quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Xis Bacon

A cidade está iluminada por luzes amarelas, vermelhas e verdes, que piscam alternadamente ou deixam ecoar ininterruptamente seu brilho no vago escuro da noite. Bonecos do Papai Noel, renas e bolas ornamentais de diversas cores completam a decoração aqui e ali, um clima de paz toma as pessoas, que se abraçam carinhosamente com esperança de que amanhã tudo será muito melhor do que hoje.
Sempre carreguei esse estranho costume de isolar-me nas horas mais impróprias. Deveria estar junto aos outros da minha família, tilintando taças de vinhos, cingindo-lhes em abraços afetuosos, contando-lhes segredos dessa nada fascinante existência. Mas seria estranho a eles e a mim, reunir-me quando encontro despedaçado por todos os cantos, espalhado por todos os lados desse apartamento que lembra algum resquício de Camila. 
Eu deveria ter a esquecido tão logo bateu aquela porta, uma vez que pouco nos restava de afeto. Mas suas reminiscências teimam em pestanejar, teimam em deixar-me e minha fuga se faz nessa solidão. Seria incomodo se alguém fizesse algum comentário sobre ela, e reuniões familiares são lugares oportunos a isso. Muitos ficaram longe da cidade durante todo o ano, e agora no natal tentam absorver o máximo da vida de cada um; não é um desabafo pejorativo, essa preocupação é saudável, revela que existem no mundo pessoas que se importam conosco, mas nesse caso tudo isso tem como consequência a estranha sensação de um vazio.
Mudamo-nos para esse apartamento nos subúrbios mais exclusos da cidade a fim de poder ter um espaço para chamar de nosso, e desde que partiu não me visto decentemente, ando pelas ruas trajando bermuda de times de futebol, amassada por uma noite bem dormida, chinelos e camisas de festividades do meu antigo trabalho. Desfiz-me da ideia de qualquer móvel inútil, trouxe para cá somente o que há de necessário. A cama de casal toma quase todo o quarto, era uma de minhas prioridades pois passávamos noites assistindo filmes no laptop deitados. Camila sempre o colocava no colo para poder ficar defronte à tela e assim eu me agarrava a ela, encurvado para poder ver alguma coisa.
Na sala de estar, um sofá velho de tom amarronzado, uma estante onde guardo meus livros, a TV e um quadro mosaico que sobrepõe boa parte da parede. Na cozinha a geladeira, o micro-ondas e um fogão, por sorte já havia um armário embutido. Além desses móveis somente uma escrivaninha que uso para me dedicar a literatura e um baú onde guardo meus pertences.
O apartamento é pequeno, mas tem uma vista espetacular ao pôr do sol. Os raios entram por uma acanhada janela de vidro e quase tocam os pés da escrivaninha, o efeito que dão junto ao piso de madeira tecem uma rusticidade convidativa a reflexões que agora se estendem até o anoitecer.
Nós alimentamos o sonho de ter um lugar para chamar de “nossa casa” durante todos os anos que cursávamos nossas graduações. Começamos a namorar no segundo semestre de faculdade, formamos e ao fim do primeiro mês de trabalho decidimos viver juntos, um teste a nós mesmos para uma relação mais consolidada. Acontece que quando brigávamos não tínhamos mais lugar para fugir, a roupa suja ainda estaria lá, alguém teria de fazer a comida, ir ao mercado fazer compras, pagar as contas no fim do mês.... No início, essas obrigações até nos aproximavam quando estávamos brigados, mas com o passar do tempo um copo sujo era a terceira guerra mundial anunciada.
Estou com fome, meu estômago anseia por algo sólido, minha alimentação anda desregrada, abro a geladeira e o que encontro são garrafas de cerveja e azeitonas, além de uma infinidade de recipientes plásticos com alimentos mofados e apodrecidos. Há de haver alguma lanchonete aberta nessa cidade, ou um supermercado talvez, sempre existem aqueles que esquecem algo na véspera do natal.
Visto uma das camisas que ela havia me dado, é uma das poucas peças limpas. É um tanto comprida, listrada alternando o verde e o branco, de ombros largos, talvez destinada a vestir alguém com ombros muito mais extensos que os meus. Camila tinha bom gosto, mas sempre errava na numeração. Por determinado tempo as usava para agradá-la, mas gradativamente com a distância da data crescendo, o uso da peça também se tornava esporádico.
