segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Uma Colherada - Paulo Cesar Corrêa

15 de junho. Seis meses de namoro.
Era provavelmente uma das datas mais excitantes para Heloísa. Tudo em seu corpo era animação e Túlio, seu namorado, sabia o quanto ela levava a sério essas comemorações: aniversário de quando se conheceram; tantos dias do primeiro beijo; mensário do primeiro “eu te amo”.
Heloísa era do tipo que ficava feliz com simples demonstrações de afeto; uma carta, uma flor e pronto: ela já resplandecia.
Enquanto revistava a caixa de correio, deparou-se com um envelope rosado, clássico e com letra de calígrafo. Estava endereçado a ela.
“Túlio”, ela pensou, com um sorriso na boca, revelando um pequeno diastema nos dentes superiores da frente. Rubem Alves dizia que cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel. Era por isso que ela amava receber cartas. Emails, em sua opinião, eram muito superficiais e nada íntimo e especial era compartilhado.
Abriu o envelope. Um cheiro de rosas foi emanado do papel e, por um instante, ela apreciou a fragrância. Túlio havia se superado. Depois de apreciar o perfume, leu a carta.
Eis o seu conteúdo.

“Srta. Quemelli,
Neste dia tão importante (O tetra do São Paulo na Libertadores? Melhor. Tudo em 80% de desconto na loja da Lacoste? Muito melhor. O nascimento do primeiro hermafrodita? Quase...quase lá)... Ei, calma, pequena. É uma piada! Hoje faz seis meses que estamos juntos e sei o quanto você ama comemorações.
Está pronta? Pega a moto na garagem e sai. Vai começar a busca ao tesouro.
Espero você.
Túlio.
P.S: A primeira pista é: the praça of us. Izquierda. Ten árboles.
Vai!”

Heloísa fechou a carta, ainda sorrindo e rindo por dentro por causa do senso de humor de Túlio.
“The praça of us”, ela pensou. Certamente uma mistura bem mal feita entre português e inglês. A tradução, ao pé da letra, seria “a praça do nós”. Após pensar mais um pouco, Heloísa chegou à conclusão de que o lugar seria a Praça dos Namorados, perto da Praia do Canto. Um dos lugares que ela mais amava ir aos fins de semana.
E as outras partes? Bem... Obviamente a parte em espanhol significava “esquerda” e o restante tinha algo a ver com a décima árvore.
− Pai, − gritou da porta da sala – vou sair um pouco.
− Aonde?
Heloísa se sentia um pouco desconfortável em dizer ao pai que iria a uma busca ao tesouro proposta pelo namorado – um jovem com quem seu progenitor não se dava muito bem.
− Vou à casa da Larissa. Ficamos de estudar juntas para a prova de física de amanhã. – Mentiu, o coração começando a disparar.
− A que horas volta? Mais alguém estará?
Que inquisição era aquela?!
− Volto para jantar. Giovana e Maria disseram que também iriam. – A mentira estava ficando maior.
− Ok. Qualquer coisa, me ligue.

(...)

Heloísa saiu tão rápido que nem ouviu o pai a aconselhando a levar um cachecol por causa do frio do inverno que se aproximava. Ligou a moto, sentindo o motor fazer barulho e arrancou. Amava sentir o vento indo contra o seu corpo.
Na altura da Avenida Saturnino, chegou aos 70 km/h e um leve sentimento de culpa a tomou por estar andando tão rápido dentro da cidade. Mas a curiosidade era enorme e Heloísa não conseguia se conter.
Ao chegar ao seu destino, estacionou a moto e, descendo dela, correu para o lado esquerdo da praça, contando as árvores.
1, 2, 3, 4, 5...
“O que será que Túlio está aprontando?”, ela se pergunta.
...6, 7, 8, 9, 10
Um amontoado de folhas estava na raiz da décima árvore. Heloísa espalhou as folhas e um pequeno pacote foi revelado. O abriu: dentro havia um cachecol de caxemira azul e outro envelope.

Com certeza você não está usando um. Nunca te vi usar. Agora que o teu belo pescoço não sentirá mais frio, continue sua busca. Vá até o Cafuné com Pimenta – sim, esse mesmo que você está pensando. Se disser o teu nome, uma moça te atenderá e uma bela peça usará.

Heloísa subiu na moto e sorriu divertidamente, adorando este jogo romântico. Envolveu o pescoço com o cachecol. Um belo presente, pensou, e certamente não foi barato.
Ligou a moto e foi a toda velocidade ao Cafuné com Pimenta. São quase dois quilômetros de distância e Heloísa chegou em cinco minutos.
Na porta da loja, Heloísa parou. O que faria num sexy shop? Suas roupas íntimas eram todas compradas por sua mãe e tinha certeza de que os outros utensílios da loja não a interessariam.
Ao entrar na loja, uma vendedora a perguntou se necessitava de ajuda.
− Sim, sou Heloísa Quemelli.
− Ah, perfeito – disse a vendedora. – Estava me perguntando se você realmente viria. – E com um sorriso simpático, ela continuou. – Nesta caixa há cinco modelos de lingerie. Escolha uma e se vista.
O primeiro era inteiro, roxo, com desenhos transparente e ombros sutis. O segundo era de duas peças, rosa claro, com desenhos transparentes ligeiramente mais claros. Havia mais outros dois, porém Heloísa não os reparou. Chegou ao último: preto, duas peças, com a parte de baixo sendo um fio dental – mal coberto na frente; nada coberto atrás.
Heloísa estava perdida no meio daquelas roupas íntimas e a vendedora, como se lesse a mente dela, disse:
− Acho que você não faz o tipo dessa última lingerie. Aconselho a escolher a segunda. – E, dando-a nas mãos de Heloísa, indicou-lhe o trocador.
Enquanto se trocava, Heloísa pensou no que diria a sua mãe quando ela visse tais peças no meio da roupa suja. Poderia dizer que foi Larissa e as outras meninas fazendo uma brincadeira.
A vendedora tinha razão. Aquela peça lhe havia ficado magnífica e ela imaginava o que suas amigas falariam quando lhes contasse sobre toda essa loucura. Algumas até teriam inveja.
Após se vestir e entregar as roupas íntimas velhas à vendedora, um novo envelope lhe foi dado. Até onde aquilo iria? Ela não tinha ideia, mas estava se divertindo muito.

