domingo, 28 de outubro de 2012

Ela será só minha - Caio Machado

Os pingos de chuva coloriam em tons mais escuros do que habituais às calçadas, ruas e pisos por todo o chão. A terra é subitamente umedecida e se torna viscosa, superfícies lisas se tornam escorregadias e perigosas. Meus trajes imundos logo começarão a encharcar e meu vasto e crespo cabelo não absorverá muito da água. A boa notícia é que a tempestade aliviará um pouco do calor e do clima seco deixado em setembro pelo mês de agosto. A má notícia é que eu não tenho teto.
Lembrei-me da ponte situada na avenida que eu saberia o nome se soubesse ler. Pensando bem, ao menos consigo distinguir uma rua de uma avenida. Serão três quadras de um sôfrego caminhar e a probabilidade de meus pertences não molharem e da rua não se inundar é nula. Mais vale um chão seco e duro, do que um chão macio e molhado. Minhas caixas de papelão com meus mantimentos derreterão, mas eu as levarei assim mesmo. Meu cantil já está seguro em meu bolso e um breve gole será um tanto quanto encorajador.
Pés descalços em superfícies alagadas sempre resultam em infortúnios. O primeiro corte foi no calcanhar e o pior de tudo é que eu sempre evitei aquela imperfeição do asfalto. O desespero te confunde e te torna seu pior inimigo, mesmo quando você conhece perfeitamente todo o itinerário a ser seguido. Felizmente meus calos transformaram a sola dos meus pés numa resistente crosta.
Um cão esquelético e ensopado atravessava a rua vagarosamente. A ausência de raciocínio não faz com que a chuva incomode aquele animal errante. Eu provavelmente estou com mais fome do que ele. E olha que minhas costelas nem estavam assim tão expostas. Nem todos os cães conhecem o álcool e seus benefícios relacionados à fome e a dor. Minha luta agora era por um lugar seco para repousar e não por alimentos. Se fosse isso comeria até mesmo aquele magérrimo cachorro.
O sangue do meu calcanhar pintava cada poça que eu pisava. A dor do corte logo foi substituída pela sensação de frio que fazia meu corpo ulcerado tremer. Nas noites frias, as estrelas são como flocos de neve. Naquela noite eu não teria essa singela distração que sempre pulsava congelada no céu. Pior ainda são os banhos que eu sempre tomo por cada carro que cruza meu caminho. Lancei um olhar de desprezo para cada motorista que jorrou água em mim. Praguejei para que seus filhos morressem em uma enchente ou algo que valha.
Queria saber quando foi que o ser humano tomou os mendigos por desalmados e meros objetos de diversão. Garotos que jogam meus pertences em córregos, pessoas que me expulsam de estabelecimentos e já ia me esquecendo dos outros mendigos que roubam minhas moedas na cuia de esmolas. A maldade em si está em qualquer homem, não escolhe a condição em que ele vive. Ao nascer, a sociedade é corrompida pelo homem, e não o contrário.
Minhas únicas aliadas, naquela noite chuvosa eram as marquises de edifícios, que se tornavam praticamente sazonais. Varandas de alvenaria e toldos também são todos bem vindos. Acentuam o frio, mas me deixam menos exposto ao temporal. Árvores são traiçoeiras. Quando não despeja na sua cabeça a água acumulada em suas folhas, estão servindo de para-raios. Evitei todas as possíveis.
Dali já avistava a parte inferior da ponte em que me abrigaria. Ela será só minha. Nenhum dos infelizes que furtavam minha cuia de esmolas estava na área. Aquela ponte era mais suculenta do que um prato feito. Remendava minhas angústias mais do que um trago de conhaque. Superava até o amor materno que nunca tive ao ser abandonado ao nascer. Ela será só minha. Por um instante eu até me esqueci da chuva. Obrigado por me trazer de volta a realidade, trovão.
O maior desafio do trajeto era descer até a ponte. O concreto estava úmido e o lodo se tornou ainda mais pegajoso. Dois passos. Três passos. Ela será só minha. Eu estava quase lá. No quarto passo, o fundo da caixa de papelão cedeu e todos os meus pertences caíram rio abaixo. Dane-se, estou a salvo. Cinco passos, seis passos. Ela será só minha. Já conseguia avistar o local, totalmente seco e mal iluminado. Deitado me imaginava, apenas ouvindo os gritos da chuva martelando o asfalto acima de minha cabeça.
Nem percebi que havia pisado em falso e que agora estava caindo em direção ao córrego. As pedras da barragem me avisaram do ocorrido. A dor na coluna só não é mais gritante do que a dor da fome. Provavelmente quebrei umas sete costelas, quatro dentes e outros inúmeros ossos dos quais eu nunca soube os nomes. E por falar em números, vinte deles serão gastos em minutos para que o nível da água suba e me mate afogado. Nem sequer um velório digno eu terei. Como se algum instante em minha vida paupérrima tivesse sido digna. Amigos e familiares num enterro? Provavelmente a água me enterrará. Permaneço estagnado ao chão contemplado minha última ambição em vida. Ela será só minha.

