“Feche os olhos e
ouça com atenção.
Escute uma música que só existe em você
e cante esta canção”.
Escute uma música que só existe em você
e cante esta canção”.
Augusto Branco
Vamos
começar. Bem suave. O segundo movimento do Inverno de Vivaldi. Sim. Perfeito.
Violino principal, sole como se estivesse andando sob a chuva leve. Violinos
secundários, façam o pizzicato,
imitando os pingos do chuvisco. Isso... muito bom. Andréa, você está rápida
demais. Desacelere. Agora sim. Magnífico! Estupendo! Isso. Desse jeito
estaremos prontos para tocar até mesmo no Châtelet... O quê?! Ahn?! Quem é
você?! Droga...
(...)
Está um dia chuvoso. Eu gosto assim. Principalmente para
ficar sentado nos bancos da Praça Sérgio Pacheco. Uberlândia faz tanto calor
que os dias nublados são uma bênção. Na maioria das vezes, evito pisar em poças
d’água, com medo de serem pessoas derretidas. Você pode rir, porém é verdade. Mas
vou parar de reclamar. Por mais que seja uma característica dos velhos ―
reclamar de tudo ―, fiz uma promessa para minha neta que pararia de por defeito
nas coisas ou dizer que os tempos antigos eram melhores. Prometi parar de
dizer, mas continuo pensando assim.
Na minha adolescência, os Beatles e os Rolling Stones
estavam começando a fazer sucesso. Quando me casei, Richard Clayderman e Kenny
G tocavam as músicas românticas mais emocionantes. Minha neta ousa dizer que
One Direction é melhor. Que blasfêmia! Aqueles guris?! Melhores que o John
Lennon, Mick Jagger e outros mestres da música?! Mas os tempos mudam. As
opiniões também.
Quando me formei na escola, meus pais não interferiram na
minha decisão sobre que faculdade ou curso deveria fazer. A única obrigação era
estudar francês. Hoje, sou grato a isso: dou aulas de francês numa escola
chamada Flexion, na Alberto Alves Cabral, perto da UFU – Santa Mônica.
Na faculdade, estudei música. Mais especificamente,
violino. Foi a melhor época da minha vida, pois conheci duas pessoas que
mudaram minha história: Andréa, minha querida Andréa; e Antônio Vivaldi.
Começo a sentir frio agora. Deixo meus livros de francês
no colo e coloco minhas mãos deformadas por causa da artrite dentro do bolso.
Andréa costumava esfregá-las até ficarem quentinhas e depois as beijava. Era
bom. Sentir seus lábios finos sobre minha pele. Quando a vi pela primeira vez,
nunca havia imaginado que nos casaríamos. Na verdade, acho que me escolheu por
causa do francês. Ela brincou comigo sobre isso duas ou três vezes e, mais uma
vez, agradeço meus pais por terem-me obrigado a estudar essa língua.
Lembro-me que eu havia me destacado de entre os alunos. O
professor me perguntou se eu tinha a intenção de ser maestro. Eu disse que sim.
Seria uma honra para mim.
― Então, Levi ― o professor disse ―, se prepare. Daqui a dois meses tocaremos Vivaldi num concerto. Você será o maestro.
― Então, Levi ― o professor disse ―, se prepare. Daqui a dois meses tocaremos Vivaldi num concerto. Você será o maestro.
“As Quatro Estações”. Era quase uma hora de concerto. Os
tons mudavam a cada estação. Começava em Mi Maior na “Primavera” e terminava em
Fá Menor, no “Inverno”. Tinha muita coisa a ser feita, pelo que me lembro.
Estudei as partituras durante três semanas. Ensaiei com a orquestra durante o
resto do tempo até chegar o dia do concerto. É claro, Andréa era a violinista
solo. Formávamos uma dupla muito boa no palco.
Hoje, a única coisa que me resta é a saudade. Está aí
mais uma razão de eu pensar que o passado é melhor que o presente. Andréa
morreu de câncer no estômago há 7 meses. O meu ortopedista me proibiu de tocar
violino por causa da artrite. As melhores coisas que aconteceram na minha vida
na época da faculdade, agora são só resquícios de uma outra era, bem distante
dessa em que vivo hoje.
Mas ainda ouço o violino. Tantos anos tocando me fizeram
decorar seu som e suas variações. Minha neta me deu um celular e, para me
agradar, colocou música clássica na minha playlist.
Ganhei um fone de ouvido também. Pego meu aparelho celular e conecto o fone
nele. Dou play na Chuva de Vivaldi e
começo a devanear. Eu sei que vai acontecer. Sempre acontece e não me importo
de estar em um lugar público.
