...Certamente com efeitos colaterais.
Uma madrugada bem habitual. Na calada da noite atravessando ruas, éramos muitos e caminhávamos para um encontro, uma infinidade de pessoas semi-nuas, subindo ao topo do mesmo morro. Completamente cativados, absorvidos pelo encanto das duas luas. Só o que não havia era sossego, tudo o que aquela gente não queria. Queriam movimento, ação, e eu desejando a calmaria. De súbito desperto do sonho, já em pé, suspiro ao lado da cama desarrumada, era a pura matemática do sono mais uma vez não resolvida.
Era a rotina do sono, dando trégua ao indesejável e absoluto mundo da insônia. Um lugar cheio de lilás e nuvens, de aroma levemente adocicado, que nessa sinestesia suave faz salivar ligeiramente. A saliva que antecede a sede, a sede pelo desconhecido, a curiosidade e inquietação vem trazendo aquela vontade de abrir uma porta que não existe, mas que ao mesmo tempo está sempre ali, esperando que você faça a si o desafio.
Na intimidade do ser, por instantes aguçam-se os sentidos. E o que por pré-conceito é indesejável, logo torna-se uma situação mágica e em relação a todas as noites subseqüentes, única, estimulante e insubstituível.
Uma situação da qual deve-se aproveitar e sugar o que mais se puder descobrir de interessante. O fascínio da noite, e sedução característica das madrugadas de insônia, que por inumeráveis que possam ser, são intransferíveis em sua individualidade. A partir disso a questão é de escolha, provar da intensidade é por conta e risco – aceitar ou não o prazer da inspiração.
Deliciar-se nessa sensação, com as luzes apagadas, para não atrair atenção, raros são os momentos em que ela vem a tona, mas quando vem, com ímpeto me toma, cabe a mim aproveitar. No escuro, folhas de papel em branco, iluminadas pela brasa de um cigarro mentolado, tomo certo cuidado para não ateá-las fogo.
As linhas se tornam borradas pela fumaça, minha escrita se embaraça, tenho minhas dúvidas sobre às conseguir decifrar amanhã. Entre tossidelas e pigarro alheio, tento prestar atenção ao silêncio, sapatos de salto tocam o chão, não há quietude bastante para a minha inquietação. Mas nesses momentos de liberdade e solidão, os poucos minutos que sempre me restam, até hoje nunca foram em vão.
Um fugitivo ansiosamente procurado, em geladeiras, em cigarros, num copo de leite morno, num calmante, ou em filmes com temáticas chatas o suficiente para lhe projetar tão logo de volta à cama, sem defesas, rendido,no lugar onde deveria estar.
Se a estratégia do tédio não funcionar, cabe tentar algo mais ousado, desafio para os experientes, consiste em experimentar algo excitante o bastante para esquecer-se do estado de insônia. Normalmente tento a segunda opção - movo-me até a sacada, sento-me em uma cadeira de praia qualquer e no escuro permaneço, com uma xícara de vidro generosa, chá quente de capim-limão.
As linhas já não estão tão escuras mais. Meus olhos acostumados à pouca luz, já não precisam da brasa dos meus cigarros. Foi em vão o cuidado para não deixar-me notar, percebo que alguém me observa, um vizinho ao lado numa infeliz curiosidade, e pelo jeito não vai parar. Tenta esconder-se atrás de seus cigarros, arruinando meu momento íntimo e raro. Entre a folha de papel e a caneta, um vácuo já tratou de se criar. O turbilhão de idéias e pensamentos que mal começara, estava prestes a esvair-se das minhas mãos. Mal sabe ele como o odeio, por afugentar meu raro sopro de inspiração.
Como se não bastasse a presença humana para afastá-la, o sereno frio começa a arrepiar-me os pêlos finos dos braços, e a fagulha de inspiração se apaga sem deixar fumaça. Vou-me embora daqui, entregar-me ao mundo dos sonhos, ao tão sonhado sono, e ai de mim que desafio o sol, que impiedoso e pontual logo virá carregando o dia.
Um barulho estridente me assusta, a caneta rola até um par de pés frios, prendendo-se a minhas solas branquelas, que logo estariam molhadas pelo chá quente de capim limão. A xícara de vidro vai ao chão, os estilhaços rompem a pele no momento do atrito. A pele que era branquela agora parece avermelhada e ferida, a insônia que era só minha, agora estava dividida.
Uma ladra de noites, embriagada de inquietação. Como se não me bastasse engolir o próprio sono, bebo goles generosos do sono alheio sem querer. Noites de sono que talvez já haviam se perdido, como o meu, a uma porção de horas atrás.
A luz da lua refletia-se nos estilhaços, paro por aqui com minhas letrinhas feias de tinta azul em itálico. A cama desfeita nunca me pareceu tão convidativa, um ser humano vivendo ao contrário, e lá fora nascia mais um dia, atribulado enquanto eu dormia. A sedução da madrugada, o fascínio da meia luz, ou algo desconhecido que atraí para o nada. O nada em que encontro tudo, o tudo de um mundo que ninguém mais vê, mas traduzido através das minhas linhas se pode sentir pelo que se lê.
E os efeitos colaterais? Já dizia um velho amigo, que a inquietude é a essência da obra-prima...
Maele adorei o seu texto!
ResponderExcluirPudera eu hoje numa noite de insônia criar assim como você. Agora em noites da minha juventude já escrevi por horas no escuro, pois cansava de ouvir a mamãe me dizer: apague o luz.