sábado, 22 de setembro de 2012

O Caso - Henrique Donancio


Parecia um dos casos insolúveis de seriados norte americano, mas era real. Eu e minha equipe há seis meses estávamos exclusivamente dedicados ao caso sem ainda uma pista concreta que nos guiasse a uma resolução, quando então parecíamos próximos de algo, isso se tornava mais longínquo do que de fato era, andava impaciente. A última vítima fora o rico Otávio Medeiros, dono da maior rede farmacêutica da região e como pista apenas um escândalo em 2003 quando então teria sido indiciado por contrabandear e adulterar antidepressivos, anticoncepcionais e remédios para o controle cardíaco. Sem justificativas, duas mulheres o processaram por engravidar quando tomavam do remédio, o problema é que a prova já havia sido consumida, a população ficara desconfiada durante alguns meses, mas brasileiro tem memória curta e atualmente os seus negócios fluíam normalmente. Quando foi encontrado Otávio tinha marcas em suas costas do que parecia ter sido talhado por um salto agulha, estava sem os sapatos e meias e apenas a calça e a peça íntima o vestiam, parecia não haver indícios de qualquer espécie de ato sexual, pedi então que Natasha investigasse coletando amostras de qualquer coisa que houvesse tocado seu órgão, quem sabe vestígios de saliva, pois do contrário tratar-se-ia de mais um crime perfeito do nosso procurado, o sexto.
Uma coisa me deixava confiante em relação ao caso, pois todas as vítimas de certa forma haviam causado algum tipo de dano à sociedade e eram bem sucedidos. Outra coisa me intrigava... Não acreditava por mais que tudo me levasse à constatação de que era apenas um assassino agindo, apesar da brutalidade sempre deixar evidente uma marca pessoal dele a forma como se davam eram opostas a antecessora. Como o delegado da nossa jurisdição que teve o couro cabeludo e crânio cortado em círculo deixando a massa cerebral exposta ou o caso de Otávio, não tinha uma linha a ser seguida, algo que marca um serial killer, uma assinatura deixada nos seus crimes.
- Com licença.
-Entre Natahsa, me traz alguma novidade?
-Analisamos o corpo e o resultado nos indica que a vítima como imaginávamos não chegou a ter relações sexuais antes de sua morte.
-Tem alguma suspeita?
-Nenhuma senhor.
-Obrigado, é só por enquanto.
Maldito seja, até quando e quem estaria a ter tanta necessidade por sangue. Seria uma vingança? Um acerto de contas doentio? Quando ele iria parar? Maldito seja!
-Com licença senhor, o prefeito está na linha.
-Pois não senhor.
-Espero Charles que dessa vez me traga uma solução, já basta seu cretino, é ano de eleições ou será que não percebes? Todo meu eleitorado está em prantos, a segurança pública está em risco e o seu maldito departamento está de braços cruzados...
Desligo então, já não mais suporto esse corrupto me cobrando respostas, ainda mais quando possui certa razão.
-Charles, então, muito ocupado?
-Por favor, entre Natasha, são só preocupações sobre esse caso.
-É, ando preocupada também, ainda mais quando se trata de uma sexta-feira treze como esta.
Dou-lhe uma risada. - Então acha que nosso assassino é um mascarado?
-Quando se trata de psicopatia tudo é possível não?
-Sim, mas o que tens a mão?
-Apenas papéis e ingressos para um cinema, que tal?
Eu não deveria, ainda mais quando minha situação com Paula ainda estava pendente. Estava me separando, deixando minha casa e meus filhos. Se não fosse por todos os problemas talvez tivesse recusado o convite.
Parece bom o filme, mas receio que nem nos seus momentos de folga você esqueça que é uma militar. Disse a Natasha já na porta do cinema.
-Na verdade sim, mas é que este tipo de arte me atrai mais que outras, serve-me de inspiração.
-É tudo que necessitamos nesse momento Natasha, este último caso já requer inspiração, uma vez que já não encontro razão.
-É melhor deixar isto cair por hoje, vamos nos divertir e relaxar um pouco.
Natasha era inteligente e uma boa companhia. Calma e com uma voz serena além de muito atraente. Confesso que por uma noite me fez esquecer-se de todos os problemas e isso teria aberto um pouco mais a visão sobre tudo que estava a acontecer. Conversamos bastante logo após o cinema e pude notar que tínhamos alguns suspeitos em comum numa conversa extraoficial. Não pude deixar-lhe de convidar para tomar um vinho em casa ao fim da noite.
Ao fim do expediente fui visitar meus filhos e tomar um pouco de conhecimento do principal suspeito da nossa constatação na noite interior. Era o padrasto dos meus filhos, o homem com quem Paula estava a morar.
