A cidade está iluminada por
luzes amarelas, vermelhas e verdes, que piscam alternadamente ou deixam ecoar
ininterruptamente seu brilho no vago escuro da noite. Bonecos do Papai Noel,
renas e bolas ornamentais de diversas cores completam a decoração aqui e ali,
um clima de paz toma as pessoas, que se abraçam carinhosamente com esperança de
que amanhã tudo será muito melhor do que hoje.
Sempre carreguei esse estranho
costume de isolar-me nas horas mais impróprias. Deveria estar junto aos outros
da minha família, tilintando taças de vinhos, cingindo-lhes em abraços
afetuosos, contando-lhes segredos dessa nada fascinante existência. Mas seria
estranho a eles e a mim, reunir-me quando encontro despedaçado por todos os
cantos, espalhado por todos os lados desse apartamento que lembra algum
resquício de Camila.
Eu deveria ter a esquecido tão
logo bateu aquela porta, uma vez que pouco nos restava de afeto. Mas suas
reminiscências teimam em pestanejar, teimam em deixar-me e minha fuga se faz
nessa solidão. Seria incomodo se alguém fizesse algum comentário sobre ela, e
reuniões familiares são lugares oportunos a isso. Muitos ficaram longe da
cidade durante todo o ano, e agora no natal tentam absorver o máximo da vida de
cada um; não é um desabafo pejorativo, essa preocupação é saudável, revela que
existem no mundo pessoas que se importam conosco, mas nesse caso tudo isso tem
como consequência a estranha sensação de um vazio.
Mudamo-nos para esse apartamento
nos subúrbios mais exclusos da cidade a fim de poder ter um espaço para chamar
de nosso, e desde que partiu não me visto decentemente, ando pelas ruas
trajando bermuda de times de futebol, amassada por uma noite bem dormida,
chinelos e camisas de festividades do meu antigo trabalho. Desfiz-me da ideia
de qualquer móvel inútil, trouxe para cá somente o que há de necessário. A cama
de casal toma quase todo o quarto, era uma de minhas prioridades pois
passávamos noites assistindo filmes no laptop deitados. Camila sempre o
colocava no colo para poder ficar defronte à tela e assim eu me agarrava a ela,
encurvado para poder ver alguma coisa.
Na sala de estar, um sofá velho
de tom amarronzado, uma estante onde guardo meus livros, a TV e um quadro
mosaico que sobrepõe boa parte da parede. Na cozinha a geladeira, o micro-ondas
e um fogão, por sorte já havia um armário embutido. Além desses móveis somente
uma escrivaninha que uso para me dedicar a literatura e um baú onde guardo meus
pertences.
O apartamento é pequeno, mas tem
uma vista espetacular ao pôr do sol. Os raios entram por uma acanhada janela de
vidro e quase tocam os pés da escrivaninha, o efeito que dão junto ao piso de
madeira tecem uma rusticidade convidativa a reflexões que agora se estendem até
o anoitecer.
Nós alimentamos o sonho de ter
um lugar para chamar de “nossa casa” durante todos os anos que cursávamos
nossas graduações. Começamos a namorar no segundo semestre de faculdade,
formamos e ao fim do primeiro mês de trabalho decidimos viver juntos, um teste
a nós mesmos para uma relação mais consolidada. Acontece que quando brigávamos
não tínhamos mais lugar para fugir, a roupa suja ainda estaria lá, alguém teria
de fazer a comida, ir ao mercado fazer compras, pagar as contas no fim do mês....
No início, essas obrigações até nos aproximavam quando estávamos brigados, mas
com o passar do tempo um copo sujo era a terceira guerra mundial anunciada.
Estou com fome, meu estômago
anseia por algo sólido, minha alimentação anda desregrada, abro a geladeira e o
que encontro são garrafas de cerveja e azeitonas, além de uma infinidade de
recipientes plásticos com alimentos mofados e apodrecidos. Há de haver alguma
lanchonete aberta nessa cidade, ou um supermercado talvez, sempre existem
aqueles que esquecem algo na véspera do natal.
Visto uma das camisas que ela
havia me dado, é uma das poucas peças limpas. É um tanto comprida, listrada
alternando o verde e o branco, de ombros largos, talvez destinada a vestir
alguém com ombros muito mais extensos que os meus. Camila tinha bom gosto, mas
sempre errava na numeração. Por determinado tempo as usava para agradá-la, mas
gradativamente com a distância da data crescendo, o uso da peça também se
tornava esporádico.
