inverno, 2014
"Mas há sonhos que não podem acontecer e há tempestades que não
podemos prever!" (Fantine)
Houve
um tempo em que pensava saber tudo sobre o amor. Significava que compraria
flores e me lembraria de datas importantes, como aniversário de casamento, dia
dos namorados e coisas do gênero. Também significava que seria eternamente fiel
à Júlia e viveríamos juntos. Não seria difícil. Moraríamos numa casa simples em
Resende, com jardim de amores-perfeitos e um balanço de madeira. Teríamos um
Doblô — Júlia sempre preferiu carros da FIAT — para viagens de férias e idas à
Penedo aos fins de semana. Uma filha ou um casal de filhos. Quanto a isso,
Júlia nunca fora específica, pois acreditava que o que Deus quisesse seria o
melhor. Ela era assim, muito crente, quero dizer, e estou certo que foi essa fé
inabalável que me cativou. Mesmo se os nossos sonhos e projetos não fossem
realizados, via-me junto a ela, deitado na cama, rindo dos acontecimentos
cotidianos.
Parece
simples, não é mesmo?
E,
na verdade, é simples, mas temos a capacidade incrível de complicar a
simplicidade das coisas mais bonitas da vida. E, por mais que eu admita que
tenha feito tudo errado, ainda é-me difícil ter de abrir mão. Depois que esse
dia acabar, estou certo que nunca mais a verei.
Mas,
por agora, vou-me esconder por entre as árvores que ficam próximas à residência
dela: uma casa ao estilo europeu, pintada de vermelho com os umbrais das
janelas e da porta pinceladas de branco, um pouco afastada das pousadas e
hotéis que enchem o distrito de Penedo, uma antiga colônia finlandesa situada
na parte fluminense da Serra da Mantiqueira. Faz frio aqui. Vejo a vegetação
branca por causa da geada da noite anterior e recordo-me que Júlia sempre amou
o inverno.
São
quase oito horas da manhã e percebo a porta da frente se abrindo, lentamente, e
os escassos raios de sol banharem o rosto tenro de Júlia. Uma sensação estranha
se apodera de mim. Uma palpitação redescoberta. Ela desce as escadarias da
frente da casa e passeia-se pelo jardim. De onde estou, vejo, além dos
amores-perfeitos, girassóis e orquídeas-dálmata. As flores parecem estar murchas
por causa do frio, mas a presença de Júlia faz tudo retornar à vida. Ela
boceja, espreguiça e, por um instante, tenho a sensação de que ela me vê, mas
sei que é impossível. Quando você precisa viver escondido, camuflar-se se torna
inerente ao seu ser.
Ouço-a
cantarolar e, depois de aprumar meus ouvidos, descubro que a música é “Do you
dream of me?”, de Michael W. Smith. Essa mesma música era entoada no meu carro,
há tanto tempo atrás, quando, pela primeira vez, peguei-a na mão e disse que a
amava. Essa recordação me faz suar, apesar do frio. Júlia entra na casa
novamente e, após cinco minutos, retorna para o ar fresco, com uma xícara na
mão e um cardigã acinzentado envolvendo o corpo.
“É
tudo sua culpa”, uma voz murmura em meus ouvidos e, apesar de já ter
consciência disso, sempre é doloroso. E o único remédio, para mim, é reavivar
as memórias que estão guardadas.
Elas
são tudo o que me resta.
(...)
Ainda
não disse o meu nome. Chamo-me Victor Augusto e sempre gostei da sonoridade,
pois me parece imponente. Nasci em Seropédica, perto da cidade do Rio de
Janeiro. Costumávamos chamar a cidade, no verão, de SeroHell e a única coisa
que realmente fazia o povo se orgulhar era a Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro.
Foi lá que me formei
em jornalismo e foi lá que a conheci. Era minha primeira semana de aula e eu já
estava me sentindo completamente perdido naquela universidade. Em regra,
estudantes de Comunicação Social são extrovertidamente loucos, mas eu não sou
assim.
Naquela época eu
acreditava que quando encontrasse a mulher perfeita, seria amor à primeira
vista. Que viveríamos lindas aventuras, que nos casaríamos e pronto, dali em
diante seria feliz para sempre. Simples e fácil!