Eu fecho os olhos. A melodia os faz lacrimejar. Aprumo
meu corpo na posição de maestro e começo a reger. Em minha mente, Andréa está
ali, solando. Ela, estranhamente, está tocando rápido demais e peço para que
desacelere. O restante da orquestra também está presente. Leopoldo, Angélica,
Luís... Peço para que larguem os arcos e façam o pizzicato. É o diferencial da música, pois caracteriza bem o som da
chuva. Está tão bonito. Tão perfeito. Mas parece que alguém está se
aproximando. Sinto alguém tocando em mim, tirando-me do meu devaneio.
Abro os olhos:
― O que?! Ahn?! Quem é você?! Droga... ― Eu digo.
(...)
É uma jovem. Deve ter cinco anos a mais que minha neta e não se
parece nada com ela. Faz-me lembrar de alguém do meu passado. A jovem está
escrevendo algo num pedaço de papel.
― Excusez-moi, monsieur. ― É o que ela escreve. ― Je peux me asseoir avec vous?
― Excusez-moi, monsieur. ― É o que ela escreve. ― Je peux me asseoir avec vous?
― Oui. ― Eu respondo. Ela sorri. Eu estou pensando: por
que escrever ao invés de falar? Talvez seja surda e muda. E que pergunta era
aquela? “Com licença, senhor, posso me sentar com você?”. Ora, o banco está
numa praça pública! É claro que sim.
Ela se arruma no banco e volta a escrever. ― Se il vous
plaît, pardonnez-moi. Je suis sans voix.
Está explicado. A guria não é surda nem muda. Está
somente sem voz. Olho para ela e tento reconhecê-la, mas não se parece com
nenhuma de minhas alunas no Flexion. Nem com aluna nenhuma daquela escola. Os
livros de francês no meu colo entregaram que eu falo a língua dela.
Pergunto de onde ela é e o que está fazendo. Primeiro,
ela diz seu nome: Helene Laurient. Pergunta pelo meu: “Levi”, digo. Somente
depois disso que ela responde minha pergunta. Ela é de Tolousse, na França e
está em Uberlândia por causa do namorado. Bom, ex-namorado, ela corrige. Haviam
se conhecido num intercâmbio em Berna e estavam juntos há um ano e meio. Ela
havia chegado essa madrugada, de surpresa, e o pegara com uma menina dentro do
carro dele, em frente à casa do ex. A passagem de volta é só dali a uma semana.
Está sem lugar para ficar.
― Quand je suis nerveux, ma voix échoue. ― Helene rabisca
rápido no seu papelzinho, explicando que quando fica nervosa, sua voz falha.
Olho para ela. Seus olhos são verdes e os cabelos,
loiros. Pintados, percebo. Tem duas pintas no pescoço. Não usa maquiagem, mas é
óbvio. Depois de uma longa viagem e uma madrugada triste, que mulher estaria
maquiada? Começo a perceber com quem ela se parece. Ela é parecida com minha
esposa. Com a minha Andréa. Estou a devanear, novamente. Eu regia para ninguém
há dez minutos, imaginando minha esposa e, de repente, abro os olhos e me
deparo com uma francesa que se parece com Andréa! Que louco. Faço uma nota
mental para lembrar-me de parar de tomar os remédios tarja preta.
Mas... não. Não pode ser. Não creio em reencarnação nem
em pessoas que voltam do além. No entanto, eu queria acreditar que era ela. Que
ela havia voltado para mim através da música de Vivaldi.
― Aimez-vous jouer à personne? ― Recebo mais um bilhete.
Eu rio. Ela está perguntando se eu gosto de tocar para ninguém. Respondo-a que
não estava tocando e sim regendo e que não, não gostava de reger para ninguém,
mas aquilo acontecia sem que eu percebesse.
Ela tenta rir, mas está sem voz. Helene me olha e seus
olhos estão brilhando, da mesma forma como os de Andréa faziam e isto me dói.
Quero que Helene vá embora para eu parar de sofrer. Para eu voltar a reger uma
orquestra e uma Andréa mentais. Mas existe um motivo para tudo. Helene não saiu
da França somente para ser largada pelo ex-namorado. Novamente, olho para ela e
digo:
― J'ai faim. Et vous?
Ela confirma. Está com fome.
(...)
Normalmente, não como em lanchonetes, mas faço uma
exceção por causa de Helene. Ela toma Pepsi e eu, café. Ela está comendo a
segunda coxinha e eu, um pão de queijo. Sei que vamos ter azia em meia hora. O
silêncio entre nós é divertido. Os olhares dizem tudo. Ela está cansada de
escrever, então, comunicamo-nos por leitura labial e olhares.
Ela é inteligente, percebo. Sussurra que estuda Economia
e que sonha em fazer diferença no país. Coleciona quadros de Tolousse-Lautrec
como hobby e pretende aprender algum instrumento. Nada barulhento, acrescenta
ela. Talvez piano. Quem sabe, violino. Até brinca com a possibilidade de eu
ensiná-la. Minha neta tem muito a aprender com ela.
