terça-feira, 21 de abril de 2015

Pandora


Ninguém tachou de má a caixa de Pandora por lhe ter ficado a esperança no fundo.
Em algum lugar há de ela ficar.


Nina tinha apenas 5 anos de idade e o mundo ainda tinha gosto de contos de fada. Um piscar de olhos, uma pequena distração e puf! Um mundo negro e ensanguentado se estendia diante dela. Quem é ela?, você se pergunta. Eu respondo: uma criança como tantas que você encontra por aí.
A marca que a menina carrega não pode ser apagada; faz parte de sua alma. Quanto mais ela crescer, mais a mancha escurecerá. Há uma pequena chance de cura, no entanto, de tão pequena que é, quase não há esperança em seu coração. Quase. Há um pontinho branco em meio à negritude.
Embora eu tente pensar naquela garotinha como se não fosse eu, não posso fugir da realidade. Neste momento, em minha mente, ela - ou eu - está passeando embaixo dos pés de tangerina e o cheiro é realmente bom. Ninguém acreditaria se ela contasse como aquela pequena vila do estado de Tocantins é bonita em algumas épocas do ano. Nem todo mundo saberia apreciar os perfumes dos pés de jaca ou mesmo do pé de cacau que crescia imperioso pela propriedade da avó.
As imagens do passado me fazem sentir feliz por ter nascido ali, mas, ao mesmo tempo, estremeço ao voltar àquele lugar, mesmo que apenas através das lembranças.
- Nina? Estou falando com você! - diz George, me fazendo voltar ao mundo real.
- Ok, estou escutando. - respondi, irritada.
Amar George é a coisa mais estranha que já me aconteceu. Às vezes sinto o ponto branco ganhar força dentro de mim e, nestes momentos, o mundo se torna azul e tranquilo. Mas, como explicar-lhe que sou apenas um receptáculo cheio de escuridão? Um dia ele tentará abrir a tampa e, neste dia fatídico, verá o interior da caixa de Pandora.
Você deve estar se pensando: o que aconteceu à Nina para que ficasse assim?
Se realmente estiver pensando isso, peço desculpas por não ter tocado no assunto anteriormente. O fato é que a vida de uma menina inocente e ingênua pode mudar completamente depois de ver o mundo real. Não digo responsabilidades reais. Falo sobre a maldade real. A maldade de um homem que atrai uma criança. Como? Simples. Um doce, um brinquedo ou uma ideia divertida. Quando consegue fisgar sua presa, mostra quem realmente é.
Sim. Aconteceu. Exatamente o que você está pensando.
O mundo que cheirava a frutas e era um caleidoscópio divertido, de repente, se tornou sombrio, com todas as nuances escuras.
Mas Nina é forte. Nina é fogo. É esse o significado do meu nome em Quíchua: fogo. E através dessa força; a força que vem do fogo, eu construí a caixa de Pandora e guardei ali todas as desgraças.

(...)

George está à minha frente. Olhando para ele neste instante, concentrado, tomando seu café e lendo o jornal, percebo o quanto ele merece uma pessoa melhor. George não merece sentir o peso do meu fardo. Eu preciso dizer adeus!
- Nina, veja! A filhinha dos Martins foi encontrada morta. Parece que a menina foi visitar a avó e acabou dando de cara com um assaltante. Foi violentada e estrangulada.
Demonstrei um pouco de espanto para satisfazê-lo, mas, no fundo, nada mais me afeta. As pessoas se surpreendem porque não imaginam que a cada “tic tac” do relógio, o mesmo ocorre com dezenas de garotinhas, por todo o mundo. Morrer, como a pequena Amabelle do jornal havia morrido, era um final feliz. Sobreviver e encarar a realidade de um mundo coberto de cinzas era muito pior. Não sou insensível. Ok. Talvez tenha me tornado um pouco.
O pior de tudo é saber que no final, tanto Amabelle (morta), quanto a garotinha de 5 anos (sobrevivente), não passam de estatística que os jornais anunciam e que a oposição usa como argumento para subir ao poder. Veja: se o tema “Estupro” já escandaliza um país como o Brasil, em que 92,6% da população é religiosa, imagina só o efeito que o tema “Abuso sexual infantil” não causará?! Os votos são garantidos!
George havia desenhado árvores, rios, pontes e um arco-íris em minha vida, mas, o que eu poderia oferecer de volta? Ele com certeza deixaria de me amar no momento em que abrisse a tampa e visse o quão negro era seu conteúdo.
Ele está me encarando de novo, com seus olhos cor de âmbar, tão doces, que fazem meu coração transbordar em todos os tons de branco. Sim, existem vários tons de branco! Embora sejam aparentemente iguais, quando a luz é refletida sobre eles, tudo muda. 
- 1, 13, 1 - 13, 5? - diz George
- 13, 21,9, 20,15! - respondo sem pensar.
Temos nossa própria língua. Nosso jeito próprio de conversar. Ele me enxerga por dentro e eu não preciso explicar nada.
George se levanta e me beija, puxando-me de forma suave. Ele me ergue da cadeira na direção dos seus braços. Não, eu não irei a lugar  nenhum! Estou exatamente onde deveria estar.
Uma mancha negra dilui-se completamente em um pequeno ponto branco e uma garotinha de 5 anos passeia, feliz, debaixo de um velho pé de tangerina que, em flor, exala seu aroma em uma primavera de 1996.
A caixa ainda não foi aberta. E se for? Talvez, somente por hipótese, até lá o conteúdo dela tenha se transformado todo em Esperança.





sexta-feira, 3 de abril de 2015

Por do Sol

Além deste lugar de iras e lágrimas
Avulta-se apenas o Horror das sombras
- William Ernest Henley, Invictus.