Pois bem meus caros,
a grande verdade é que o amor pode ocorrer de várias maneiras e formas. Às
vezes ele, sorrateiramente, entra pelas brechas das portas e janelas e se
infiltra no seu coração de tal forma que nada mais importará. Seu coração amará
e ponto final.
Comigo foi assim. Eu
estava sentado de baixo de umas das árvores que cercam o lago da universidade,
lendo Les Misérables do meu quase xará Victor Hugo, quando uma sombra
surgiu em cima das páginas. Olhei para cima para ver quem era e deparei-me com
um par de olhos castanhos, quase pretos, me encarando com ar de deboche.
A garota era
minúscula e seu cabelo era de um castanho bem claro, ondulado e cortado nos
ombros. Uma boca pequena e vermelha que me lembrava uma cereja. Delicada demais
para o meu gosto, mas até que não era de todo feia.
-Você está debaixo da
minha árvore, seu “bixo” folgado! - disse a garota.
Era só o que me
faltava! Uma veterana chata para me infernizar. Era minha primeira semana e eu
já estava com ganas de que fosse a última. Pelo jeito as coisas teriam que ser
do jeito difícil.
-Desculpa, mas seu nome
não está escrito em nenhum lugar por aqui. Não sabia que era sua. - disse isso
encarando-a com o sorriso mais irônico e ácido que encontrei no meu estoque de
armas fatais.
- E como você sabe?
Você não sabe meu nome…
Aquele rostinho pequeno
e rosado estava começando a me irritar, então resolvi que não valia a pena.
-Nem vale a pena
descobrir - dito isso, me levantei e saí dali sem olhar para trás.
Procurei esquecer o
ocorrido e focar toda a minha atenção nas aulas e em terminar de ler meu livro.
Les Misérables é
mesmo uma história incrível. Quanto mais eu lia, mais eu me encantava com a
coragem e determinação de Jean Valjean, odiava Javert e sofria por Fantine.
Embora tenha um cunho bem social, esta obra traz uma grande lição: uma boa ação
pode mudar para sempre a vida de uma outra pessoa.
Eu estava refletindo
sobre isso quando vi a garota da árvore sentada do outro lado do refeitório,
mordiscando uma rosquinha enquanto lia um livro que eu não conseguia
identificar.
Resolvi que era hora
de fazer uma boa ação. Fui até lá e, silenciosamente, sentei ao lado dela e
fiquei esperando que ela sentisse minha presença. Como eu não tinha certeza se
a demora em me notar derivava de sua distração com o livro ou de estar me
ignorando mesmo, resolvi arriscar um “oi”.
-Oi, garota da
árvore.
Ela sufocou um grito,
completamente assustada.
-Você me odeia? Quer
me matar? Ou é só um idiota mesmo? - logo em seguida colocou os cabelos atrás
da orelha, tentando recuperar a postura.
-Nenhuma das opções.
Só queria fazer as pazes, me desculpar pelo outro dia e talvez, quem sabe,
dividir uma árvore nos intervalos das aulas.
Ela pensou um pouco e
disse:
-Acho que sou eu quem
lhe deve desculpas. Eu estava apenas tentando fazer amizade com você, mas acho
que escolhi um jeito ruim de começar.
-Tudo bem. Podemos
começar de novo, se quiser…
- OK! Meu nome é
Júlia, muito prazer Sr. ..?
- Victor - completei.
- Victor Augusto de Mesquita, Srta. Júlia…?
- Júlia Caillat!
Eu tinha razão. Um
pequeno gesto, uma pequena ação pode mudar tudo. Pode mudar sua vida e a das
pessoas próximas para sempre. Aquela amizade iniciada ali, naquele refeitório,
mudaria para sempre a minha vida. Meu modo de pensar, de entender e sentir o
amor. Júlia se tornaria a razão da minha existência perpetuamente.
Ela estava um ano
acima de mim e, durante os três anos que passamos juntos na faculdade, afirmo
que foram melhores do que eu imaginava.
Certa vez, uma semana
antes da formatura dela, Júlia me perguntou o que eu esperava do futuro. O que
eu faria da minha carreira.
-Quero ser jornalista
correspondente no Oriente Médio - respondi.
Ela fez uma pausa.
Sua expressão estava inquieta e, de alguma forma, eu parecia ter falado algo
errado.
-Parece ser um lugar
meio longe de tudo, não?!