Ao chegar notei que todos estavam na sala assistindo TV antes de tomarem seus rumos com a minha chegada. Emanuel era sobrinho da última vítima e também seu sócio nas redes farmacêuticas, estudara medicina. Quando que quase sem a intenção, olhei para a TV e me deparei com a cena em que Lecter retira o couro cabeludo de sua vítima e então prepara seu cérebro. Aquilo me deixou em choque... Teria sido ele que matara o policial, e talvez seu próprio tio, já que se tornaria sócio majoritário com sua morte.
-Esses filmes não são apropriados para as crianças Paula.
-Eu sei o que é apropriado para eles Charles, agora se não se importa gostaria que as levasse o mais rápido, suas visitas andam cada vez mais estressantes e Emanuel anda passando por momentos ruins agora com a morte de seu parente.
Sabia por quais momentos ele andava a passar, mas tentei disfarçar sendo um tanto educado. Disse-lhe adeus, mas não pude deixar de sentir que me andava a fitar com certa obsessão.
No dia seguinte, quando deixei as crianças na escola tomei o rumo da casa de Natasha, tinha de compartilhar minhas descobertas...
-Oi Charles, que surpresa, não estava a te esperar.
-Atrapalho?
-Não entre.
Natasha também era um tanto recatada, cheguei por um instante a achar que não queria minha presença. Foi de certo isso quando nos deitamos e vi algumas marcas no seu corpo, ela teria alguém e eu só servira como distração naquela noite. Ao fim contei-lhe tudo que achava do nosso suspeito e ela pareceu confiante nas minhas descobertas. Cabia a nós agora colher algumas evidências e terminar logo com tudo isso. Trataria de ficar com meus filhos enquanto tudo se resolvia e pedir que alguns de nossos homens rodeassem minha antiga casa a fim de cuidar para que não oferecessemos risco a Paula.
Quando cheguei ao escritório mais uma vítima havia sido achada, e por incrível que pareça a morte teria sido talhada com uma serra elétrica, era o fim da minha paciência e de todos os governantes, agora todos queria a minha cabeça e se não mais pude do que decretar a prisão preventiva de Emanuel enquanto buscava provas.
Fui até a sala de Natasha para lhe pedir que procurasse amostras de DNA nas roupas do nosso suspeito...
“Que bom que temos esse assassino preso”, disse quando noticiei a prisão.
Nos dias seguintes mais vítimas e Emanuel preso. Além do seu álibi, a Paula, na sexta-feira treze. Por mais que guardasse alguma magoa de si, ainda confiava na sua índole. Além disso tinha a vítima com marcas do que parecia ter sido causado por um salto de sapato feminino, as coisas não se encaixavam.
Voltei à sala de Natasha para saber se já me trazia alguma resposta, a situação já era insustentável e minha cabeça já estava por rolar...
Dei-lhe uma carona no fim do expediente, dormimos juntos mais uma vez, conversamos... Nosso único suspeito estava sobre nossas asas quando mais crimes aconteceram e não havia provas nenhuma contra ele. Paula ameaçou entrar na justiça contra mim, talvez por achar que usei minhas responsabilidades para minar sua relação, e de certa forma ela tinha suas razões.
Acordei no meio da noite, andei pela casa de Natasha como um sonâmbulo. Era de certo minha demissão no dia seguinte e isso me tirava o sono. Bisbilhotei seus livros, seus filmes, tudo que me distraísse e fizesse as horas passarem, assim o fiz...
-O que está fazendo acordado?
- Notei que gosta de filmes como aquele que assistimos, os “Homens que não amavam as mulheres”, não era esse?
-Sim, mas não devia mexer nas minhas coisas sem minha permissão. Notei que ela se alterara bastante.
-Desculpe, não foi minha intenção lhe incomodar.
-Saía agora.
Por qual motivo Natasha se incomodara tanto foi o pensamento que me tomou na volta para casa. Parecia ter algum ciúme possessivo com todos os seus pertences, mas não dei tanta importância, cada um com suas estranhezas.
-Senhor, o relatório que me pediu sobre as últimas vítimas...
-Sim, obrigado.
Quando terminei de ler fui até a sala de Natasha.
-Notou que todas as vítimas são judias, como no filme que assistimos?
-Não me dei conta disso.
-Sem nenhuma prova todo esse tempo...
Então ficou em silêncio e quieta, apenas sorriu. Saquei a arma.
Ponha as mãos sobre a mesa, você está presa Natasha.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Pena - Caio Machado


O autor se pergunta o tempo todo se vale a pena passar seus últimos dias com animais mais estúpidos do que burros, e mais sujos do que porcos.

