sábado, 13 de agosto de 2016

Quatro passos até ela - Paulo Cesar Corrêa

Álvaro relia, cada vez mais atento, o excerto de um poema de Pablo Neruda que estava escrito à caneta na contracapa de um livro que ganhara de presente. Normalmente, as pessoas escrevem declarações que vão te deixar animado ou feliz, afinal de contas, os presentes são para isso.
Recordava-se perfeitamente bem da cena: era sua despedida de solteiro. Algumas bebidas, música alta, conversa fiada. Ariel estava ao seu lado, um embrulho na mão. Disse que era um presente valioso para o futuro. “Para quando te deixe aquela zorra”, falou com um forte sotaque andaluz, entregando sua origem sevillana e depois, desatou-se a rir.
Todos ao redor riam. Tinham por certo que aquele matrimônio estava destinado ao fracasso mesmo antes de começar. Mas Álvaro não cria assim. Era crente demais no amor. Ou talvez cego demais. Abriu o embrulho, descobrindo um livro. “Que idiota”, pensou. Quem dá um livro de presente numa festa de despedida de solteiro? Passou os olhos no título: 4 passos para se reerguer depois dos chifres.
Que droga de livro era aquele?
Leu mais uma vez a citação na contracapa. “É tão curto o amor, tão longo o esquecimento”. Ariel deve ter passado horas na internet buscando essa frase. Ele não fazia o tipo que lia Neruda.
Deixou o livro na mesa de centro da sala e se levantou. Olhando ao redor,  podia perceber o quanto a casa havia mudado; a ausência de Daniele enchia os cômodos. Ao se pegar desta forma, Álvaro se lembrou de uma pequena crônica – mais para uma prosa poética – em que Dalton Trevisan narra a falta de sua “senhora”. O vaso de plantas que ornamentava uma esquina da sala já não existe mais. O frescor de uma casa limpa havia dado lugar a um cheiro de murrinha. A geladeira, que antes vivia cheia de legumes e frutas, transbordava de hambúrgueres Hot Pocket da Sadia. Talvez comesse um antes de dormir.
Por que ela o havia traído? Tinham construído uma boa vida juntos ao longo dos cinco anos de casamento. Um apartamento, carro, viagens caras de férias, plano de saúde. Os filhos não vieram por culpa de um nódulo no útero de Daniele, mas há algum tempo vinham discutindo a opção da adoção. Era como se a história deles fosse uma declaração de amor escrita na areia da praia, que logo desaparece quando sobe a maré.
Mas também tinha sua parcela na culpa. Gastava horas na agência de publicidade e, vez ou outra, levava trabalho para casa. Ademais, havia relaxado na aparência: não estava gordo, pelo contrário, parecia um esqueleto. Estava careca, a barba já com pontos grisalhos. Seu guarda-roupa havia parado nos anos 90, com raras mudas modernas.
Álvaro foi à geladeira, pegou uma Schweppes e, após dar um gole, voltou à sala, ao sofá, à mesa de centro, ao livro. Lembrou-se de Ariel. Aquele andaluz o havia avisado. Todos o haviam, mas, como disse Rubem Alves, todo apaixonado é tolo, sempre dizendo “o meu caso é diferente”.
Abriu o livro, lendo, pela enésima vez, o trecho de Neruda. Aquela frase era verdadeira na sua vida. O amor entre eles havia sido curto, mas o período de esquecimento estava se tornando fastidioso, mais longo do que ele gostaria que fosse. Já se haviam passado seis meses de luto e melancolia e algo deveria ser feito. No momento, a única ideia que o veio à cabeça foi ler o livro.
Mas não…
Ele não podia se entregar a tal coisa, a um livro de autoajuda. Porém, ao lembrar que, a essa hora, Daniele podia estar se divertindo com aquele desgraçado, Álvaro decidiu que a recuperação seria sua vingança.
Ao virar a página para começar a ler, Álvaro pensou: “Que seja!”
(...)
Passo 1: Extravase sua raiva com um grito
“A catarse. A liberação das emoções e tensões reprimidas.”
Assim começava o primeiro passo. A Álvaro, tal ideia o pareceu uma tonteria. Havia sido ensinado a engolir a raiva, a sorrir mesmo quando estivesse prestes a explodir.
