A capital era uma oportunidade...
Mudar-me para lá é uma ideia que me ocorreu quando já não via possibilidades de prosseguir. Julia estava doente e os custos médicos eram exorbitantes. Era terrível a ideia de todos os dias ter que pensar o que comer e o que beber, visando apenas consumir o mínimo possível, não que alguma vez fossemos providos de tudo mas é que não havia culpa em comprar tomates em qualquer época.
A capital era a solução, já não era um garoto, me tornara um pai solteiro com responsabilidades. Morar no interior sempre foi o desejo de Luísa e já não há motivos para permanecer com tão poucas oportunidades... Ao fim da faculdade tomamos a decisão visando apenas uma vida mais tranquila.
De fato numa cidade menor a vida é mais calma, mais lenta. Se ganha menos mas anda-se menos, come-se mais, descansa-se mais e se diverte menos.
Júlia começaria a tratar-se do câncer na Santa Casa da capital. Eu não suportaria sua distância mesmo sabendo que poderia ficar aos cuidados dos pais de Luísa. Eles inclusive me indicaram um hotel para que pudesse me hospedar durante os dias que por lá ficasse. Dizia o bilhete “Copa Hotel”, e o valor pago para sócios da cooperativa de crédito o qual o pai de Luísa era filiado. Obviamente não me queriam por perto ao me indicar um hotel mesmo tendo condições de me oferecer hospedagem, nossa relação nunca foi das melhores.
Tentei pesquisar informações dias antes da partida, mas o que encontrei navegando por páginas da internet foram as mesmas informações que o bilhete trazia: Número e endereço do estabelecimento. Ainda que com alguma sorte pois, em poucos dias haveria o mundial de seleções e tudo que se referia a palavra “Copa” remetia à competição.
Tomei nota do endereço e fui investigar sobre a localização do hotel. O pai de Luísa me disse que era perto da rodoviária e que de lá até o ponto de ônibus que me levaria até o hospital andava-se poucos metros. Busquei no mapa e de fato o velho safado tinha razão, e talvez não me quisesse tão mal, apenas longe.
A noite que antecedia a partida pus me a olhar os quadros, as flores já sem vida do inverno que Luísa plantara. Dizia gostar das “copo de leite” mais que as outras mas não sabia explicar bem o motivo. Confesso que as copo de leite me faziam bem, não que tivesse qualquer apego a espécie mas a sutileza em que decoravam o jardim remetiam a personalidade de quem as plantara, não era tão extravagantes como as rosas e nem tão formais quantos as margaridas.
Tudo naquela casa remetia a personalidade de Luísa, e agora olhando para estas paredes me dou conta que tão pouco de mim dei-lhe.
Na capital...
Pela manhã fui visitar Júlia assim que cheguei a capital. Pelo corredor ouvi as vozes dos pais de Luísa e quando adentrei ao quarto, o mesmo silêncio constrangedor. Julia sorriu-me, quase que com todas as suas forças. Dei-lhe um beijo e os cumprimentei.
- Como foi de viagem? – Perguntou-me com o mesmo sotaque colono.
- Bem – prontamente o respondi.
- Vejo que ainda não se instalou na capital, é isso mesmo que deseja? Sabe que tenho condições de cuidar de minha neta muito bem. – Disse ao ver que trazia minha mala.
- Eu o agradeço por toda a ajuda, mas creio sinceramente que Júlia precise de mim.
- Você sabe que poderias ficar em nossa residência, mas é que estamos reformando o quarto de hóspedes para que você se acomode caso decida ficar. – Disse minha sogra.
A falsidade como eles me dizia aquilo fazia minhas veias dilatarem de uma fúria quase incontrolável, mas via Júlia e tudo era por ela, então me acalmava e jogava com eles.
- Eu sei de todo o esforço de vocês e os agradeço.
- Precisa de algum dinheiro? – Disse-me o velho como se fosse seu filho que aos trinta de vida ainda vivia de esmolas.
- Preciso ficar com minha filha e é só, se não se importam.
- Tudo bem, tudo bem. Contratamos enfermeiras que mais tarde irão vir busca-la, se precisar de qualquer coisa ligue nesse número. – E me deu um bilhete. -Ah!, e não ande pelas bandas da rodoviária ao anoitecer, pegue um táxi.