O seu sôfrego caminhar determinava a velocidade que seus dias se arrastavam. Pés descalços e extremamente calejados. Um mirrado galo garnisé e quinze aves distribuídas e amontoadas em um pequeno cercado com folhas secas forradas, no meio de suas próprias fezes e dejetos.

Noventa e três anos. Viúva há uma década e exilada de tudo: família e possivelmente civilização. A solidão e as lembranças da fazenda remetia ela a momentos felizes com seu falecido marido. Uma maneira de se manter fiel à solidão e infiel ao seu estimado esposo.

Milho pelas manhãs. Ração sempre à tarde. Água trocada de dois em dois dias.

As galinhas mordiscavam suas pernas abarrotadas de varizes como uma maneira de expressarem suas fomes. Um desabafo faminto e por parte da senhora tido como forma de afeto.

O autor não sabe nada sobre raças de galinhas e, portanto, utilizará recursos darwinistas (formatos de bicos e cores de penugens) para uma breve descrição.

Penas marrons, brancas e pretas. Bicos de um tom amarelo fosco, curtos e achatados. Cristas bastante avermelhadas de formatos que variam entre ondas perfeitas a meros chicletes mastigados. Muito ruído por parte dos pios. Aves gordas e repletas de penas engorduradas e empoeiradas.

A vida daquela senhora estava acabando e a única coisa que ela ainda fazia era alimentar suas galinhas, recolher ovos, lavar seus vestidos e cozinhar mingau de fubá. Seus dias correndo pelo avesso e nenhum Homo sapiens ao seu redor.

(...)

Ela morreu no meio da porta do galinheiro, que ainda estava entreaberta e caiu de costas com sua face voltada para o céu. Felizmente ela tinha acabado de servir os animais com ração. Nenhuma ave percebeu. A porteira ficou bloqueada com seu corpo sem vida.

Inicialmente as galináceas ciscavam o chão em busca de minhocas e também destruíam todas as plantas a disposição no cercado. Depois de certo período não havia mais nada para ser ingerido pelas paupérrimas aves.

As aves agora passavam por cima do corpo da mulher e invadiam o casebre onde a pobre alma residia de maneira parca. Barras de sabão foram seus primeiros alimentos. Em seguida, os sacos de arroz empilhados ao lado do fogão à lenha.

Fezes estampavam agora todo o chão do casebre. A fome estampava também a face das aves agora desesperadas.

O corpo da senhora começava agora a decompor paulatinamente e o odor desvanecia rápido devido aos constantes temporais e ventanias. A reserva de arroz e sabonete já estava chegando ao seu fim.

Os ovos que anteriormente eram recolhidos agora chocavam e os primeiros filhotes faleciam, por falta de recursos alimentares, e serviam de alimento para as aves veteranas. Um excêntrico canibalismo, mas de extrema urgência para a sobrevivência delas.

Animais que se apegam a você pelo simples fatos de alimentá-los. Animais que traem você pelo simples fato de não alimentá-los.

O cheiro fétido daquele corpo não poderia incomodar mais do que a fome das galinhas. A primeira bicada cortou seu braço direito. Já não havia mais sangue naquele corpo, mas aquela abundante carne roxa serviria por ora.

A mutilação ocular assistida no filme de Buñuel com repulsa em sua juventude se assemelhava ao estrago feito naquela bicada desferida pelo galo garnisé. Acelerava-se assim o processo de deterioração de seu corpo. Os olhos eram saboreados de melhor grado para as aves e não tardaria que as galinhas encontrassem algum vestígio cerebral.

Quanto tempo aquilo as alimentaria? Se aquela cena era mais horripilante do que a própria fome em graus extremos?

O tempo transformaria todas elas em carrascos de si próprias.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Monologando sobre a solidão - Henrique Donancio