Na Avenida das Américas encontro alguns estabelecimentos abertos e pequenas famílias comemorando o natal. No Bella Italia servem as melhores pizzas da cidade, porém o ambiente é bastante familiar e parece estar acirrada a disputa por uma mesa, há gente dentro dos carros aguardando. Nos botequins que se arriscaram a abrir, uma porção de solteiros bêbados xavecando os opostos ao gênero, mais à frente algumas lanchonetes com comidas um tanto exóticas e outra com os tradicionais hambúrgueres. 
Decido por um xis do Sandão Lanches, o único lanche que a alface parece ter sido colhida a menos de uma semana e o pão comprado a menos de um mês na rua que faz esquina as Américas. Está um pouco vazio, e tudo o que quero é comer com um pouco de silêncio longe daquele apartamento fétido. Há três mesas ocupadas apenas. Um casal jovem que espera sem se falar, com ela a olhar para telenovela enquanto ele procura seu reflexo no piso fosco do estabelecimento, na outra um músico acompanhado de seu contrabaixo visto o tamanho da case que carrega e por último o que parece um casal de homens, esses os mais descontraídos se alimentam felizes e se olham sorridentes, por um momento pude ver a mão de um deslizar sobre a coxa do outro.
Os funcionários pela falta de obrigações estão escorados no balcão entediados, um deles vem ao meu encontro, deixa sobre a mesa o cardápio e coloca-se a esperar, é uma mulher, parece bonita, está de cabeça baixa e o boné encobre boa parte de sua face, no restante visível mostra traços delicados, tem lábios pouco espessos cobertos por um batom sensivelmente rosado, de pele alva, queixo fino, tem cabelos loiros encaracolados que saem da parte de trás do boné, um corpo magro de poucas curvas. Percebe que estou a olhar demasiadamente, e por um instante interrompe o olhar que estava voltado para seu pequeno bloco de anotações, vagarosamente levanta o rosto, são olhos cor de mel – posso ajudar? – Diz isso com voz insípida, causa-me fadiga instantânea, e brutamente digo-lhe que desejo o “Nº 4”, peço para não colocarem ovos e adicionarem bacon, bastante bacon e malpassado.
- O seu pedido sairá em instantes... Senhor – a pausa e ênfase que ela coloca para pronunciar o “senhor” deixa explícita sua ironia, aquilo alimenta certa antipatia que creio ser mútua.
Pego o celular, uma ligação diminuiria o desagrado de minha mãe, o constrangimento em meio aos familiares que certamente devem ter perguntado sobre mim inúmeras vezes e ela, ora, se bem a conheço deve ter criado uma falsa história que os satisfaça sem desmerecê-la e nem a mim.
 -Alô mãe.
- Filho, espere um segundo.... Pronto, pode falar, onde você se meteu, está em casa?  
- Estou bem mãe, saí um pouco e estou agora na Avenida das Américas, vou comer algo e volto para casa.
- Meu filho, porque não vem para cá? Estão todos aqui, seus primos perguntaram por você, a Camila me ligou, não está com você?
- Escute, eu e Camila terminamos e bem... preciso ficar um pouco só, não é nada demais.
- Filho você está bem mesmo? Quando é que terminaram? Onde está Cami...
- Mãe está tudo bem, mais tarde passarei aí para cumprimentar todos, preciso desligar...
-Tchau meu filho, e se cuide tá? Nada de sair bebendo e dirigindo, a mãe te ama.
Ora, era o que me faltava, Camila por essa me paga... veja só que atrevimento, ligar para minha mãe mesmo estando tudo acabado, já não bastava o sofrimento que me causara?!
Ameaço ligar para ela, tirar satisfações, mas não, é melhor não.... Que idiota!  É tudo o que ela quer, de certo já esperava que eu não contasse a ninguém e tratou de cuidar que eles soubessem.
As pessoas das outras mesas estão a me olhar curiosas, menos o músico que devora apressadamente o seu lanche como se não comesse há dias. Devem se perguntar o que alguém está fazendo sozinho. Imagine se estivesse com minhas bermudas!
O casal começa uma discussão curta. Olhando-a mais detalhadamente vi que estava grávida, talvez de uns cinco meses no máximo, como a única coisa que fazia barulho naquele ambiente era a TV pude ouvir que ela cobrava o rapaz, entendi que estava desempregado e parecia não fazer nada para mudar isso. O músico punha-se a levantar logo após sua carona chegar, deixou parte do lanche por comer, e o outro casal parecia não ter pressa alguma de ir, comiam e namoravam num compassado ritmo.