Mas não podia recusar uma chance de, por fim, por para fora aquele nó que estava preso em sua garganta. E era algo simples. Mais fácil do que mergulhar sete vezes no Rio Jordão para ser purificado da lepra, como teve de fazer Naamã, comandante do exército sírio.
Álvaro foi à sacada. Percebeu que o céu carregava uma nesga de lua e que estava pintado com uma aquarela de cores com várias nuances de azul. Ficou ali um tempo, a contemplar; a se preparar para o grito, para a catarse. Mas antes, algo o pareceu deter, a boca entreaberta. Fechando os olhos, Álvaro sussurrou algo, como se estivesse jogando versos ao ar, esperando que o vento levasse seu sussurro. “Posso escrever os versos mais tristes essa noite: eu a quis e ela, às vezes, também me quis a mim”. E ao terminar essa frase, gritou com todo o seu ser, deixando jorrar a raiva e a melancolia que afogavam sua alma.   
(...)
Passo 2: Deixe de ser o idiota que era e dê uma reciclada

Álvaro parecia ter 25 anos sem barba. Nada mal, pensou. Enquanto tomava banho para ir ao trabalho, fez uma nota mental das coisas que teria de mudar para deixar de ser idiota. Suas roupas, logicamente, estavam no topo da lista. E se não quisesse ser um magrelo com barriga, teria de largar mão de comer esses Hot Pockets e ingerir coisas mais saudáveis.
Vestiu o blazer mais arrumado que tinha sobre uma blusa cinza. Pôs-se uma calça jeans semi-desbotada e um par de mocassins pretos. Olhando-se no espelho, não parecia tão mal assim.
Já no carro, em direção à agência, se pôs a lembrar da noite anterior e do grito de liberdade. De fato, um peso havia sido tirado dele e, se soubesse que seria tão simples se livrar daquele incômodo, já o haveria feito antes.
Ligou o rádio. Músicas aleatórias eram tocadas, passando por vários estilos, desde blues até sertanejo universitário. O trânsito estava lento, mas, por sorte, o dia não estava abafado e Álvaro ainda tinha tempo de sobra até chegar ao trabalho.
Começou a observar os detalhes da cidade: calçadas desuniformes, carros de todas as cores e marcas. Uma senhora andava com uma sombrinha aberta, protegendo-se do sol. Mais à frente, um viaduto se mostrava, também cheio de carros buzinantes, impacientes com o engarrafamento. Há muitos muros pichados também; a maioria das pichações são de teor anti policial ou declarações de amor adolescentes. Havia até uma citação de De Musset: “Qualquer que haja amado, possui cicatrizes”. Álvaro se riu por um tempo, voltando sua atenção para o trânsito.  Lembrava-se dos poemas de De Musset; lia-os, vez ou outra, para Daniele, no início do relacionamento.
“Cicatrizes”, ele pensou. Existe algo de interessante nelas. São como um sinal de alerta de que algo mal aconteceu. Mas o mais bonito de tudo é que, por mais que haja doído muito, no final de tudo, fica apenas uma marca indolor que faz com que se pense duas vezes antes de se arriscar.
Álvaro sentiu o celular tremendo em seu bolso, fazendo-o sair de seus devaneios. Se atrapalhou um pouco ao tentar pegá-lo. Era Ariel.
— Fala… sim. Claro. Sério? Bom, fico feliz. Inês deve estar animada. Quem sabe não os visito um dia lá?! Sim, tudo bem. Obrigado por compartilhar... Ah, a propósito, você tem algo programado para hoje à noite? Estava pensando em dar uma reciclada no guarda roupa. Quer tomar uma cerveja hoje depois que eu voltar das lojas? Assim elimino dois passos daquele livro. Sim, o li.... Você é um idiota.
(...)
Passo 3:  Largue o sofá e saia com um “bro”

— Então vai voltar mesmo para Sevilha?
Após terminar de comprar roupas que fossem do século XXI, Álvaro se encontrou com Ariel no Aloha’s para conversar e tomar umas latas. O bar ficava numa avenida movimentada. O seu interior era mal iluminado e, naquela penumbra, a visão ficava descansada, dando uma sensação de relaxamento. Havia duas mesas de pool no canto. Universitários apostavam cem reais para ver quem ganhava uma partida.
— Bom...só se você me prometer que não vai chorar. — Ariel riu.
— Você é um id...