Próximo lugar, Adriana DelMaestro. Acho que você vai gostar.

Na joalheria, ela recebeu um belo par de brincos turquesa e mais um envelope. Em Splendore Atelier uma senhora lhe aguardava com o vestido de gala mais bonito que Heloísa já havia visto na vida. Também havia um envelope e nele estava escrito para que voltasse ao lugar onde tudo começou. Um táxi a esperava do lado de fora da loja e a levaria até a praça. O que fazer com a moto? "Tranque-a e deixe a noite acontecer", dizia o envelope.

(...)

Ao entrar no carro, Heloísa era uma nova mulher. Desde a roupa interior até o que se via por fora. Se algum conhecido a visse naquele instante, jamais a reconheceria.
O rádio tocava Tenerife Sea, de Ed Sheeran, o que parecia perfeito para aquele final de tarde/início de noite. O sol começava a baixar e, segundo os termômetros das ruas, a temperatura estava amena, não passando dos 20 C°.
Heloísa fechou os olhos, recordando tudo o que havia feito naquele dia. Era uma aventura e, no momento em que reabriu os olhos, o taxista aumentou o volume do rádio.

“You look so wonderful in your dress
I love your hair like that”

Tudo parecia certo. A forma como as esparsas luzes do sol caíam sobre a terra. A forma como o céu e o mar se abraçavam no horizonte. Os transeuntes passeando pelas ruas nem imaginavam o quão importante aquele dia era para ela e o quão maravilhoso estava sendo.

“The way it falls on the side of your neck
Down your shoulders and back”

O carro virou na Avenida Saturnino e logo chegaram à Praça dos Namorados. Ela reconheceu o Golf preto de Túlio e começou a correr. Túlio estava ali, apoiado na árvore. Heloísa, ainda correndo, abriu os braços e se lançou sobre ele, beijando-o apaixonadamente. Túlio tirou de detrás de si uma orquídea e a pôs nos cabelos da namorada, sorrindo para ela.
− Admito que tive medo de que você não entendesse nada das pistas, se perdesse no caminho e eu ficasse aqui esperando a noite toda.
Heloísa lhe deu um leve tapa, como se estivesse ofendida com tal pensamento do namorado.
− Feliz mensário. Espero que tenha aproveitado o jogo – ele comentou.
Ela disse que sim e quando ele a chamou para ir tomar sorvete na Fioretto, tudo o que pôde fazer foi beijá-lo. Heloísa quase brigou com a atendente para ter uma banana split dupla com cereja e cobertura de chocolate e menta ao mesmo tempo. Túlio pagou um adicional para satisfazê-la e tudo se resolveu.
No carro, ainda discutindo sobre o sorvete, a atendente e os fascínios pitorescos do dia, Heloísa mal percebeu que estavam indo em direção à casa de Túlio. Ele abriu a porta, percebendo que os pais não estavam. Caminharam até o quarto dele, Heloísa entorpecida pela beleza do momento. Túlio ligou o som. Kenny G soprava, em seu saxofone, a melodia de “You’re Beautiful”.
A janela foi aberta e um pouco de lua entrou no quarto e uma leve brisa balançou os cabelos de Heloísa. Túlio a beijou na testa e começaram a dançar. Da dança para um grande beijo não demorou muito.
Túlio a levou para sua cama box, tirando o belo vestido de gala de sua namorada. Ao ver a roupa interior que ela usava, disse:
− Esperava que escolhesse a preta com fio dental – falou, rindo-se.
Heloísa o beijou. Naquela noite todas as músicas mais românticas compostas foram tocadas. Ou assim pareceu para eles. Túlio era doce e terno, mas insistia em ter algo mais. Porém seus esforços foram em vão. Teve somente o prazer de vê-la em sua roupa íntima e nada mais. Um pouco mais tarde, a levou para casa e ao chegarem lá, ele a beijou, escondendo sua decepção. Depois, dirigindo loucamente pelas ruas e avenidas de Vitória, Túlio se lembrou de uma música velha de um italiano que falava sobre uma garota igual a uma torta de baunilha decorada. Uma garota feliz de não ser comida.
“Igualzinho a ela”, ele pensou. “E eu dei só uma colherada”.
Naquela noite, Túlio recordou o quanto gastou para aquele dia ser um fiasco.
Em contrapartida, Heloísa ligava para suas amigas a fim de contar-lhes o maravilhoso dia que teve.



            

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