A desagradável e bela atendente torna a minha mesa, traz minha refeição – mais alguma coisa? – Fica imóvel a olhar-me, um olhar interrogativo e irônico, franzi a sobrancelha esquerda; agradeço e a despeço.
- Porra, o maldito bacon... Atendente, atendente!
- Diga, há algo errado com o pedido?!
- Qual parte do bacon malpassado e “sem ovos” você não entendeu?
-Como? Como assim?!
- Veja essa porcaria, está torrada nas bordas e essa gosma branca tomou conta do lanche!
- Senhor, não vejo motivo para estar exaltado!
- Diga-me então qual a sensação de comer estes pedaços de carvão! – Nesse instante já me punha de pé com as mãos fechadas sobre a mesa...
- Olhe aqui seu babaca, eu não estou na noite de natal, trabalhando para ouvir desaforos vindos de pessoas como você – temi que ela soubesse quem eu era, e senti-me como um fracassado.
- Eu só queria um sanduíche de bacon, bastante bacon e malpassado.
O rosto dela ao ver-me sentado novamente e certo arrependimento em minha voz nessa última resposta aflorou em sua raiva algo completamente avesso, era como se sentisse compaixão por mim, então abriu um sorriso.
- Senhor – ela voltou a me chamar de senhor, e agora isso não me incomodava – trabalho há alguns anos em lanchonetes e nunca vi bacons diferentes desses que lhe servi.
- Nunca?! – O tom infantil que lhe pergunto faz seus lábios contraírem num sorriso tão meigo, tão meigo que um pouco menos de sobriedade faria dar-lhe um beijo...
- Nunca, em todos os anos – ela responde.
- Então lhe convido para experimentar o primeiro sanduíche de bacon, sem bordas torradas e com o verdadeiro paladar de bacon. - Ela sorri, fecha os olhos, procura algo que os desviassem da face interrogativa, presa no anseio de uma resposta que talhava agora.
- Claro, podemos marcar algum dia. 
- Agora! – E pegando-lhe a mão tento conduzi-la, ela em movimento, completamente desajeitada tira o avental, o boné, e veja que bela mulher tenho em minha frente, por um instante paramos e ficamos a olhar um para o outro.
- Não, cara, não posso ir seu louco!
Outro atendente se aproxima rápido – O que você está fazendo?! Tire a mão dela!
- Está tudo bem Marcos, ele não está fazendo nada – ela o responde.
- Nada?! Estava te levando para comer o melhor lanche da sua vida inteira e isso pode não parecer nada agora, mas pode ter certeza que não irá se arrepender. 
- Ficou louca? Não dê assunto para esse cara, a gente chama a polícia pra ele se não der o fora agora!
Todos os clientes estavam em silêncio com seus lanches na mão a olhar a cena atônitos. Ela me olha, senti que toda sua noção de responsabilidade se esvaia à medida que um sorriso desabrochava...
- Não posso ir, tenho de trabalhar, deixamos para a próxima?! - Me dê um número que consiga te encontrar.
- Está tudo bem, vão, isso aqui está as moscas mesmo. E você fica me devendo o Réveillon – disse Marcos ao ver que a vontade era mútua.
Enquanto caminhávamos rumo ao supermercado deliciava-me com os detalhes menos relevantes que ela contara. Chamava-se Jordana, tinha seus vinte e um anos, estudava nutrição numa faculdade particular e para manter seus estudos trabalhava a noite em algumas lanchonetes. Nas segundas, terças e quartas labutava no Sandão Lanches, quintas e sextas em uma churrascaria na zona sul, aos sábados e domingos ocupava-se com trabalhos e ao aprendizado de seu curso.
Ela parecia não acreditar na imprudência que cometera, suas mãos tremiam, tentava não me encarar e perdia-se, parecia não saber o que fazer com os braços, os passos eram passos descompassados, mas sorria, um sorriso que revela seu próprio zelo em se fazer agradável aos olhos alheios. Por várias vezes ela repetia a mesma frase: “Não acredito no que acabei de fazer! ”, então lhe fitava, abria um sorriso discreto e dizia-lhe que ademais não havia volta, estava feito. Éramos agora um casal de boas-vidas.
Adentrei ao supermercado, enquanto comprava os ingredientes, ela me aguardava do lado de fora do estabelecimento. Cuidei para que não nos faltasse nada, coisas como cebolas e ovos que nunca adicionava ao meu caseiro sanduíche, comprei. Escolhi um bom vinho, apesar de não vir acanhar com a refeição, algumas cervejas de trigo e uma caixa com chocolates, além de um pacote de preservativos. E pronto, lá se foram meus últimos reais do seguro daquele mês.