— À propósito, na próxima vez que quiser me insultar, pense em algo mais criativo que “idiota”. Você fala demais essa palavra. — Tomou um gole, esperando Álvaro absorver seu conselho. — Escuta, vou te ensinar uma nova. Toda vez que eu for um imbecil, me diga: tu eres un gilipollas. Assim você não fala palavrão e está me insultando ao mesmo tempo. Genial, não? — Ariel mostrou seu sorriso amarelado e depois, esvaziou seu copo.  
— Não vou chorar. Mesmo que você seja um gilipollas, vai fazer falta aqui.
Conversaram por mais meia hora, falando sobre o trabalho, a tabela de classificação do campeonato nacional de futebol, a mudança de Ariel, como levaria seus pertences para a Espanha, e outras tonterias que não valem a pena serem escritas.
— Quer jogar contra aqueles riquinhos que estão na mesa de pool? — Ariel perguntou, apontando para dois jovens vestidos com camisa da Lacoste e relógios Rolex.
— Faz mais de cinco anos que não jogo e esses caras só jogam apostando. Certamente vamos perder e você é quem vai pagar.
— Deixa de ser marica e vamos. — Ariel já se levantava da mesa onde estavam sentados, puxando  Álvaro.
— Te falei. Se perdemos, quem paga é você. Tenho certeza que Inês não vai ficar feliz com a notícia de que você desperdiçou grana nessa aposta.
Ariel se aproximou dos universitários, propondo-lhes o jogo: estilo americano, uma partida seca, trezentos reais apostados. Os dois jovens se entreolharam. Contra esses “trintões” com ar de cansados e bêbados seria fácil demais. Aceitaram sem titubear.
As bolas já estavam postas sobre o feltro verde. Um dos jovens as organizou em uma forma triangular enquanto o outro se punha ao fundo, preparado para tacar.
Tac
Bolas de várias cores se moveram pelo feltro, deslizando silenciosas. Algumas se bateram, fazendo sons secos para depois, lentamente, se pararem. Começaram a jogar. Primeiro, tacadas simples, calibradas; depois, cada vez mais fortes, pretensiosas e difíceis. A Ariel e Álvaro, os restou ficar com as ímpares. Ariel meteu a primeira na caçapa. Os dois jovens derrubaram duas bolas, tendo mais sorte. Quando chegou a vez de Álvaro, tentou acertar uma bola que estava longe. Sem treinamento, a tacada saiu fraca, não conseguindo acertar na bola alvejada. Os jovens se olharam, sorridentes. Já sentiam os trezentos contos no bolso. Álvaro bebeu um gole da sua lata. Notou que naquele bar só existiam garçonetes — o que o pareceu estranho. Pouco depois chegou de novo a sua vez. A segunda bola foi melhor. Derrubou duas de uma vez.
— Uma dupla caída! — Ariel o deu um soco nas costas, comemorando. — Boa tacada.
Álvaro o olhou sorrindo, depois mandou outro gole da cerveja e se dobrou sobre a mesa. Estava concentrado. Tacou a bola branca ligeiramente para a esquerda, vendo-a ser docemente levada pela borda da mesa até chegar numa bola que estava perto da caçapa. Uma tacada perfeita. Os dois jovens se olham mais preocupados. Haveriam se enganado acerca daqueles trintões?
O jogo foi passando. Aos riquinhos, restava uma bola, enquanto a Ariel e Álvaro, duas. Era a vez de Álvaro. Respirando lentamente para não se afobar, pôs-se em posição para tacar. Não podia ser forte demais, senão a bola branca, no rebote, ultrapassaria o ponto certo para poder tacar na outra que restasse. Tacou. A bola foi em direção ao buraco. Álvaro não conseguiu respirar até ver a pelota sendo encaçapada. Yahoo! Havia conseguido, mas…
Mas…
A tacada tinha sido forte demais e a bola branca ultrapassara do ponto perfeito para a tacada final, ficando entre a última bola par e a onze. Os jovens, respirando aliviados, pensaram que, por fim, não perderiam aquela partida. Dessa posição era verdadeiramente um tiro impossível. Álvaro deu a volta na mesa. Estudou todas as distâncias. Difícil. Precisaria dar três golpes nas bordas da mesa com a bola branca antes de acertar a onze. Ademais, precisaria torcer para que a tacada fosse precisa a ponto de derrubá-la.
— Manda, mi amigo.
