sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Toco de madeira - Caio Machado

Baseado em fatos reais.

Decrépita em seu vestido magenta. Assim se encontrava Darlita ao atravessar a rua. Ela estava na cidade para ver sua filha Arabella, que daria a luz a gêmeos em algum dia não muito distante daquele. Andava tão devagar que mal chegou a tempo de ouvir o disparo. A vizinhança era muito silenciosa e reservada, não se preocupavam com nenhum transtorno ou conflito causado por ali, talvez fosse esse o motivo de tamanha indiferença com aquele estrondoso tiro.
A casa de Arabella era a última da rua. Darlita abriu a cerca e sem pressa caminhou pela passarela até se postar debaixo do alpendre da casa para tocar a campainha. O jardim contava com uma enorme variedade de tulipas e ostentava um gramado esplêndido e extremamente bem cuidado. Tocou a campainha uma vez. Duas vezes. Três vezes e nada de ninguém atender. Pelos fundos da casa ele já saia covardemente e corria em direção ao enorme manguezal. Darlita começava a ficar com um mau pressentimento com o vazio da casa e resolveu ir para os fundos da casa. Era aquele tipo de previsão que só as mães conseguiam sentir. Sequer notou o portão dos fundos aberto e foi logo se dirigindo até aquele velho toco de madeira que tanto serviu de assento para Arabella e que agora seria de grande utilidade para que ela adentrasse na casa.
Havia quatro círculos indicando a idade daquele tronco de carvalho. Com grande dificuldade ela o rolou até a janela do quarto deles. Chegar até aquela idade exigia certos cuidados com a saúde e com certeza aquilo lhe renderia um mês de dores na coluna. Darlita estendeu a saia do vestido pra cima dos joelhos e levantou a perna direita. Não obteve sucesso. Tentou com a perna esquerda, mas falhou também. Enfim retirou suas sapatilhas e pegou um impulso de três metros. Correu o que pôde e saltou pra cima do toco. Sucesso! Porém o que ela veria agora seria tudo que ela jamais gostaria de ver, principalmente depois desse enorme esforço que seria desperdiçado e destruído através daquilo que suas retinas cansadas estariam a presentear.
Arabella estava escorada de pé na parede esquerda ao lado da porta. Tinha seus olhos abertos e mortos fixados no velho lustre no teto. O tiro no peito manchava o seu vestido branco e surrado. Mas o que realmente espantava era ver o sangue que saia de seu ventre e o movimento dos bebês ainda vivos dentro na barriga dela. Darlita suspirou e desmaiou caindo do toco e acertando em cheio o gramado dos fundos da casa.
[...]
Quando Darlita acordou, já havia ambulância e polícia no local. Os até então discretos vizinhos abarrotavam o gramado destruindo o jardim que Arabella cultivava com tanto cuidado enquanto viva. Uma vida de zelos e carinhos. Destruídas por um covarde que não sabia lidar com o amor demasiado de sua esposa e pelos desnecessários e doentios ciúmes que sentia por ela. O para-médico com muita dificuldade e pesar conseguiu dizer para Darlita que Arabella fora assassinada no exato momento em que o parto começaria. Aterrorizada Darlita desmaiou novamente e uma enorme áurea de tristeza parecia pairar por toda a casa.
O velório seria ali mesmo na sala de estar, o caixão já estava colocado no centro e os dois filhos de Arabella choravam ao redor do mesmo. Darlita voltara a si, mas não se dava por convencida com aquela situação e se isolou nos fundos da casa sentada sobre o toco de madeira. Mal sabia ela que ali mesmo em cima do manguezal Murilo os observava e estaria ali desde a cena do crime. Ele não havia abandonado seu posto e observava calmamente todo o movimento que acontecia naquela casa que ele próprio acabara de amaldiçoar. Sua única distração era lustrar seu 32 com a borda de sua camisa. Ele fez com que a arma se mantivesse quente desde o momento do disparo, nem mesmo colocou-a de volta em sua algibeira. Não se passava nada em sua cabeça, nem sequer queria fugir, não existia sequer qualquer arrependimento pela banalidade que cometera.
Murilo Dantas era um relojoeiro muito respeitado na cidade, projetava vários modelos de relógios, que inclusive a própria Mont Blanc encomendava. Conheceu Arabella ao comprar biscoitos de polvilho doce de sua mãe Darlita. Ela tinha apenas dezoito anos e já ostentava uma beleza incrível. Murilo tinha trinta e dois anos e por dispor de uma boa posição social não obteve dificuldade em arranjar aquele casamento com Arabella. Pedro e Marta foram seus primeiros filhos que agora aguardariam os gêmeos que Arabella daria a luz no próprio dia do seu assassinato. O para-médico evitou a cesariana, pois sabia que as crianças não sobreviveriam. Os três foram velados e enterrados juntos. Era a única filha de Darlita. Arabella nem conhece seu pai que morreu de pancreatite. Foi o assassinato triplo mais trágico que aquela cidade presenciaria.
O desespero insistia em perseguir Murilo que já era procurado como suspeito assassinato da esposa. Sua relojoaria estava interditada e nenhuma estalagem da cidade poderia abrigá-lo. Eram ordens restritas da polícia. Dois dias depois ele mesmo se entregou ao delegado que por sua vez era primo de Arabella. A sova e surra que ele levou seriam indescritíveis e tampouco serviriam para aliviar a dor que todos estavam sentindo por aquela perda. Ficaria preso pelo menos nos próximos dez anos.
Pedro e Marta foram para um colégio interno, onde permaneceriam até que formassem. Darlita enlouquecia e passara a viver nos fundos da casa de Arabella. Apenas desperdiçando suas horas de vida sentada no toco de madeira que agora está posicionado em um ângulo que possibilita vista tanto para o manguezal e quanto para a janela do quarto de Arabella e Murilo.
Revisão: Mariana Takagui

