosfera de meu quarto. Ele se aproximava sempre mais, até que a última coisa que eu conseguiria ver seria o enorme clarão, a mesma coisa que os bebês vêem ao nascer, só que do acesso. Eu estava livre.
Há tempos não encontrava alguém que faz finais tão bem quanto você. Sempre uma surpresa.
ResponderExcluirÀs vezes, também recebo a visita de um vaga-lume no meu quarto. Não me pergunte o motivo, mas sempre tenho medo dele.
Medo! Não o nojo que tenho para com a alguns insetos do dia a dia.
Talvez, pelo motivo dele aparecer em um lugar diferente a cada vez que pisca. Me deixando sem saber onde ele está indo, somente onde está em determinado momento.
Tinha muito tempo que eu não lia algo assim, o personagem no início quase me levou à repugnância, porém o final explodiu em sinestesia.
ResponderExcluirCaramba Caio!
ResponderExcluirme surpreendeu!
que conto heim! deixa eu respirar agora...