Ninguém tachou de má a caixa de Pandora por lhe ter ficado a esperança no fundo.
Em algum lugar há de ela ficar.
Nina tinha apenas 5 anos de idade e o mundo ainda tinha gosto de contos de fada. Um piscar de olhos, uma pequena distração e puf! Um mundo negro e ensanguentado se estendia diante dela. Quem é ela?, você se pergunta. Eu respondo: uma criança como tantas que você encontra por aí.
A marca que a menina carrega não pode ser apagada; faz parte de sua alma. Quanto mais ela crescer, mais a mancha escurecerá. Há uma pequena chance de cura, no entanto, de tão pequena que é, quase não há esperança em seu coração. Quase. Há um pontinho branco em meio à negritude.
Embora eu tente pensar naquela garotinha como se não fosse eu, não posso fugir da realidade. Neste momento, em minha mente, ela - ou eu - está passeando embaixo dos pés de tangerina e o cheiro é realmente bom. Ninguém acreditaria se ela contasse como aquela pequena vila do estado de Tocantins é bonita em algumas épocas do ano. Nem todo mundo saberia apreciar os perfumes dos pés de jaca ou mesmo do pé de cacau que crescia imperioso pela propriedade da avó.
As imagens do passado me fazem sentir feliz por ter nascido ali, mas, ao mesmo tempo, estremeço ao voltar àquele lugar, mesmo que apenas através das lembranças.
- Nina? Estou falando com você! - diz George, me fazendo voltar ao mundo real.
- Ok, estou escutando. - respondi, irritada.
Amar George é a coisa mais estranha que já me aconteceu. Às vezes sinto o ponto branco ganhar força dentro de mim e, nestes momentos, o mundo se torna azul e tranquilo. Mas, como explicar-lhe que sou apenas um receptáculo cheio de escuridão? Um dia ele tentará abrir a tampa e, neste dia fatídico, verá o interior da caixa de Pandora.
Você deve estar se pensando: o que aconteceu à Nina para que ficasse assim?
Se realmente estiver pensando isso, peço desculpas por não ter tocado no assunto anteriormente. O fato é que a vida de uma menina inocente e ingênua pode mudar completamente depois de ver o mundo real. Não digo responsabilidades reais. Falo sobre a maldade real. A maldade de um homem que atrai uma criança. Como? Simples. Um doce, um brinquedo ou uma ideia divertida. Quando consegue fisgar sua presa, mostra quem realmente é.
Sim. Aconteceu. Exatamente o que você está pensando.
O mundo que cheirava a frutas e era um caleidoscópio divertido, de repente, se tornou sombrio, com todas as nuances escuras.
Mas Nina é forte. Nina é fogo. É esse o significado do meu nome em Quíchua: fogo. E através dessa força; a força que vem do fogo, eu construí a caixa de Pandora e guardei ali todas as desgraças.
(...)
George está à minha frente. Olhando para ele neste instante, concentrado, tomando seu café e lendo o jornal, percebo o quanto ele merece uma pessoa melhor. George não merece sentir o peso do meu fardo. Eu preciso dizer adeus!
- Nina, veja! A filhinha dos Martins foi encontrada morta. Parece que a menina foi visitar a avó e acabou dando de cara com um assaltante. Foi violentada e estrangulada.
Demonstrei um pouco de espanto para satisfazê-lo, mas, no fundo, nada mais me afeta. As pessoas se surpreendem porque não imaginam que a cada “tic tac” do relógio, o mesmo ocorre com dezenas de garotinhas, por todo o mundo. Morrer, como a pequena Amabelle do jornal havia morrido, era um final feliz. Sobreviver e encarar a realidade de um mundo coberto de cinzas era muito pior. Não sou insensível. Ok. Talvez tenha me tornado um pouco.
O pior de tudo é saber que no final, tanto Amabelle (morta), quanto a garotinha de 5 anos (sobrevivente), não passam de estatística que os jornais anunciam e que a oposição usa como argumento para subir ao poder. Veja: se o tema “Estupro” já escandaliza um país como o Brasil, em que 92,6% da população é religiosa, imagina só o efeito que o tema “Abuso sexual infantil” não causará?! Os votos são garantidos!
George havia desenhado árvores, rios, pontes e um arco-íris em minha vida, mas, o que eu poderia oferecer de volta? Ele com certeza deixaria de me amar no momento em que abrisse a tampa e visse o quão negro era seu conteúdo.
Ele está me encarando de novo, com seus olhos cor de âmbar, tão doces, que fazem meu coração transbordar em todos os tons de branco. Sim, existem vários tons de branco! Embora sejam aparentemente iguais, quando a luz é refletida sobre eles, tudo muda.
- 1, 13, 1 - 13, 5? - diz George
- 13, 21,9, 20,15! - respondo sem pensar.
Temos nossa própria língua. Nosso jeito próprio de conversar. Ele me enxerga por dentro e eu não preciso explicar nada.
George se levanta e me beija, puxando-me de forma suave. Ele me ergue da cadeira na direção dos seus braços. Não, eu não irei a lugar nenhum! Estou exatamente onde deveria estar.
Uma mancha negra dilui-se completamente em um pequeno ponto branco e uma garotinha de 5 anos passeia, feliz, debaixo de um velho pé de tangerina que, em flor, exala seu aroma em uma primavera de 1996.
A caixa ainda não foi aberta. E se for? Talvez, somente por hipótese, até lá o conteúdo dela tenha se transformado todo em Esperança.