Hoje ao alvorecer fui até sua casa, e pela primeira vez desde que lhe pus os olhos tracei o roteiro inverso do qual já me acostumara. Era bem cedo, a neblina encobria a cidade, os trabalhadores se dirigiam para seus trabalhos, os jornaleiros entregavam os primeiros jornais, este lado do mundo abria sua face para os primeiros raios de sol, que o tocavam de um jeito sutil. Como disse, tracei o sentido inverso, saí de minha casa até a padaria da Gameleira, onde sempre somos recebidos com aquele maravilhoso pão francês quentinho, tão macio e alvo, da exata maneira que os nossos estômagos em jejum suplicavam todas as manhãs. Peço que me desculpe, mas pela força do hábito acabei esquecendo de levar algumas moedas para pagar pela refeição, assim evitando algum constrangimento coloquei em sua conta, como de costume. Quando cheguei em seu apartamento, para minha surpresa você não estava, a cama estava feita e suponho que não tenhas passado a última noite por lá; reparei também que havia alguns discos espalhados pela casa, então liguei o aparelho de som e ele tocou, tocou um de meus preferidos. Confesso que fiquei um pouco triste, você não sentia mais a falta de música quando nos encontrávamos, e por isso aquele aparelho ficou por meses estragado e encontrá-lo funcionando, bem, eu prefiro pensar que era apenas saudades e por isso colocou o nosso disco. Deixei tocando aquela música, “Joining You”, se lembra? – minha preferida. Aposto que se lembra, eu a repetia várias vezes. Por um momento senti que aquela casa ainda pertencia um pouco a mim, tomei a liberdade de vestir seu roupão, impregnado com seu cheiro, então deitei em sua cama, fumei um de seus cigarros, bebi um pouco do seu vinho... A essa hora já deve ter encontrado o bilhete que deixei na porta da geladeira.
23h15min. Mensagem enviada por e-mail.
“É uma pena chegarmos a esse ponto, tudo poderia ser diferente, mas a rotina até do que é aprazível cansa, e tudo se torna questão de tempo até um ímpeto nos conduzir a um erro, que magoa, traz saudades e nos deixa exatamente no ponto que nos encontramos; o ponto final. Peço apenas que devolva o livro que lhe emprestei, sabe, é algo maior que material, é sentimental, fora o primeiro de todos que ostento em minha estante, e trata-se de um romance que você nunca irá compreender; é amor utópico, de um homem que tem natureza idealizadora e inconcebível para a maioria, sentimento que receio que você jamais sinta. Ademais não quero estender isso com uma lição de moral, como tantas outras vezes sujeitou-me. Sinto muito.”
Se encontraram algumas vezes pelas ruas, se olharam ressentidos, ao mesmo com uma vontade quase incontrolável de se falarem, de se tocarem. A mensagem de e-mail jamais fora respondida por Carolina, e quanto ao livro ela nunca o devolvera, pois metade tratava-se de orgulho e a outra de desafiá-lo a tomar-lhe, de conduzi-lo.
Eduardo mudou-se de cidade após algumas semanas. Os seus amigos eram os mesmos de Carolina, assim como a comida, os lugares que frequentava, tudo remetia ao que viveram juntos. Decidiu por fim aquilo, iria conhecer novas pessoas, experimentaria novos temperos, beberia bebidas ao som de outras músicas.
Um anos depois...
Eduardo tornara a cidade e reivindicava o livro insuportavelmente, até que certo dia farta de fingir não dar importância por aquele capricho, Carolina resolveu entregar-lhe aquele objeto que durante muito tempo fora seu maior apego, sua recordação materializada daquela relação. Deixou debaixo da porta da casa de sua mãe um pacote, já que o antigo apartamento estava ocupado por novos inquilinos. Ele ao recebê-lo deparou-se com o seguinte escrito na face interior da contracapa – “Jamais compreenderias meu instinto desapegado de ser, de amar, de viver cada dia. Temo que nunca tornes a gostar de mim, mas saiba que remoo essa angustia, essa culpa, mesmo não me sentido culpada...” – além de algumas marcas de fogo nos rodapés, e no seu interior algumas páginas faltavam, outras com vestígios de brasas que deveriam ter caído sobre a folha e rapidamente abrandadas. Notou também que seu trecho preferido estava borrado, com o papel agora repleto de trepidações além de um outro exemplar do mesmo, novo.
12h04min. Mensagem enviada por e-mail.
“Espero que me desculpe, não por qualquer outra coisa que não seja as avarias que causei ao seu livro. Acho que as coisas na vida duram o tempo que devem durar, e espero que entenda isso. Deve ter notado que enviei um novo exemplar junto ao antigo. Torço para que tenhas alguém para emprestá-lo e que esse alguém faça uso tão intensamente quanto eu um dia fiz.
Um grande abraço meu amigo, C.”
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