Não me lembro qual foi a última vez que fiquei um dia sem mandar-lhe mensagens ao celular. Talvez nunca o fiz, pela necessidade de estar presente de alguma forma e também de me acalmar. A falta de notícias, de contato, carregam-me para uma imensidade de suposições que me atordoam. Aonde e com quem você está agora? Apenas sacio esta necessidade doentia quando insisto e descubro que você está no sofá da sala conversando com seus pais.
Já se fazem duas semanas que não nos vemos e toda viagem que temos que nos ausentar por determinados dias me trazem a crença que voltaremos novos, com vontade do outro, mas pelo que parece essa não será diferente de outras idas. Por hoje resolvi fingir não existir, ver se você notava minha ausência, mas já fazem algumas horas de um novo dia e provavelmente já está deitada em sua cama, descansando para tomar o rumo de nossa casa outra vez, e de novo ter que ouvir você talhar desculpas e engolir todas como um filho alimentado por sua mãe. Em alguns momentos perco-me, sinto vontade de jogar tudo que construímos e passamos juntos fora, ver-me livre, noutras apenas a sensação de perca já me basta para desistir.
Me consome um pensamento covarde, como imagino que você o seria. Pedir que não me procure, que preciso de um pouco de paz, que estou cansado de tudo isso, tudo num simples adeus por SMS, pois pessoalmente sempre que tentei lhe reivindicar um pouco mais de atenção ou dizer-lhe que estava de partida, você me fez parecer um idiota, sei que também faltou por minha parte certa convicção, mas esperava que apenas fingisse.
O telefone soa...
“Me ligue, estou com saudades...” – Faço o que me pede.
-Oi, onde você está?
-Oi.
-Onde você está? Pergunto-lhe insipidamente.
-Nossa! Como sempre né Guilherme! Olha eu ligo, mando mensagens, faço questão e você ainda me trata assim, nunca está bom, nunca... Eu estava lá embaixo com as gurias e deixei o celular no meu quarto, quando voltei vi suas ligações... – Então desligo.
Mais uma vez meus ciúmes doentios... Tento ligar os fatos, as pessoas, tudo que havia contado nos últimos dias e parece tudo fazer sentido até que minha insistência faça parecer que algo está errado. Fico abatido então, sei que errei e por isso você vai se isolar, outra vez pareci não confiar, não acreditar...
Nas semanas seguintes parecia conversar comigo quase por obrigação, como sempre fazia, e isso me atordoava mais ainda, essa incessante ideia de que tudo deveria ser intenso e sempre intenso, talvez por de certa forma tentar alçar isso, por querer sempre melhorar coisas que só funcionam com seus defeitos, como aquele liquidificador que trouxe de minha antiga casa, que só ligava quando o cabo de energia ficava enrolado em sua base.
Decidi então que precisava de um tempo para mim, ou acabaria por te perder.Liguei para o Daniel e perguntei-lhe de seu avô, que há tempos atrás viera me falar de sua solidão, peguei todas minhas economias e fui rumo ao Uruguai, para o sítio do velho que apenas vira uma vez na vida, através  do amigo que conhecera assim que chegará ao sul. Dizia ele que o velho gostava de uma boa companhia, pois alguns anos atrás sua parceira de quase uma vida falecera de um câncer que lhe tomara os pulmões.
Quando cheguei ao sítio o velho me mirava com uma espingarda que mais tarde me contou ser lembrança sua de caçadas noutros tempos. Só a abaixou quando consegui falar-lhe com meu portunhol muito mal elaborado que era amigo de seu neto. Era uma figura exótica dos quais me habituara durante os anos de vida, simples e sempre sorridente. Ainda tinha muitos de seus fios que um dia creio que foram negros sobre o couro de sua cabeça, também um bigode e uma cicatriz ainda de um vermelho vívido no supercílio. Perguntei-o onde a adquiriu e ele me disse que foi numa pescaria. Tive a impressão que não a conquistou lidando com a pesca.
Duas semanas se passaram...
O velho se chamava Abelardo e em pouco tempo lhe confidenciei muito ao meu respeito como também o fez. Contou-me sobre a perca de um dos filhos e como sua esposa morreu. Abelardo esteve por um tempo em Cuba pois era um aspirante comunista e queria ver de perto como funcionava o regime da família Castro, logo após a estabilização dos rebeldes no poder. Gostava de tragar alguns cigarros e então despertara o interesse pelos charutos cubanos que dizia ele se envergonhar pois aquilo não tinha a alma caribenha e sim o suor. Fumou demasiadamente por muitos anos, algo que compartilhou com a esposa até o fim da sua vida, após isso largou o vício e dizia arrependido de um dia ter oferecido a amada o primeiro trago. Contou-me sobre o que aprendeu da vida e como estava a desperdiça-la no seu restante. Parecia ter retirado com suas mão manchadas pela idade todos os meus devaneios, algo que consegui me desapegar somente dois meses após.
Quando tornei a cidade que passara os últimos anos mais felizes de minha vida ao lado da mulher que julgava ser capaz de estar ao lado até o fim da minha existência, soube que ela se cansou da espera e falta de notícias minhas, em tão curto tempo. Havia desistido, sofreu com meu desaparecimento, se perdeu em algumas noites entre copos e outros corpos, mas que ainda assim andava a voltar para casa sozinha, ainda guardava o lado esquerdo da cama a espera que eu voltasse, cinco meses haviam se passados desde a última vez que lhe pusera os olhos. Aquilo tudo me tomara em angustia, talvez o melhor seria deixar tudo como estava, pensei então em ficar e continuar com minhas ambições mais singulares, talvez esquecê-la...
Quando amanheceu tomei o primeiro ônibus para Porto Alegre, afim de seguir em outro para uma pequena cidade em meio as Serras, trataria de trazê-la, ou mesmo ficar se isso lhe fizesse mais feliz, e se ainda me quisesse.