Na Avenida das Américas encontro
alguns estabelecimentos abertos e pequenas famílias comemorando o natal. No
Bella Italia servem as melhores pizzas da cidade, porém o ambiente é bastante
familiar e parece estar acirrada a disputa por uma mesa, há gente dentro dos
carros aguardando. Nos botequins que se arriscaram a abrir, uma porção de solteiros
bêbados xavecando os opostos ao gênero, mais à frente algumas lanchonetes com
comidas um tanto exóticas e outra com os tradicionais hambúrgueres.
Decido por um xis do Sandão
Lanches, o único lanche que a alface parece ter sido colhida a menos de uma
semana e o pão comprado a menos de um mês na rua que faz esquina as Américas.
Está um pouco vazio, e tudo o que quero é comer com um pouco de silêncio longe
daquele apartamento fétido. Há três mesas ocupadas apenas. Um casal jovem que
espera sem se falar, com ela a olhar para telenovela enquanto ele procura seu
reflexo no piso fosco do estabelecimento, na outra um músico acompanhado de seu
contrabaixo visto o tamanho da case que carrega e por último o que parece um
casal de homens, esses os mais descontraídos se alimentam felizes e se olham
sorridentes, por um momento pude ver a mão de um deslizar sobre a coxa do
outro.
Os funcionários pela falta de
obrigações estão escorados no balcão entediados, um deles vem ao meu encontro,
deixa sobre a mesa o cardápio e coloca-se a esperar, é uma mulher, parece
bonita, está de cabeça baixa e o boné encobre boa parte de sua face, no
restante visível mostra traços delicados, tem lábios pouco espessos cobertos
por um batom sensivelmente rosado, de pele alva, queixo fino, tem cabelos
loiros encaracolados que saem da parte de trás do boné, um corpo magro de
poucas curvas. Percebe que estou a olhar demasiadamente, e por um instante
interrompe o olhar que estava voltado para seu pequeno bloco de anotações,
vagarosamente levanta o rosto, são olhos cor de mel – posso ajudar? – Diz isso
com voz insípida, causa-me fadiga instantânea, e brutamente digo-lhe que desejo
o “Nº 4”, peço para não colocarem ovos e adicionarem bacon, bastante bacon e malpassado.
- O seu pedido sairá em instantes...
Senhor – a pausa e ênfase que ela coloca para pronunciar o “senhor” deixa
explícita sua ironia, aquilo alimenta certa antipatia que creio ser mútua.
Pego o celular, uma ligação
diminuiria o desagrado de minha mãe, o constrangimento em meio aos familiares
que certamente devem ter perguntado sobre mim inúmeras vezes e ela, ora, se bem
a conheço deve ter criado uma falsa história que os satisfaça sem desmerecê-la
e nem a mim.
-Alô mãe.
- Filho, espere um segundo....
Pronto, pode falar, onde você se meteu, está em casa?
- Estou bem mãe, saí um pouco e
estou agora na Avenida das Américas, vou comer algo e volto para casa.
- Meu filho, porque não vem para
cá? Estão todos aqui, seus primos perguntaram por você, a Camila me ligou, não
está com você?
- Escute, eu e Camila terminamos
e bem... preciso ficar um pouco só, não é nada demais.
- Filho você está bem mesmo?
Quando é que terminaram? Onde está Cami...
- Mãe está tudo bem, mais tarde
passarei aí para cumprimentar todos, preciso desligar...
-Tchau meu filho, e se cuide tá?
Nada de sair bebendo e dirigindo, a mãe te ama.
Ora, era o que me faltava,
Camila por essa me paga... veja só que atrevimento, ligar para minha mãe mesmo
estando tudo acabado, já não bastava o sofrimento que me causara?!
Ameaço ligar para ela, tirar
satisfações, mas não, é melhor não.... Que idiota! É tudo o que ela quer, de certo já esperava
que eu não contasse a ninguém e tratou de cuidar que eles soubessem.
As pessoas das outras mesas
estão a me olhar curiosas, menos o músico que devora apressadamente o seu
lanche como se não comesse há dias. Devem se perguntar o que alguém está
fazendo sozinho. Imagine se estivesse com minhas bermudas!
O casal começa uma discussão
curta. Olhando-a mais detalhadamente vi que estava grávida, talvez de uns cinco
meses no máximo, como a única coisa que fazia barulho naquele ambiente era a TV
pude ouvir que ela cobrava o rapaz, entendi que estava desempregado e parecia
não fazer nada para mudar isso. O músico punha-se a levantar logo após sua
carona chegar, deixou parte do lanche por comer, e o outro casal parecia não
ter pressa alguma de ir, comiam e namoravam num compassado ritmo.
A desagradável e bela atendente
torna a minha mesa, traz minha refeição – mais alguma coisa? – Fica imóvel a
olhar-me, um olhar interrogativo e irônico, franzi a sobrancelha esquerda;
agradeço e a despeço.