Sim. Era longe de
tudo. Muitos sacrifícios deveriam ser feitos para chegar lá. Deixei de pensar e
respondi. - Sim. É longe. - Fiz um silêncio. - Você iria comigo?
(...)
O
sol está mais alto no céu, aquecendo um pouco o ambiente. Júlia não está mais
do lado de fora da casa e, enquanto não a posso ver, responderei algo que pode
estar martelando na ideia dos que leem.
Por
que a estou observando? É uma pergunta difícil de responder. Não porque seja
algo errado, legalmente falando, estar aqui. Mas sim porque a resposta está no
passado. Nas minhas pequenas ações e na forma como elas mudaram o rumo do meu
“felizes para sempre”.
(...)
Era o último ano dela
e eu a ajudei com a monografia e todos os trabalhos acadêmicos. Eu ajudei com
os relatórios de estágio, falsifiquei assinaturas de atestados médicos para
justificar algumas faltas que poderiam fazê-la reprovar entre outros mil favores.
Cuidei de todos os pormenores, exceto o mais importante: dizer o quanto ela era
importante para mim.
Eis aí o grande erro
das pessoas: elas não dizem o que sentem. Se escondem atrás da muralha do medo
e da zona de conforto. A verdade tem um peso esmagador e, quando dita, tem o
poder de libertar almas.
Era nítido que Júlia
me amara desde o primeiro instante, mas para mim, era algo que não deveria ser
levado a sério. Eu tinha uma carreira para construir, lugares para conhecer e
naquele momento, não havia espaço para um “nós”. Só muito tempo depois é que
fui perceber o quanto a amava. Pena que tarde demais.
Eu poderia ter dito a
ela o quanto a amava, mas preferi deixá-la partir. Júlia voltou para Penedo, um
povoado pertencente à cidade de Itatiaia, após a festa de formatura. Festa esta
que eu não fui porque estava ocupado demais com os preparativos do meu
intercâmbio para a Irlanda.
Foi na Irlanda,
depois de 2 meses de festas e pegação que eu percebi um pedaço faltando em mim.
Era um buraquinho pequeno, sutil no início. Com o passar dos dias descobri uma
voçoroca no meu peito. Uma voçoroca chamada Júlia.
Mandei várias
mensagens para ela, mas Júlia não movimentava seu Facebook há meses e isso
começou a me deixar preocupado. Resolvi voltar ao Brasil e entender o que eu
estava sentindo.
Conquistá-la
novamente não foi fácil, mas foi a melhor coisa que fiz na vida. Eu terminei
minha graduação e decidi que era hora de formar minha própria família. Assim,
no dia 03 de novembro, nós nos casamos e os três anos seguintes foram os
melhores da minha vida.
Júlia trabalhava como
repórter e eu como redator no jornal local de Itatiaia. Era uma vida simples e
perfeita. O dia que cheguei em casa e me deparei com um par de sapatinhos de
bebê sobre a mesa de centro da sala foi glorioso.
Nesta noite, fomos ao
restaurante mais caro da cidade e Júlia escolheu um prato esquisito do qual eu
não me recordo. Na volta, eu dirigia tranquilamente pela avenida principal
quando meu celular tocou.
Eu reconheci o número
do meu chefe. Fiquei com medo de atender. Era tarde da noite e eu havia acabado
de saber que seria pai em breve. Não queria estragar aquele momento, mas como
Júlia insistiu, atendi. Ele ficara sabendo, por um amigo influente, que estavam
precisando de um corresponde na Cisjordânia e havia me indicado!
Eu me desliguei por
um minuto, em choque, dominado pela emoção e depois me dirigindo a Júlia,
disse:
-Amor, eu consegui!
Vou realizar meu sonho. Me fizeram uma proposta para ser correspondente na
Cisjordânia!
(...)
Júlia começou a chorar
e aquilo, sinceramente, me irritou.
Wanderlust é uma palavra alemã formada pelo verbo "wandern", que
significa andar sem rumo específico, perambular e "Lust", que poderia
ser traduzido como "drive"ou "craving" em inglês – ou seja,
mais que um desejo, uma ânsia profunda. Era o que eu sentia nesse momento: uma
ânsia incontrolável de partir.
-Victor, eu estou
grávida! Preciso de você. Nosso filho precisa de você. Você terá de dizer não!
- Céus! Como consegue
ser tão egoísta?! É meu sonho, nada mais importa. Você terá que entender.