— Mas com três tabelas com as bordas?
— E daí? Se perdemos quem paga sou eu mesmo. — Ariel sorriu.
Álvaro segurou o taco com firmeza, ajustando-o. Inspirou, expirou. Tacou. A bola branca parecia voar sobre o feltro verde. Uma tabela. Lembrou-se de todas as vezes que jogou bilhar na adolescência. Duas tabelas. Ainda era possível se divertir; uma separação não era o fim de tudo. Três. Aqueles trezentos reais teriam de ser dele.... e nesse momento, a bola branca golpeou em cheio a onze, derrubando-a no buraco central.
— Centro! — Gritou Ariel. — Você é sortudo. Agora mandem a grana. — Olhou para os garotos derrotados.
Pegaram o dinheiro da aposta e pediram mais duas latas em comemoração. Riram-se da cara de espantados dos mauricinhos, sempre brindando em voz alta. Por fim, pagaram a conta e saíram.
— Só uma curiosidade... — Já estavam na porta do bar quando Álvaro quis fazer uma pergunta. — Onde você arrumou aquele livro? Quando você me deu, me senti ofendido, sabe… — Parou para respirar. — Achei até maldoso. Mesmo depois da separação me recusava a ler. Mas, ontem à noite, depois de mais uma imersão na depressão profunda, decidi dar uma lida.
— E aí?
— Admito que me ajudou, mas tem uma coisa que me está deixando curioso. — Pausou para coçar o nariz. — Quem é o autor desse livro? Busquei na internet e não tive nenhuma resposta nas pesquisas do Google. Quem é esse tal de A.R Cervantes?
Ariel sorriu mais uma vez, como se já esperasse aquela pergunta.
— Simples. Chegue em casa, olhe para a foto do autor. Imagine-o sem óculos e barba. Assim que o fizer, saberá quem é.
Após dizer isso, seguiu em direção ao seu Civic azul, mas no meio do caminho, algo o fez parar. Deu meia volta e gritou:
— Álvaro, espera. Quase me esqueço. Toma, pegue isso. — Entregou-o um envelope. — Só o abra quando chegar em casa, dale?
Dale.
Álvaro voltou para o seu apartamento, sentindo-se um pouco ébrio. Deixou as sacolas com as roupas novas em cima do sofá e se deitou. Pegou o livro que estava no criado mudo ao lado da cama, buscando a foto do autor. O que Ariel o havia pedido para fazer mesmo? Imaginar a pessoa da foto sem óculos e barba. No início foi difícil, talvez pelo efeito do álcool, mas depois, a imagem começou a ficar clara. Aqueles olhos sarcásticos...aqueles dentes amarelados.
Custou a acreditar naquilo. Devia estar deveras bêbado. Lembrou-se do envelope que Ariel lhe entregara à porta do bar. Abriu-o. Uma carta se mostrou.

“Mi amigo,
Talvez você vá me odiar ao descobrir que eu sou o autor desse livro que você tanto desprezou quando o recebeu — devo dizer que isso me magoou profundamente hahaha.
Peço desculpas desde já.
Porém, essa carta não é um pedido de desculpas, mas sim um presente meu e da Inês para você. Aqui deixo o localizador de uma passagem de ida e volta para Sevilha para nos ajudar com a mudança e a montar os armários. Achou que iria fugir dessas chatices? Pois se enganou. Partimos em cinco dias.
Um abraço.
Localizador: B6YVVY
P.S: Pense nesse presente como uma forma de fazer o passo 4 desse livro.”

Fechou a carta, guardando-a no envelope. Álvaro se deitou e, antes de fechar os olhos disse: tu eres un gilipollas.
(...)
Passo 4: Faça uma Viagem

A janela estava aberta. Nuvens tingidas de laranja se viam abaixo, brandas e infinitas. O sol se punha ao oeste. Deviam estar sobrevoando o Atlântico há horas. Não podia crer. Estava indo para a Espanha. C-27, esse era o seu assento no avião, fila da direita, do lado do corredor. Uma bela aeromoça o sorriu enquanto passava perto dele. Perto demais. Parecia enviada por uma citação de um poema da conclusão de As Mil e uma Noites: “Ela vem como a lua cheia em noites felizes…”  Ela tem um leve perfume adocicado, um uniforme perfeito. Caminha de cima a baixo no avião, sem problemas e preocupações.