domingo, 17 de junho de 2012

Um dia e nada mais - Caio Machado

Disseram-me que aquela era a única pessoa na cidade capaz de realmente lançar um mal olhado em alguém. Recorrer para macumba para dar um fim no amante de minha mulher. Em que ponto foi chegar essa situação? Eu poderia tentar outros métodos, aliás, já tentei, mas nada funcionou. O pequeno escritório daquela mãe de santo ficava dentro da galeria central e cheirava a incenso barato e sabão em barra. Seus cabelos negros eram encaracolados e desgrenhados. Sua fala era longa e arrastada. Após nos cumprimentarmos disse sem rodeios para que ela desse um sumiço daquele rapaz na vida de minha esposa. Ela paulatinamente disse ser impossível conseguir que ele se afastasse dela por algo mais do que um dia e eu reclamei dizendo que um dia não mudaria em absolutamente nada. Por trás daqueles olhos castanhos escuros eu percebia de que algo ali estava bem errado. Ou ela conseguia sim se livrar do amante de minha mulher ou ela não passava de uma charlatã tentando me convencer de que é capaz de tal feito para apenas extorquir meu dinheiro. Mesmo tendo sido extremamente recomendada por pessoas de minha confiança, não conseguia entrar em um consentimento com a bruxa.
Ela insistia na ideia de que poderia afastar a pessoa por apenas um dia e que nesse curto período de tempo minhas atitudes sim, seriam definitivas para que mudanças a respeito da infidelidade de minha esposa fossem tomadas. Discordei novamente dizendo que se só isso resolvesse eu mesmo daria um sumiço naquele infeliz por vinte e quatro horas. Pedi para que ela o mandasse para o Recife ou mesmo a China. Só bastava que ele desaparecesse por completo, não se tratava de tirar a vida daquele homem. Meu amor por minha mulher já aceitou a traição, não custaria muito perdoá-la após ele partir. A macumbeira não se deu por vencida e continuou na mesma ladainha. Aquela saliva grossa que saltava de sua boca ao dizer sílabas carregadas me enojava cada vez mais.
Não me dei conta de que havia perdido toda à tarde naquele lugar sem nada ter resolvido e decidi largar mão disso tudo e partir para minha casa. A senhora me jogou um sorriso de lado bastante pejorativo e disse que no dia seguinte ela resolveria meu problema. Novamente a sensação de estar sendo passado para trás me ocorreu, mas agora eu já não tinha mais nada a perder. Ao chegar em casa, notei que minha esposa se encontrava em nosso quarto arrumando os lençóis da cama e conversando ao telefone. Sorrateiramente pude ouvir bem enquanto ela agradecia a mãe de santo por me manter afastado de casa bem no dia da folga de seu amante e como a sua tarde havia sido maravilhosa. Segui para o sofá da sala e afundei em minha poltrona. Era quarta-feira e o Jornal Nacional trataria de me distrair ou confortar meus mansos chifres.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dupla Descoberta - Caio Machado


Naquela manhã a última coisa que eu precisava era de ter que me levantar. O sol já preenchia com luz todo o meu quarto e os clarões já não ofuscavam mais minha visão. O perfeccionismo de meu pai ao projetar a planta de nossa casa, fez com que todas as janelas dos quartos iluminassem as camas assim que o sol nascesse. A luz incide do começo da cintura até os pés, de maneira com que os primeiros raios não incomodem os olhos e nem que esquentem demais a cama. Toda aquela paixão que eu estava sentindo desaparecia e em seu lugar uma aflição bombardeava meus anseios para que tudo aquilo fosse esclarecido. Na verdade eu nunca demonstrei que estava me sentindo apaixonada ou algo do tipo. Definitivamente isso é algo que eu geralmente nunca deixo transparecer, mas que de todo jeito ainda me deixa numa posição confortável perante tudo, pois sempre houve quem pensasse e agisse por mim nessas situações. Como se isso de alguma maneira segurasse a pessoa que estivesse interessada em mim. Mas dessa vez é algo maior e toda essa minha demora e errônea impressão de desinteresse pode resultar em algo trágico e eu deveria evitar.
No caminho até o colégio eu não tirava isso da cabeça e nem mesmo mudando de trajeto duas vezes consegui me desvencilhar disso. Eu deveria relaxar, pois já havia tomado meu banho que em cada manhã servia para que eu realmente despertasse e me sentisse disposta para o resto do dia. O que geralmente sempre funcionava e, além disso, eu havia usado até o perfume novo que ganhei de presente dele e acertado no meu penteado. Nada sairia errado.
Parecia até que os horários escolares se arrastavam como lesmas de uma tonelada ou mesmo que o tempo tivesse me escolhido pra me chatear naquela manhã... O fato de estudarmos em colégios diferentes também colocava minha ansiedade a toda prova, mas finalmente nos encontramos e já estávamos fazendo o percurso de volta para minha casa.
- Laura, eu consigo ver que você está nervosa. Seu pai é tão severo assim? Porque eu estou muito tranqüilo quanto a tudo e até...
- Não se trata dele ser severo... – respirei fundo - O problema não é ele te aceitar e sim você aceitar ele – Foi a coisa mais séria que eu já tinha dito em toda minha vida e eu não queria mesmo que isso fosse um problema para nosso namoro.
- Escuta. Eu gosto de você e sei que vou aceitar ele. – Notava-se que ele não entendia o que era pra ser aceito... - Confia em mim!
Como eu queria que só a confiança dele resolvesse isso. Seria a terceira vez que eu me sentiria insegura com a idéia de alguém ir conhecer meu pai. Ao chegarmos em minha casa encontramos o jardim recém tratado e o regador jogado ao chão, que por sinal ainda estava molhado e bem próximo das tulipas. Mamãe nem chegou a vê-las tão lindas assim e provavelmente que Leonardo nem tenha as notado. Claro que o cheiro do Ravióli que meu pai preparava desviaria a atenção até da mais bela e perfumada tulipa do planeta e o aroma que agora invadia todo o jardim. Além de invejar o vizinho e instigar o paladar também aflorou os tremores de Leonardo que agora começavam a desapontar freneticamente desordenados. Sabia que ele cederia e isso utopicamente começava a me animar.
Ao entrarmos notei que havia uma mala ao lado das escadas. Aquele cheiro esplendido estava por toda a casa e nesse momento nota-se que a tão bem elaborada arquitetura da casa apresentava um pequeno probleminha em dissipar o cheiro de alimentos pelos outros cômodos da casa. Nessa situação foi um erro bem cabível, já que o aroma era agradável, salvo algumas vezes em que eu queimava algo nas minhas frustradas tentativas em prepara algo! Meu pai estava na cozinha e vestia um avental de uma cerveja belga desconhecida, trajava aquelas luvas engraçadas de cozinheiros e um par de sandálias um tanto quanto “mitológicas”. A mesa na copa estava estupenda e havia até mesmo taças de cristal que geralmente meu pai usava para ocasiões especiais em que ele servia o vinho chileno que ele tanto adorava. Acho que a euforia do preparo do almoço fez ele se esquecer de que seus convidados não haviam feito sequer dezesseis anos. Leonardo permitiu que eu os apresentasse:
- Pai, esse é o...
- ...garoto que vai cuidar muito bem da minha filhinha! E eu espero que suas mãos não estejam tremendo assim quando a Laura estiver em alguma encrenca!
Meu pai conseguia ser sempre adorável. Até mesmo com meu primeiro namorado que agora já se sentia mais aliviado e confortável ao ouvir essas palavras.
- ...a propósito, meu nome é Alberto. E não me trate por sogro! Vocês ainda não têm idade para se casarem. – Papai soltou uma enorme gargalhada e todos os tremores de Leonardo despareceram!
O almoço ocorreu perfeito e parecia agora que os dois já se conheciam a anos. Obviamente o vinho deu lugar a um delicioso suco de uva que para quem não degustasse ousaria dizer que se tratava mesmo de vinho, por estar tão bem translúcido naquelas luxuosas taças. Meu pai percebeu que eu tinha encontrado uma boa companhia e se sentia bastante orgulhoso de mim e acima de tudo se sentia satisfeito por ter cozinhado um Ravióli tão suculento. De longe devia ser o melhor que ele já havia preparado! Claro que Leonardo começava a notar que meu pai era um tanto quanto perfeccionista e afeminado, mas preferiu continuar na dele...