Nossa discussão foi
calorosa e tudo aconteceu muito rápido. Lembro de ter perdido o controle do
carro e de, no hospital, receber a notícia de que ela havia perdido a criança.
Aquele foi o fim do
nosso casamento, claro. Fui para o oriente médio e achei que poderia refazer
minha vida e voltar a ser feliz de novo. Ledo engano, prezados, eu não estava
pronto ainda.
Quando minha prima
Helena me disse que Júlia havia se casado de novo, foi como se aquela voçoroca
tomasse conta do meu peito. Como se não houvesse chão para pisar e eu não
tivesse asas para voar. Apenas uma queda infinita no nada que a minha vida
havia se tornado.
(...)
Mais uma vez, vocês
se perguntam: o que você faz aí? Por que está escondido? Eu respondo: vim pedir
perdão. Vim dizer que a amo, que nunca deixei de amar e nunca deixarei. Estou
escondido porque estou juntando coragem para dizer o que preciso. Tenho feito
isso nas últimas duas semanas e meu tempo está se esgotando. Volto para o
oriente médio amanhã bem cedo, então, hoje é meu último prazo.
Vejo um cachorro,
acho que um filhote de Golden Retriever, saltar do jardim para a calçada, Júlia
o está levando para passear. Está mais linda do que nunca. Seus cabelos estão
mais curtos que da última vez que a vi e isso deixa seu rosto com uma aparência
ainda mais delicada. Meu coração dispara.
Saio do meio das
árvores e o pequeno cão corre em minha direção. Começa a morder a barra da
minha calça, mas isso não importa porque nesse momento os olhos de Júlia estão
fixos nos meus.
-Oi, garota da
árvore.
-Olá, bicho folgado.
Ela atravessa a rua e
senta na calçada batendo a mão no chão, me convidando a sentar ao seu lado. Eu
sento e o pequeno cão deita em seu colo. Sinto uma inveja sufocante daquele
cão.
-Ted esperto! - diz
ela acariciando a cabeça do mascote.
Percebo então o quão
tarde eu cheguei. Já havia me perdoado há muito tempo, disse ela. Havia
encontrado a felicidade ao lado de Maurício e o amava com toda a sua alma.
-Sinto muito, Victor!
- uma lágrima escorre de seu rosto, mas a determinação continua lá.
-Eu sou feliz Victor
e sei que você também encontrará um novo caminho.
Ela levanta e me
oferece a mão em cumprimento e despedida. Eis aí o terrível adeus!
Pego sua mão e a puxo
para junto de mim, abracando-a. Ela não resiste e ficamos ali, abraçados. Seu
corpo pequeno está colado no meu e seu perfume inebria meus sentidos.
A sensação é
poderosa. Eu quero corrigir todos os erros, então volto no tempo, mas apenas em
minha mente, para o dia do baile de formatura. Júlia está com um vestido azul
marinho que lhe cai muito bem e eu estou lá. Sou seu par. Eu não a deixei
sozinha. Nós estamos dançando “Do you dream of me?”, do Michael W. Smith e tudo
deu certo… Eu não fui egoísta e covarde e nós estamos juntos.
Abro meu olhos a
tempo de ver Júlia pegar o filhote no colo, sorrir para mim e cerrar a porta.
Um vento frio sopra e
parece querer congelar meu coração, mas não me importo. Guardo nele o calor
daquele último abraço e ele me aquece enquanto desço a rua das Laranjeiras em
busca de um novo caminho. Sim, é isso mesmo: um novo caminho!
Alguns podem dizer:
insensível! Outros: você não tem alma. Mas a verdade é que a vida é feita de
começos e recomeços; embora nem tudo saia “nos conformes” ou exatamente
do jeito que gostaríamos, isso não quer dizer que deu tudo errado. Foi apenas
um ciclo que se encerrou para que outro tenha início. Esse é, afinal, o grande
“x” da equação.
A vida é simples, nós a complicamos e
aí vem a parte mais interessante de todas: porque tornamos a vida embaraçada e
insustentável, Deus dá, a cada dia, novas oportunidades, novos recomeços. Sim,
Fantine tinha razão: “há sonhos que não podem acontecer e há tempestades que
não podemos prever”, mas existe também um pós tempestade e todo um mundo novo,
com mil cores e cheiros a serem descobertos. Então, vejamos o que esse mundo
novo reserva para mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário