sábado, 18 de dezembro de 2010

Ângelas Anjos - Henrique Donancio

Sempre gostei de samba, de tocar, para dançar ou apenas ouvir. Um dom herdado do meu pai, que consertava alguns instrumentos e me ensinara a empunhar um junto ao peito, desde moleque. Quando o velho faleceu o que eu empunhei ao peito foi uma Ak47, já que a música não punha arroz na panela, não dava alento para meus irmãos e minha mãe. No início tudo certo, 17 anos de fuzil e moletom de marca no topo do morro só filmando o movimento, quando o frio apertava ou o sono incomodava eu dava uns tiros para dispersar. Num dos frevos que os patrões deram para os funcionários eu conheci a Elisângela, filha do seu Mezenga da mercearia, foi a primeira vez que ela subiu as ladeiras para confraternizar com a rapaziada e logo não perdi tempo, a nega era minha porque a vi primeiro.
Aos três meses de namoro busquei-a na casa do pai para morar lá no meu trapiche, minha mãe fazia gosto dela e precisava de alguém para cuidar dos meus irmãos. Elisângela era fogo, trepava como sambava a morena, dizia que fora eu o seu primeiro e único homem, não duvidava, mas também não acreditava, eu estava embalado demais no dia que a conheci e pouco me importava, o que eu desejava era a primazia. Aos poucos comecei a destacar e fui subindo a escada da hierarquia do morro, cada vez mais perto do céu e longe do inferno, o que importava era o jogo de cintura para escalar os degraus, eu era homem e me portava como tal, não deixava me faltaram com o respeito ao mesmo que o conquistava com simpatia. Muitos vão conhecer São Pedro mais cedo pecando nesses fundamentos básicos, impunham respeito no braço e um dia trombavam outro com o mesmo método para resolver as coisas, ou então lhe faltavam a moral para se impor e viravam puta, linha de frente do fogo cruzado, também havia aqueles que iam para o outro lado do balcão, consumiam mais que vendiam e acabavam sem deixar dinheiro nem mesmo para o caixão.
No verão a grana vinha mais quente que o sol, até gringo subia o morro, pagavam em dólar pela branca mais pura, consumidores exigentes, a classe alta de Copacabana e adjacências também, dava alguns trocados para os moleques no pé do morro buscarem uns baseados. Já nos meses de inverno o movimento estiava, e foi num desses invernos que minha história recomeçou.
O dinheiro andava curto, minha mãe estava doente, sofria da pressão e osteoporose, os remédios eram caros, Elisângela acabara de dar a luz, o médico receitava vitaminas importadas, frescura dela que insistia para ser levada ao hospital que nem granfino. Minha irmã mais nova, Rosângela, estava matriculada em escola particular, queria dar o ensino para ela, para não vê-la rebolando na laje lavando pano para pobre. Meus outros dois irmãos andavam sempre de chuteira boa no pé, comprei um par do Ronaldinho para cada e camisa do Real para combinar, os meninos eram bons com a bola, ainda veria eles vestindo a peita do Mengão.
Num domingo véspera de clássico no Maraca, dois pivetes chegaram lá em cima do morro com notebook, Rolex e dois conto numa carteira de couro, estavam vendendo, puxei a gola de um e perguntei aonde ele descolou aquilo, aí ele disse que fez uma fita lá na cidade, nos bairros da alta. Com o tempo me toquei que muitos estavam na mesma, a Federal havia interceptado mercadoria nossa numa rodovia do Mato Grosso e segurávamos o que tínhamos estocado para quando a temporada de férias começasse, gringo pagava em dólar e a vista. Foi aí que o Dunga deu idéia, “bora entra nessa também maluco, vai ficar de bobeira aí?!”, não pensei duas vezes e no outro dia fomos acompanhados de duas 765 para a porta do Bradesco na zona Sul. Quando abordamos um executivo entrando no carro após sair da agencia uma viatura acionou as sirenes, o Dunga sacou o cano e disparou três pipocos contra os Power Rangers, eles revidaram, estavam armados com punheteiras e três oitão, o carona sentou na janela e disparou contra mim, pegou de raspão, por sorte.
Quando acordei no hospital algemado deparei-me com Rosângela segurando um José de Alencar no sofá, acho que era um romance, ela gostava dessas coisas, tava me pajeando, Elisângela estava com os meninos para o teste na escolinha da Gávea, minha mãe estava no trampo e a pequena estava encarregada de mim, pela janela da porta do quarto dava para ver dois fardados de plantão, e eu me perguntei por quê? - porque se agora eu não poderia correr.
Pelo meu silencio pagaram o meu advogado e me ofereceram uma pensão de 100 contos por mês, era o meu auxílio doença patrocinado pelo tráfico, e agora com um cadeirante encostado dentro de casa as coisas andavam piores que estavam, sentia que era questão de tempo para Elisângela sair dessa, nem satisfazê-la eu conseguia, envelheci uns 50 anos ao ter que depender dela para me trocar, comer, sair da cadeira sem rastejar. Chorava ao ter que imaginar minha irmã voltando a freqüentar a escola da comunidade que tinha aula duas vezes na semana e quando tinha, pois era dar um tiro para os professores se recusarem a dar aula alegando que a violência poderia ferir alguém sobe suas responsabilidades. Os meninos vingaram, passaram no teste e pelo menos esses teriam um futuro diferente do meu.
Elisângela era mulher de verdade, ela não me abandonou, mas teve que ir para rua, teve que se vender nas esquinas. No inicio isso para mim foi inaceitável, mulher minha não ia dar para quem pagasse, mas ela me convenceu, disse que era por Rosângela, para a menina continuar na escola, que preferiria rodar bolsinha a vê-la um dia nessa situação, que ela tinha futuro e capacidade, carregava o dom, coisa que ela não, Elisângela era fogo.

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