― Vous devez me apprendre le violon. ― Helene escreve de
novo. ― Se il vous plaît. ― E faz uma carinha de “pidona”. Ela quer que eu a
ensine violino.
Olho minhas mãos deformadas. Relembro os momentos de
glória da minha juventude. Todas as lamentações e murmurações da minha velhice
são devidas ao fato de não poder mais tocar e aqui está minha chance. Helene me
olha, cheia de expectativa.
― Oui. ― Respondo, aceitando o convite.
(...)
Tenho dois violinos Stradivarius em casa. Estão
empoeirados, talvez até com teias de aranha. Aviso Helene para não esperar
muita coisa de um velho como eu. Ela sorri gentilmente e diz que sabe que eu
sou bom. Fico a me perguntar como ela sabe disso, mas deixo para lá.
Pego os instrumentos e limpo a poeira. Sou lento, mas ela
parece não ser impaciente. Vou à cozinha e pego uma colher e mel. Ofereço para
ela, dizendo que vai fazê-la melhorar.
―
Mercì, monsieur ― Ela agradece.
Toma
o mel e sussurra que está pronta para as lições. Faço exercícios com minhas
mãos. Os dedos estalam. Ela também exercita seus dedos. Pego o violino. Pareço
não ter mais o jeito. Acho que esqueci como se segura. Helene se levanta da
cadeira de onde está e coloca o violino na posição correta para mim. Pergunto-a
como ela sabia e a senhorita Laurent simplesmente sorri e escreve que viu na
televisão francesa. Precisamos de algo educativo na TV brasileira, penso.
O
arco, em minha opinião, é a parte mais chata. Tem de ser firme e delicado ao
mesmo tempo. Demoro um pouco para pegar o jeito, mas, logo, estou tocando.
Lento, mas bem. Afinado, o que é mais importante. Estou de olhos fechados, mas
sei que Helene está sorrindo a me ver e me ouvir. Não toco Vivaldi. Seria
demais para mim. Toco Ode à Alegria, a 9ª sinfonia de Beethoven. Fácil, mas,
na minha atual condição, a única coisa que me importa é me sair bem e não
passar vergonha.
Pego
o outro violino e o entrego a Helene. Conto a ela os nomes das partes do
instrumento: alma, cavalete, espelho, ouvidos, estandarte... Ela tenta falar e
um fiapo de voz sai de sua boca. Eu rio de satisfação. Definitivamente, ela não
havia vindo ao Brasil simplesmente para ser largada. Na verdade, sua missão,
mesmo que não soubesse, era resgatar este velho da caverna e da desgraça.
Digo
os nomes das cordas. Mostro-a como pegar no arco. Ela põe o violino no ombro.
Espero ela me pedir para ensiná-la alguma coisa, porém, ao invés disso, ela
começa, suavemente, a tocar A Chuva de Vivaldi.
Estou
parado. Congelès. Isso não é
possível. Ela me pediu para ensiná-la, mas..
Mas...
Mas
ela está, tão divinamente, tocando, seus dedos viajando pelas cordas. O
movimento do arco é tão perfeito. Ela me olha, sem parar de tocar. Estou
chorando e ela ri. Gargalha. Sinto meus pelos arrepiados.
Helene
Laurient termina e fixa seus olhos em mim. Parece estar se divertindo com tudo.
Ela é tão bela.
―
Andréa... ― Sussurro.
Ela
nega com a cabeça. Diz que não é Andréa. Aproxima-se de mim. Abraça-me. O
cheiro é conhecido. Convivi com essa fragrância por tanto tempo.
―
Andréa... ― Novamente, sussurro.
Helene,
novamente, nega. ― Je ne suis pas Andréa. Mais, si vous voulez, je peux être
elle. Pour vous rendre heureux.
Dessa
vez, a voz verdadeira dela saiu. Era como a de minha esposa. Ela continuava a
dizer que não era Andréa, mas, se eu quisesse, ela poderia sê-la, para me
deixar feliz.
Estou
soluçando.
―
Êtes-vous ok? ― Helene pergunta.
―
Sim, estou ok. Mas emocionado.
A
música a trouxe de volta para mim. Eu a toco e ela não se afasta. Sinto seu
cabelo, sedoso e macio. Ela tem um olhar misterioso, fascinante. Poderia olhar
para ela por horas. Por mais que negue, eu sei que é ela. Só pode ser ela.
Conversamos
por horas. Fiz chá matte, mas ela recusa, dizendo que só toma Namastea. Rio da brincadeira que ela faz
com as palavras indiana e inglesa. Pergunto, mais uma vez, se ela não é minha
esposa. Helene se levanta da cadeira, guarda o violino, arruma a roupa e diz:
―
Adiéu, mon ami. ― E desaparece, como se nunca houvesse existido.
“Adiéu”,
eu digo, certo de que nunca mais tomarei tarjas pretas.
* Para escutar a música base deste conto, clique no link abaixo.