“Ela vem como a lua cheia…”
Mas ele deveria tirar esses pensamentos da cabeça. Quais as chances de se encontrarem de novo fora daquele avião? Mínimas, para não se dizer nulas. Voltou os olhos para a janela, mesmo que estivesse um pouco longe dela, tentando tirar a aeromoça da cabeça. Era impossível. Ariel e Inês estavam nos bancos ao lado. Pareciam dormir. Um voo de mais de dez horas era, certamente, entediante. Se não fosse pela pequena tela, onde podia ver alguns filmes, teria se jogado do avião.
A aeromoça passou mais uma vez.
¿Quieres algo más para beber, señor?
Un jugo de durazno, por favor. — Falou, olhando os lábios pintados com um vermelho forte. Ela percebeu e, sorrindo, saiu com um andar rebolante.
— Um verdadeiro nhoque essa aí, não? — Uma voz grogue saiu do banco do lado. Ariel estava despertando.
— Nhoque?
— É assim que se diz na Itália.
— E o que você sabe da Itália se é espanhol?
Ariel riu. Sorte que Inês não o havia escutado. Voltou a fechar os olhos, deixando Álvaro sozinho com os pensamentos soltos. Deveriam estar chegando. Suas nádegas já não tinham mais posição para ficar no assento. Verificou o relógio. Eram 6:30 da tarde. Tinham mais quarenta minutos de voo, segundo o cronograma.
Aquí está el jugo, señor.
Agradeceu, evitando olhá-la no rosto. Enquanto bebia do suco, buscava algum filme interessante na tela que estava na parte de trás do banco da frente. 500 dias com ela. Não, já havia visto. Um dia. Também já tinha assistido — e odiado o final, ainda por cima. Por que a Anne Hathaway tinha de morrer? Continuou buscando: Bahubali. Era filme indiano e não tinha legenda e nem dublagem. O Ilusionista. O Dia Depois de Amanhã. 2012. Meia Noite em Paris. Por Deus, tinha mais filmes que no Netflix ali e todos ele já havia visto. Depois de buscar incansavelmente, decidiu assistir a um episódio de Grey’s Anatomy.
Pouco tempo depois, o avião se preparava para pousar.
(...)
O clima era agradável em Sevilha. O negro céu noturno estava limpo, anunciando que a manhã seguinte seria de sol.
Os familiares de Ariel os esperavam no desembarque, animados e sorridentes. Abraços saudosos e beijos na bochecha foram distribuídos. Álvaro foi apresentado a eles e, enquanto saíam do aeroporto, a bela aeromoça acenava para um táxi. Um bom presságio, pensou Álvaro. Gostava de pensar que poderia ser possível encontrá-la em algum lugar. Talvez até conversar com ela.
Chegaram à casa dos pais de Inês, onde estariam hospedados. Um apartamento próximo ao Parque del Alamillo. Ariel e a esposa haviam alugado o apartamento do andar de baixo.
Era um lugar espaçoso: três quartos, sendo duas suítes. A sala dava para uma sacada com vista para o parque. Álvaro conseguia imaginar aquele lugar aos domingos, com famílias fazendo piqueniques, namorados de mãos dadas, animais de estimação brincando. Seria bom morar ali. Os quartos estavam arrumados e, após rolar algumas vezes na cama, Álvaro pegou no sono.
A manhã seguinte foi destinada para a mudança. Os móveis da casa no Brasil haviam sido vendidos e, com o dinheiro que conseguiram, Ariel e Inês compraram mobiliário novo. Uma cama de casal, dois criados mudos, uma estante, uma mesa, um sofá e várias outras pequenas coisas foram enchendo o apartamento.
Não pararam para nada. Aos poucos, aquela bagunça de móveis foi se arrumando, dando um ar de “lar, doce lar” para aquele lugar. Álvaro se animou ao saber que à noite iriam a um pub para relaxar após o dia de mudança.
Ele não havia percebido, mas já não pensava em Daniele há uma semana. Talvez estivesse se curando; talvez fosse só porque estava longe. O fato é que Álvaro parecia renovado, um homem totalmente diferente do que vinha sendo nos últimos seis meses.
O que ele não sabia era que estava prestes a se encontrar com algo que o livraria, de vez, da depressão de haver sido deixado.
(...)