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Bandoleiro Mexicano - Henrique Donancio

Os últimos raios de sol tocavam o solo rubro do norte Mexicano. O vento frio trazia os animais da noite para a caça, famintos. A pedra da Rapina Apanhadora de Cobras já desaparecia dos horizontes visíveis, ocultada pela escuridão desértica. Os últimos copos de tequila se esvaiam, embalando corpos rumo ao gozo do final de mais um dia. E o último bandoleiro posto fora de um teto empunhava seu violão no instante em que o último candeeiro se apagava. O chamavam por Suarez, mas de fato, ninguém sabia seu verdadeiro nome. Trazia consigo um rifle atravessado ao tronco, uma garrucha empunhada na cintura além da peixeira que de vez ou outra, nos intervalos das canções, cortava um fumo para o deleite do violeiro. Diziam que na infância foi justamente a mesma arma que talhava agora o tabaco que atravessou o peito do pai de Suarez, um golpe diferido por suas próprias mãos. Se segurasse o cabo em linha reta a lamina apontava para as estrelas, era causa da força empenhada pelo menino de doze anos que estraçalhou o coração do seu genitor. Aos quatorze, abandonou sua família e juntou-se ao grupo de Martin Santiago. Aprendeu com o chefe do grupo a manusear uma pistola como poucos em todo domínio da antiga província de Virgem de Guadalupe. Martin o tinha como um filho, pois o menino sempre calado poucas vezes era visto fora de sua companhia. Romperam os laços paternais quando em um saque na Vila de Mariachi, Suarez deflagrou o líder estuprando uma garota por volta de onze anos. O facínora ria desvairadamente até perceber que seu filho o fitava, aproveitou e ofereceu o corpo da ninfa para seu proveito. O bandoleiro caçula do grupo ficou alguns minutos imóvel, olhava para o desespero da menina com frieza, ela derramava lágrimas e berrava incessantemente, seu órgão transbordava de sangue que corria entre as pernas, tangeu um olhar para o pai da menina que era surrado por um dos capangas e para a mãe que estava sendo segurada por outro aos prantos. Num súbito segundo sacou a pistola e deu um tiro bem no meio da testa de Santiago. Antes de o pegarem, o as balas que restaram no tambor derrubaram mais três do bando. Ruiz que era o sucessor do chefe mandou ferver água quente e atirou sobre os olhos de Suarez. Desde então ele se encontra no vilarejo, o mesmo em que estupraram uma criança, mataram um chefe e o cegaram. Passa seus dias entocado entre os cactos do deserto. Alguns dizem que ele não vai só, vai também uma cobra criada, que rasteja produzindo ruídos por onde passa por modo do cego perceber o que tem pelo caminho, e uma águia que procura água e alimento para o mestre. Águia e cobra andam juntos, uma trepada no braço e a outra escorada no ombro do homem. Dá pra ver as garras do animal desenhadas em seu corpo e não a vestimenta que não se estraçalhe em sua espádua. Vez ou outra Maria Rita que nunca se casara, leva as sobras do jantar para ele, numa tentativa de recompensar quem um dia tentou salvar sua honra. Ele nunca come, deixe para os carniceiros do deserto, na maioria ratos, que depois do banquete são devorados pela cobra de estimação. A natureza o fascina. Todas as noites em que essa cadeia alimentar acontece, ele sorri. -“Não é incrível?”- perguntou certa vez para Maria, uma das poucas pessoas que troca palavras com ele. Os moradores não o receiam, pelo contrário, o idolatram. Desde sua estadia, nenhum grupo de bandoleiros conseguiu se safar da sua perversidade. Eram dez, quinze, vinte homens armados até os dentes contra um cego e meia dúzia de comerciantes. Seu único pedido em troca da proteção é que deixassem os corpos apodrecerem na terra. E ali os deixavam. O cheiro fétido alastrava-se por toda parte até a natureza começar a agir efetivamente. Explanava que os corpos iam descansar, junto ao calor das crostas mais profundas da terra. Falava também que um dia se juntaria a eles, e que Santiago seu bom pai iria mandar a mulher mais linda de todo o México para buscá-lo, ele a devoraria enquanto o próprio trataria de lhe pregar um pipoco nas fuças.

Proposta

A Barganha Literária surge com o propósito de publicação semanal de contos escritos por dois amigos que nadam contra a correnteza das redes sociais que cada vez mais vulgarizam a juventude que cada vez mais se encontra "iliterária". Com influências contemporâneas buscaremos difundir textos que usufruem de caráter realista, passando pelo surrealismo até chegar ao modernismo. Não queremos nos eternizar como poetas, mas sim promover um pouco de diversão que nem o cinema e tampouco a TV conseguem te fornecer, uma vez que o lirismo coloca a sua imaginação a toda prova.