Saí atulhado de sacolas e ela... onde está ela?! Maldita seja! Deixou-me como um estúpido. Perguntei a um senhor que passava se a havia visto, ele balançou a cabeça negativamente, maldita seja mil vezes! Creio que voltara para o trabalho e me deixou a ver navios. Como posso ser tão tolo, por um momento pensei ter encontrado alguém que compartilhasse todas minhas esquisitices, e bem... O quão tolo me sentia agora!
Carrego as sacolas até o canteiro de uma árvore, e começo esfregar as mãos no rosto desesperadamente - como pude ser tão imbecil?! Por um instante, por um mísero instante esqueci-me de todos meus problemas, Camila, o emprego, minha família, tudo! Como pude ser tão imbecil?
Flagro uma gota escorrendo de meu rosto, que se abaixa em direção ao chão, fico a olhar meu próprio par de sapatos, a última coisa relevante que comprei visando somente a mim antes de mudar-me para o apartamento. Meu corpo padece, não posso ir para casa, seria deprimente depois de uma noite como essa pôr-me a comer só, ver TV só, dormir só.
Uma mão macia toca meu ombro – Demorei muito?! – Meu rosto se abre como uma flor que necessita absorver ao máximo o brilho do sol, então a abraço com toda minha força, corro a mão sobre seus cabelos...
- Nunca me deixe! – Minha própria aflição causa-me constrangimento quando a solto e a encaro nos olhos.
- Relaxe, você estava demorando um bocado, então aproveitei para ir ao banheiro. – Percebo que o brilho do seu batom está mais reluzente, os olhos contornados por lápis agora estão mergulhados num preto mais vívido.
- Vamos!
Pelo caminho ela continua a tecer detalhes de sua vida, contento-me em tempos em tempos dizer-lhe um “uhum” para mostrar que minha atenção continua presa a tudo que diz.
No apartamento sirvo-lhe um pouco de vinho enquanto preparo os hambúrgueres. A vida de solteiro dos últimos dias ensinou-me a preparar os mais saborosos macarrões e os melhores hambúrgueres. O meu segredo é misturar uma carne macia com outra um tanto mais gordurosa e adicionar molho para churrasco e assar lentamente, deixando a carne a uma altura que o fogo a toque levemente. Camada por camada os monto, primeiro a alface, o queijo cheddar, tomate, a carne, mais uma fatia de tomate e outra camada de alface e pronto, só falta embutir o bacon. Pergunto-lhe se há algo que ela não come, então ela me diz que quer ovos.
Com a frigideira já quente coloco os ovos que tomam uma grotesca forma de farofa e o bacon, bem, o bacon têm as bordas torradas. Droga! Os ovos grudaram na frigideira e quando coloquei o bacon as sobras dos ovos aderiram-no fazendo tostar tudo.
- Senti um cheirinho de queimado, tá tudo bem aí?
- Não como ovos – a respondi.
- São esses os bacons que você tanto se gabou?! Onde estão as cervejas? Ela era forte, passou imponente por mim, abriu a geladeira e pegou duas cervejas voltando ao sofá, mudou do canal de esportes para um sobre animais, tão naturalmente que temesse ser Camila.
Sirvo Jordana e ela retribui-me com uma carícia nos cabelos, apanho uma garrafa de cerveja e me sirvo, ela elogia o sanduíche, e nada comenta sobre o bacon torrado...
- Tem uma camisa velha? Está calor, quero terminar de comer, tirar essa roupa e tomar um banho.
Quando saiu do banheiro parecia ainda mais linda. Havia soltado os cabelos que agora estavam a cair lhe sobre os ombros. O cheiro que exalava era inebriante, não há perfume melhor que o cheiro de um banho tomado. Sua pele, tão perfeitamente lisa, alva e macia fazia que minhas mãos se perdessem por seus caminhos.
Assistimos uma comédia que passava na TV, um besteirol qualquer, depois lhe dei uma escova de dente como convite para que ficasse aquela noite, coisa que ela não hesitou em aceitar, dormimos juntos, pensei em não abraça-la naquela noite como forma de impor a mim mesmo um pouco de autoestima, mas ela o fez e se entregou me dando de todo o seu carinho sem medo.
Na manhã seguinte vi que se levantava, mas não a acompanhei, que fizesse o que bem entendesse, se tivesse de partir que fosse assim. Pude ouvir a porta se abrir, mas logo retornou e eu já estava de pé, havia trago o nosso café da manhã e o mesmo sorriso da noite anterior.

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