Merchant’s Malt House. O pub tinha dois andares e era diferente de todos os pubs que já havia ido. Tinha uma personalidade própria, fugindo daquele estilo irlandês, típico desses bares. As paredes eram vermelhas e verdes e mesas de madeira estavam distribuídas pelo local. Uma música tocava num volume agradável enquanto pessoas conversavam, intercalando as palavras entre os goles de Guinness e mastigadas em azeitonas.
Álvaro passava os olhos pelo local, quando sentiu uma cotovelada de leve nas costelas.
— Diagonal esquerda, junto a duas adolescentes que fumam. Nhoque.
De início ele não havia entendido, mas ao olhar na direção em que Ariel falara, viu uma bela moça. Ela parecia diferente com os cabelos soltos. E, com toda certeza, estava muito melhor sem o uniforme.
— Hoje é o teu dia de sorte, mi amigo. Quem diria que a gente veria essa mulher de novo? Quero dizer, quais são as chances de…
Ariel tagarelava, no entanto, Álvaro já não prestava mais atenção. Falaria com ela? Tinha algo a perder? Era lógico que não. E no final das contas, só seria uma conversa. Charlariam um pouco, bebericando seus drinks e inalando a fumaça dos cigarros alheios.
Deu um passo na direção dela. As suas mãos suavam frio. Dois passos. Reparou que ela tinha os cabelos aloirados. Como não o percebera antes? Três passos. Uma saia de tule branca combinava com a camisa estampada com flores cor de laranja. Quatro passos. Ela o viu. Mostrou os belos dentes brancos, perfeitamente encaixados. Retribuiu o sorriso, terminando o caminho em direção a ela.
Cumprimentou-a, estendendo a mão. “Hola, soy Álvaro”, disse, puxando assunto. Ela devolveu o cumprimento. “Hola, me puedes llamar ‘Ñoque’” e, piscando o olho, riu agradavelmente. Álvaro demorou a entender, mas, quando finalmente compreendeu, seu rosto enrubesceu.
Merda! Ela havia ouvido.
A moça, percebendo que ele ficara sem jeito, tranquilizou-o, dizendo que estava brincando e que já estava acostumada com tais apelidos dados a ela. Puxou assunto. Pelo menos ela havia simpatizado com ele. Gostou de saber que Álvaro trabalhava com publicidade. Contou-o que já tinha estado em mais de cento e cinquenta aeroportos ao redor do mundo e que passava menos de uma semana em casa. Quando perguntada de onde era, respondeu que era de Málaga, mas que a família estava morando em Sevilha mesmo.
Passaram três quartos de hora assim, rindo e conversando. Já estavam, ambos, na quarta rodada de Guinness e sentiam a ebriedade. Vez ou outra, Ariel e Inês passavam por lá, dando piscadelas que diziam mais do que palavras.
Ela fez menção de ir embora. Álvaro, com a ajuda do álcool, criou coragem e a pediu o telefone. A moça, pegando uma caneta, escreveu-o no punho dele. A sensação do toque dela era reconfortante. Agradeceu-a pela companhia e, enquanto a via ir embora, lembrou-se de que não sabia o nome dela.
Correu atrás dela, gritando-a. Ela se deteve, olhando para trás.
Perdona, pero no sé tu nombre. — Respira, arquejando. — ¿Me lo puedes decir?
Sí, por supuesto. Mis amigos me llaman Dani.
Um sorriso se desfez na cara de Álvaro. Inacreditável. Aquilo não podia ser verdade. Lembrou-se da Daniele que fora sua, mas que o traíra. Imagens de um passado destruído começaram a se remontar em sua mente. Eu não a quero, é certo, mas talvez a queira. É tão curto o amor, tão longo o esquecimento. Neruda estava certo. O esquecimento é um processo longo, mas que um dia, chega ao fim. E o epílogo desse esquecer dependia só dele. Sim. Dependia dele.
Voltando o sorriso ao rosto, ele perguntou.
Pero, dime ¿Cómo se escribe tu nombre?
Ela, sem entender o porquê, soletra: D-a-n-i-e-l-l-e.
¿Con dos L’s?
Álvaro sorriu. Havia um L a mais. Talvez essa letra sobressalente fosse equivalente à lealdade. Ele queria crer nisso.
Vale, muchas gracias.

E, enquanto ela entrava em um táxi, Álvaro percebeu que havia tido êxito nos passos para se reerguer dos chifres.