- Porra, o maldito bacon...
Atendente, atendente!
- Diga, há algo errado com o
pedido?!
- Qual parte do bacon malpassado
e “sem ovos” você não entendeu?
-Como? Como assim?!
- Veja essa porcaria, está
torrada nas bordas e essa gosma branca tomou conta do lanche!
- Senhor, não vejo motivo para
estar exaltado!
- Diga-me então qual a sensação
de comer estes pedaços de carvão! – Nesse instante já me punha de pé com as
mãos fechadas sobre a mesa...
- Olhe aqui seu babaca, eu não
estou na noite de natal, trabalhando para ouvir desaforos vindos de pessoas
como você – temi que ela soubesse quem eu era, e senti-me como um fracassado.
- Eu só queria um sanduíche de
bacon, bastante bacon e malpassado.
O rosto dela ao ver-me sentado
novamente e certo arrependimento em minha voz nessa última resposta aflorou em
sua raiva algo completamente avesso, era como se sentisse compaixão por mim,
então abriu um sorriso.
- Senhor – ela voltou a me
chamar de senhor, e agora isso não me incomodava – trabalho há alguns anos em
lanchonetes e nunca vi bacons diferentes desses que lhe servi.
- Nunca?! – O tom infantil que
lhe pergunto faz seus lábios contraírem num sorriso tão meigo, tão meigo que um
pouco menos de sobriedade faria dar-lhe um beijo...
- Nunca, em todos os anos – ela
responde.
- Então lhe convido para
experimentar o primeiro sanduíche de bacon, sem bordas torradas e com o
verdadeiro paladar de bacon. - Ela sorri, fecha os olhos, procura algo que os
desviassem da face interrogativa, presa no anseio de uma resposta que talhava
agora.
- Claro, podemos marcar algum
dia.
- Agora! – E pegando-lhe a mão
tento conduzi-la, ela em movimento, completamente desajeitada tira o avental, o
boné, e veja que bela mulher tenho em minha frente, por um instante paramos e
ficamos a olhar um para o outro.
- Não, cara, não posso ir seu
louco!
Outro atendente se aproxima
rápido – O que você está fazendo?! Tire a mão dela!
- Está tudo bem Marcos, ele não
está fazendo nada – ela o responde.
- Nada?! Estava te levando para
comer o melhor lanche da sua vida inteira e isso pode não parecer nada agora,
mas pode ter certeza que não irá se arrepender.
- Ficou louca? Não dê assunto
para esse cara, a gente chama a polícia pra ele se não der o fora agora!
Todos os clientes estavam em
silêncio com seus lanches na mão a olhar a cena atônitos. Ela me olha, senti
que toda sua noção de responsabilidade se esvaia à medida que um sorriso
desabrochava...
- Não posso ir, tenho de
trabalhar, deixamos para a próxima?! - Me dê um número que consiga te
encontrar.
- Está tudo bem, vão, isso aqui
está as moscas mesmo. E você fica me devendo o Réveillon – disse Marcos ao ver
que a vontade era mútua.
Enquanto caminhávamos rumo ao
supermercado deliciava-me com os detalhes menos relevantes que ela contara.
Chamava-se Jordana, tinha seus vinte e um anos, estudava nutrição numa
faculdade particular e para manter seus estudos trabalhava a noite em algumas
lanchonetes. Nas segundas, terças e quartas labutava no Sandão Lanches, quintas
e sextas em uma churrascaria na zona sul, aos sábados e domingos ocupava-se com
trabalhos e ao aprendizado de seu curso.
Ela parecia não acreditar na
imprudência que cometera, suas mãos tremiam, tentava não me encarar e
perdia-se, parecia não saber o que fazer com os braços, os passos eram passos
descompassados, mas sorria, um sorriso que revela seu próprio zelo em se fazer
agradável aos olhos alheios. Por várias vezes ela repetia a mesma frase: “Não
acredito no que acabei de fazer! ”, então lhe fitava, abria um sorriso discreto
e dizia-lhe que ademais não havia volta, estava feito. Éramos agora um casal de
boas-vidas.
Adentrei ao supermercado,
enquanto comprava os ingredientes, ela me aguardava do lado de fora do estabelecimento.
Cuidei para que não nos faltasse nada, coisas como cebolas e ovos que nunca
adicionava ao meu caseiro sanduíche, comprei. Escolhi um bom vinho, apesar de
não vir acanhar com a refeição, algumas cervejas de trigo e uma caixa com
chocolates, além de um pacote de preservativos. E pronto, lá se foram meus
últimos reais do seguro daquele mês.