Mais tarde, despedi-me de Júlia e parti em direção ao hotel. Peguei um ônibus até a rodoviária e de lá um táxi até o hotel. Sabia pelo mapa que estava a alguns metros, mas não quis arriscar perder-me ali.
- Para onde vai?
- Para o Copa Hotel, por favor.
- Copa Hotel? Copa Hotel...
- Sim, Copa Hotel, na rua Andradas, esquina com a Farroupilha.
- Ah sim! Mas lá não se chama Copa Hotel, pelo menos não era esse nome, a não ser que tenham mudado de nome ou de dono, é lá onde ficam os negrim.
A corrida me custou seis pila e notei que o senhor, apesar de simpático, não gostou de fazer uma corrida tão curta já que teria de voltar a fila para uma novo cliente. Paguei-lhe e saltei do carro.
Na rua frente ao hotel, alguns usuário de drogas perambulavam como almas penadas. Adentrei e uma mulher que parecia ter seus quarenta anos estava ao lado de outra que parecia ter seus vinte e cinco. A segunda me atendeu.
Já no quarto logo notei um aquecedor posto a parede, era inverno e as noites eram frias no sul. Além do aquecedor, duas camas, TV, armário e também um criado onde me livrei de tudo que trazia no bolso, estava exausto! Procurei por toalhas, e não haviam as deixado. Pensei em descer até a recepção e pedir-lhes um jogo, assim como a senha da internet sem fio.
Quando abri a porta, notei que haviam deixado um par de sapatos no corredor, ao lado da porta do meu quarto. O cheiro de suor pairava no ar. Desci até a recepção, a mesma mulher, agora sozinha desculpou-se e entregou-me duas toalhas, e também pediu para que deixasse a chave ao sair se possível, para que arrumassem o quarto. Devo ter lhe olhado de maneira desconfiada, já que em seguida talhou alguma explicação, apenas assenti dessa vez.
Já no corredor, voltei a olhar os sapatos, e também notei que haviam um banheiro no seu final, que parecia compartilhado. Havia uma placa também que dizia: “Proibido andar sem camisa ou de toalha”. Bem longe, vozes graves e assertivas falavam em francês, parecia discussão, mas ao me aproximar pude perceber que não.
Duas voltas cerraram a porta. Conectei-me a internet e Charles, um amigo havia mandado uma mensagem:
“ Olá meu velho! Espero que tenha feito uma boa viagem... tenho duas boas notícias. A primeira é que encontrei locadores para sua residência e a segunda daí advém. Quando contei-lhes sobre sua mudança me passaram um contato que talvez lhe interessa. Conhecem o editor do Jornal Alerta Capital, parece ser um sobrinho deles e disseram para que você o procurasse. Um beijo a Júlia e boa sorte meu velho.
Charles.”
As coisas pareciam começar a caminhar... Alugando a casa poderia me instalar, e se ainda surgisse um emprego estaria tudo mais que perfeito! E que grande dia hoje se mostra!
Liguei o chuveiro, parecia queimado. Então desliguei-o e liberei a água e estava ainda mais gelada, então voltei a chave a apontar para o inverno e novamente liberei água. Um pouco mais ameno, mas ainda gelada. Então voltei algumas voltas para que saísse pouca água mas um pouco mais quente. Era isso... ainda gelada, então saí do banheiro, liguei o aquecedor no máximo, olhei algumas páginas na internet enquanto o calor tomava o quarto, voltei, ensaboei a esponja e joguei-lhe um pouco d’água, e membro a membro fui me lavando até que tomado de espuma me joguei debaixo a água, um “banho de gato”.
Era quarta e o Palmeiras jogava, e nenhuma cansaço superava jogos do Palmeiras. Luísa que um dia se afirmou gremista, ao passar dos anos acabou cedendo e passou a fazer-me companhia, e creio eu que o meu fanatismo lhe mostrou o que é torcer para um time, e como uma criança que gosta de ver os adultos vibrarem com seus times de coração tomou o Palmeiras um pouco pra si.
As vozes falando francês vez ou outra passavam pelo corredor durante o jogo. Já no segundo tempo minhas pálpebras teimavam em descer e me encontrava embriagado pelo cansaço. Desliguei a TV e dormi. No dia seguinte trataria de ver um emprego novo.
Durante a noite me acordei. Olhei o relógio do celular que marcava pouco mais de 3 horas do meu segundo dia na capital. As vozes em francês ainda ecoavam, em menor número e vez ou outra passando por minha porta. