domingo, 28 de outubro de 2012

Ela será só minha - Caio Machado

Os pingos de chuva coloriam em tons mais escuros do que habituais às calçadas, ruas e pisos por todo o chão. A terra é subitamente umedecida e se torna viscosa, superfícies lisas se tornam escorregadias e perigosas. Meus trajes imundos logo começarão a encharcar e meu vasto e crespo cabelo não absorverá muito da água. A boa notícia é que a tempestade aliviará um pouco do calor e do clima seco deixado em setembro pelo mês de agosto. A má notícia é que eu não tenho teto.
Lembrei-me da ponte situada na avenida que eu saberia o nome se soubesse ler. Pensando bem, ao menos consigo distinguir uma rua de uma avenida. Serão três quadras de um sôfrego caminhar e a probabilidade de meus pertences não molharem e da rua não se inundar é nula. Mais vale um chão seco e duro, do que um chão macio e molhado. Minhas caixas de papelão com meus mantimentos derreterão, mas eu as levarei assim mesmo. Meu cantil já está seguro em meu bolso e um breve gole será um tanto quanto encorajador.
Pés descalços em superfícies alagadas sempre resultam em infortúnios. O primeiro corte foi no calcanhar e o pior de tudo é que eu sempre evitei aquela imperfeição do asfalto. O desespero te confunde e te torna seu pior inimigo, mesmo quando você conhece perfeitamente todo o itinerário a ser seguido. Felizmente meus calos transformaram a sola dos meus pés numa resistente crosta.
Um cão esquelético e ensopado atravessava a rua vagarosamente. A ausência de raciocínio não faz com que a chuva incomode aquele animal errante. Eu provavelmente estou com mais fome do que ele. E olha que minhas costelas nem estavam assim tão expostas. Nem todos os cães conhecem o álcool e seus benefícios relacionados à fome e a dor. Minha luta agora era por um lugar seco para repousar e não por alimentos. Se fosse isso comeria até mesmo aquele magérrimo cachorro.
O sangue do meu calcanhar pintava cada poça que eu pisava. A dor do corte logo foi substituída pela sensação de frio que fazia meu corpo ulcerado tremer. Nas noites frias, as estrelas são como flocos de neve. Naquela noite eu não teria essa singela distração que sempre pulsava congelada no céu. Pior ainda são os banhos que eu sempre tomo por cada carro que cruza meu caminho. Lancei um olhar de desprezo para cada motorista que jorrou água em mim. Praguejei para que seus filhos morressem em uma enchente ou algo que valha.
Queria saber quando foi que o ser humano tomou os mendigos por desalmados e meros objetos de diversão. Garotos que jogam meus pertences em córregos, pessoas que me expulsam de estabelecimentos e já ia me esquecendo dos outros mendigos que roubam minhas moedas na cuia de esmolas. A maldade em si está em qualquer homem, não escolhe a condição em que ele vive. Ao nascer, a sociedade é corrompida pelo homem, e não o contrário.
Minhas únicas aliadas, naquela noite chuvosa eram as marquises de edifícios, que se tornavam praticamente sazonais. Varandas de alvenaria e toldos também são todos bem vindos. Acentuam o frio, mas me deixam menos exposto ao temporal. Árvores são traiçoeiras. Quando não despeja na sua cabeça a água acumulada em suas folhas, estão servindo de para-raios. Evitei todas as possíveis.
Dali já avistava a parte inferior da ponte em que me abrigaria. Ela será só minha. Nenhum dos infelizes que furtavam minha cuia de esmolas estava na área. Aquela ponte era mais suculenta do que um prato feito. Remendava minhas angústias mais do que um trago de conhaque. Superava até o amor materno que nunca tive ao ser abandonado ao nascer. Ela será só minha. Por um instante eu até me esqueci da chuva. Obrigado por me trazer de volta a realidade, trovão.
O maior desafio do trajeto era descer até a ponte. O concreto estava úmido e o lodo se tornou ainda mais pegajoso. Dois passos. Três passos. Ela será só minha. Eu estava quase lá. No quarto passo, o fundo da caixa de papelão cedeu e todos os meus pertences caíram rio abaixo. Dane-se, estou a salvo. Cinco passos, seis passos. Ela será só minha. Já conseguia avistar o local, totalmente seco e mal iluminado. Deitado me imaginava, apenas ouvindo os gritos da chuva martelando o asfalto acima de minha cabeça.
Nem percebi que havia pisado em falso e que agora estava caindo em direção ao córrego. As pedras da barragem me avisaram do ocorrido. A dor na coluna só não é mais gritante do que a dor da fome. Provavelmente quebrei umas sete costelas, quatro dentes e outros inúmeros ossos dos quais eu nunca soube os nomes. E por falar em números, vinte deles serão gastos em minutos para que o nível da água suba e me mate afogado. Nem sequer um velório digno eu terei. Como se algum instante em minha vida paupérrima tivesse sido digna. Amigos e familiares num enterro? Provavelmente a água me enterrará. Permaneço estagnado ao chão contemplado minha última ambição em vida. Ela será só minha.

2 comentários:

  1. Caramba Caio!
    Você me surpreende a cada novo conto!
    Antes de qualquer possibilidade de cansar da leitura, o leitor já se pega acorrentado até o final.
    Maravilhoso! Meus parabéns garoto, meus parabéns mesmo!

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  2. o meu comentário perdeu-se como tantos e tantas coisas na minha impossibilidade digital. não deveria ter abandonado o pau e a pedra. o comentário agora está um pouco vazio da emoção menarca da leitura. Lembro-me, que escrevi alguma coisa sobre o alívio de saber que o autor nunca viveu e nem viverá as desgraças de seus escritos. E nem precisa, o artista vive através da empatia o que os suas criaturas, seus anjos e demônios vivem. avance hijo. mas para o alto!

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