Ao terminarmos Leonardo se levantou e foi até a cozinha onde paulatinamente começou a lavar os pratos e talheres que havíamos sujado no almoço. Corri até ele apavorada e disse:
- Olha não precisa se preocupar...
- Laura, eu tenho esse hábito desde garoto e não...
- A nossa empregada sempre limpa tudo...
- Eu nunca tive empregada! Você pode aprender muito sem uma. Dá pra ver que seu pai faz de tudo pra vo...
O tilintar da campainha interrompeu a nossa conversa. Meu pai que nos observava instigado da copa se levantou serenamente e foi até a sala atender a porta. Era seu namorado Cícero e papai não economizou folego naquele ardente beijo ao recebê-lo. Os dois deram as mãos e foram até a cozinha. Senti um frio passando pela espinha seguido de um arrepio breve.
- Leonardo, eu quero que você conheça...
- Tio Cícero?
O espanto foi com todos. Cícero corou e com o impasse não proferiu uma palavra sequer. Meu pai iminente do constrangimento dos dois postou se apenas a observar. Eu que antes me sentia preocupada sobre o aceitamento do homossexualismo de meu pai me via agora forçada a torcer para que uma família não fosse destruída. Quiçá duas. Os olhos de Leonardo lacrimejavam e Cícero já pálido esfaqueou todo aquele silêncio:
- Leonardo? O que você faz aqui...?
- Eu deveria te fazer a mesma pergunta se já não tivesse entendido tudo! Eu estava a conhecer o pai de minha namorada que por sinal parece ser o seu namorado! Disseram-me que você tinha fugido de casa há alguns dias? E o seu noivado com a Carmen, o que vai ser?
- Eu consigo explicar! Já não encontrava mais o que eu queria na Carmen. Aliás, nem em mulher alguma. Você me entende... Eu sempre tentei dizer isso pra ela, mas ela não conseguia ou não queria entender! – Cicero agora parecia mais aliviado ao contrário de mim que estava com as pernas tremulas e suando frio. O único aspecto positivo em tudo é que eu não detectava nenhum sentimento preconceituoso sendo proferido de Leonardo - Olha estou indo agora viajar com o Alberto e ficarei fora por duas semanas...
- De fato tio, você fugiu!
- Não é isso garoto! Você ainda não sabe nada sobre como conseguir felicidade plena! Vai querer abrir mão de muitas coisas quando souber, é muito imprevisível...
- Eu não sei se quero entender! Mas por que fugir assim da Carmen? Isso é covardia... – não conhecia esse lado desequilibrado de Leonardo, mas confesso que ele ficava bem charmoso com essa expressão fechada.
- Covardia ou não estamos de saída! Desculpe-me Leonardo.
Meu pai olhava para baixo e eu o fitei um tanto decepcionada. Será que ele tinha conhecimento que Cícero havia abandonado mesmo essa tal de Carmen? Os dois viraram de costas e meu pai se resumiu apenas em nos dar um olhar que serviria tanto para repreendimento de Cícero ou mesmo de vergonha própria. Leonardo ao contrário mostrava uma visível ânsia de choro e tudo que eu fiz foi o abraçar.
- Eu só queria que você aceitasse meu pai e não que isso tudo acontecesse!
Agora nos dois é que chorávamos e sem nenhum pudor ou censura de ninguém. Senti que aquele abraço carregado de lágrimas seria um dos mais intensos que já tive em toda a minha vida.
Ouvimos o ronco do motor do carro de Cícero e eles nem se deram ao luxo de se despedirem. Espero que essa viagem da qual eu mesma nem tinha conhecimento sirva de reflexão sobre esse conturbado reconhecimento ou algo que o valha.
Meu quarto com certeza não seria o refúgio ideal para nós. Minha bagunça já se acumulava sobre minha cama e o dia estava límpido e ensolarado demais para ser desperdiçado em apenas em uma janela. Fomos para o jardim dos fundos e sentamos nas velhas gangorras azuis. Embaixo de nossos pés não havia mais grama devido ao atrito dos pés para movimentar as gangorras, mas ao redor tudo se mantinha impecável.
- Olha Leonardo, me desculpe pelo papai... Ele não conseguiu se interessar por nenhuma mulher depois a mamãe faleceu e agora opta por esse tipo de vida só pra se saciar, eu não sei te explicar bem como são as coisas. – Comecei novamente a chorar – Eu sinto muita a falta dela. Nos a amávamos tanto! Não imaginava que o Cícero fosse seu tio, se eu soubesse eu nem teria te chamado para almoçar aqui hoje e nem...
- Laura, eu não me importo com isso. De verdade. Não tenho nem preconceitos! Meu único susto foi com meu tio Cícero que abandonou a Carmen de uma maneira meio bruta. Muito da minha personalidade foi formada por ele... Não esperava que ele abandonasse tudo assim! Mas pelo que me parece foi tudo por uma boa causa... Eu não entendo o porquê das pessoas se interessarem por pessoas do mesmo sexo. Aceito tudo numa boa. Mas assim como ele mesmo disse: eles só estão buscando essa tal felicidade plena. Por Deus, eu entendi bem o que ele quis dizer! Eu sempre sinto isso quando estou com você!
Como eu me sentia apaixonada. Não dava mais pra fingir. Seria besteira deixar que esse garoto passar direto por minha vida. Ele se levantou do balanço e secou minhas lágrimas com a manga de seu moletom. Aquele gesto e aquelas palavras me davam tanta segurança que parecia até que meu coração rodava.
- Eu só quero o seu bem e se você quiser continuar comigo, se levante daí, esqueça tudo e venha já comigo lavar o resto daquelas louças na cozinha!
Eu tinha apenas quinze anos e já me sentia totalmente completa.