Não, o pôr do sol nunca a havia fascinado tanto como hoje. Até mesmo a indestrutível falta de emoção da pequena Sara foi obrigada a ceder lugar á sensação de força que os vários tons de laranja, vermelho com amarelo e mesmo preto lhe impingiam na pele, chegando até a corrente sanguínea.
Recordou de uma outra sensação parecida, a do dia em que Antônio lhe pedira em casamento. Sara havia dormido em seu apartamento, como acontecia em todas as sextas-feiras, após jantares esplêndidos. Não se recordava muito bem de como tinha sido aquela noite, em especial, apenas da voz melodiosa do homem dos olhos cor de whisky lhe acordando para ver o nascer do sol na janela do 13º andar.
Há! Sim, havia sido incrível ver aquela alvorada em seus vários amarelos e vermelhos misturados com cobre iluminando a cidade e o seu coração. Sim! Seu coração se iluminou quando Antônio ajoelhou-se e lhe pediu em casamento naquele iniciar de dia.
- Na aurora, para que a luz do sol ilumine os dias escuros. – dissera-lhe Antônio.
Sara em sua pequena estatura tinha certa delicadeza, mesmo com os enormes olhos cinza, grandes demais para seu rosto e os cabelos sempre soltos e rebeldes fazendo caracol em volta de seu rosto. Ali, sentada na beira da praia pensou que apesar da aparência frágil havia se sentido uma mulher poderosa naquele dia e que independente das atuais circunstancias aquelas eram boas lembranças do passado, boas histórias para se ter na memória, enfim.
Como um turbilhão, outras memórias assaltaram-na. A doçura da lua de mel, o calor da primeira briga e de Josephine, a deslumbrante Josephine que aos poucos se infiltrara na vida do casal e desencadeara os fatos que haviam levado Sara a estar ali sentada na areia da praia, admirando os raios de sol mergulhando calmamente no negro do mar.
Josephine... Ha! Maldita Josephine! A sua maldita irmã adotiva que aos poucos fizera tremer a base de sua maior vaidade, com suas visitas rotineiras e seu sorriso com gosto de ingenuidade sempre estampado no rosto. Aquele sorriso que aos poucos roubara os olhos de seu Antônio. Nada podia atingi-la tão mortalmente quanto aquilo, seu Antônio que era a única coisa boa que tinha em sua alma, aos poucos começar a trata-la com indiferença e frieza sem qualquer motivo, ver toda a alegria do esposo ser desviada para os domingos em que Josephine vinha visita-los.
Tivera certeza da traição no dia em que saíra mais cedo de seu escritório para comprar o presente que daria a ele em comemoração ao primeiro aniversário de casamento. Da janela do carro avistara-os passeando pelas ruas da cidade como dois adolescentes bobos á admirar as vitrines das lojas. È claro que chegando casa fingira de nada saber, pois jamais se permitiria a fraqueza de chorar ou até mesmo pedir explicação. Sua decisão estava tomada!
Mas, pensou Sara, sentindo a brisa do mar em seu rosto, hoje seria o fim de sua angústia. Hoje seria livre para começar uma nova vida e encontrar um novo caminho para trilhar. Um caminho livre de fúria reprimida, livre do ódio que passara a sentir por Antônio, livre de seu desprezo pela estúpida Josephine e principalmente, livre para ser ela mesma, sem nada para controla-la ou faze-la se sentir culpada por ser o que era ou como seu Antônio vivia a lhe dizer: insensível, vaidosa e egoísta.
Lembrou-se das palavras do livro que lera no dia seguinte ao aniversário de casamento "esta solução deposita em poucas horas a maior parte do sal da estricnina em forma de cristais de brometo insolúveis” e de como os dois comprimidos de brometo introduzidos ao vidro cheio do tônico que Antônio tomava toda noite causaram a precipitação perfeitamente, assim como o livro dissera.
No último mês houvera sido gentil com seu esposo servindo-lhe suas doses do remédio ás sete horas de toda noite, tomando é claro, o devido cuidado para que os cristais permanecessem depositados ao fundo do vidro e assim a estricnina pudesse ser deixada para ser consumida quase que totalmente na última dose.
A brisa balançou seus cabelos enquanto ela observava os últimos fios de sol mergulhar no negrume do mar e satisfatoriamente lembrou em como Antônio sempre fora metódico e pontual em todos os seus compromissos e tarefas, enquanto passeava calmamente os dedos pelo colar de pérolas, que o marido lhe dera no aniversário de casamento. Deslizou delicadamente a joia do pescoço e a atirou o mais longe possível nas aguas do mar sem nenhum apego.
O céu agora era um véu negro sobre sua cabeça, hoje não tinha uma única estrela lá e Sara observando as horas em seu relógio de pulso sentiu um largo sorriso rasgar seu pequeno rosto. A agua do mar estava tranquila e da cor de piche preenchendo o interior da pequena mulher de paz e tranquilidade enquanto se levantava e enchia os pulmões com o vento que agora soprava forte e gelado.