Saí atulhado de sacolas e ela...
onde está ela?! Maldita seja! Deixou-me como um estúpido. Perguntei a um senhor
que passava se a havia visto, ele balançou a cabeça negativamente, maldita seja
mil vezes! Creio que voltara para o trabalho e me deixou a ver navios. Como
posso ser tão tolo, por um momento pensei ter encontrado alguém que
compartilhasse todas minhas esquisitices, e bem... O quão tolo me sentia agora!
Carrego as sacolas até o
canteiro de uma árvore, e começo esfregar as mãos no rosto desesperadamente -
como pude ser tão imbecil?! Por um instante, por um mísero instante esqueci-me
de todos meus problemas, Camila, o emprego, minha família, tudo! Como pude ser
tão imbecil?
Flagro uma gota escorrendo de
meu rosto, que se abaixa em direção ao chão, fico a olhar meu próprio par de
sapatos, a última coisa relevante que comprei visando somente a mim antes de
mudar-me para o apartamento. Meu corpo padece, não posso ir para casa, seria
deprimente depois de uma noite como essa pôr-me a comer só, ver TV só, dormir
só.
Uma mão macia toca meu ombro –
Demorei muito?! – Meu rosto se abre como uma flor que necessita absorver ao
máximo o brilho do sol, então a abraço com toda minha força, corro a mão sobre
seus cabelos...
- Nunca me deixe! – Minha
própria aflição causa-me constrangimento quando a solto e a encaro nos olhos.
- Relaxe, você estava demorando
um bocado, então aproveitei para ir ao banheiro. – Percebo que o brilho do seu
batom está mais reluzente, os olhos contornados por lápis agora estão
mergulhados num preto mais vívido.
- Vamos!
Pelo caminho ela continua a
tecer detalhes de sua vida, contento-me em tempos em tempos dizer-lhe um “uhum”
para mostrar que minha atenção continua presa a tudo que diz.
No apartamento sirvo-lhe um
pouco de vinho enquanto preparo os hambúrgueres. A vida de solteiro dos últimos
dias ensinou-me a preparar os mais saborosos macarrões e os melhores
hambúrgueres. O meu segredo é misturar uma carne macia com outra um tanto mais
gordurosa e adicionar molho para churrasco e assar lentamente, deixando a carne
a uma altura que o fogo a toque levemente. Camada por camada os monto, primeiro
a alface, o queijo cheddar, tomate, a carne, mais uma fatia de tomate e outra
camada de alface e pronto, só falta embutir o bacon. Pergunto-lhe se há algo
que ela não come, então ela me diz que quer ovos.
Com a frigideira já quente
coloco os ovos que tomam uma grotesca forma de farofa e o bacon, bem, o bacon
têm as bordas torradas. Droga! Os ovos grudaram na frigideira e quando coloquei
o bacon as sobras dos ovos aderiram-no fazendo tostar tudo.
- Senti um cheirinho de
queimado, tá tudo bem aí?
- Não como ovos – a respondi.
- São esses os bacons que você
tanto se gabou?! Onde estão as cervejas? Ela era forte, passou imponente por
mim, abriu a geladeira e pegou duas cervejas voltando ao sofá, mudou do canal
de esportes para um sobre animais, tão naturalmente que temesse ser Camila.
Sirvo Jordana e ela retribui-me
com uma carícia nos cabelos, apanho uma garrafa de cerveja e me sirvo, ela
elogia o sanduíche, e nada comenta sobre o bacon torrado...
- Tem uma camisa velha? Está
calor, quero terminar de comer, tirar essa roupa e tomar um banho.
Quando saiu do banheiro parecia
ainda mais linda. Havia soltado os cabelos que agora estavam a cair lhe sobre
os ombros. O cheiro que exalava era inebriante, não há perfume melhor que o
cheiro de um banho tomado. Sua pele, tão perfeitamente lisa, alva e macia fazia
que minhas mãos se perdessem por seus caminhos.
Assistimos uma comédia que
passava na TV, um besteirol qualquer, depois lhe dei uma escova de dente como
convite para que ficasse aquela noite, coisa que ela não hesitou em aceitar,
dormimos juntos, pensei em não abraça-la naquela noite como forma de impor a
mim mesmo um pouco de autoestima, mas ela o fez e se entregou me dando de todo
o seu carinho sem medo.
Na manhã seguinte vi que se levantava,
mas não a acompanhei, que fizesse o que bem entendesse, se tivesse de partir
que fosse assim. Pude ouvir a porta se abrir, mas logo retornou e eu já estava
de pé, havia trago o nosso café da manhã e o mesmo sorriso da noite anterior.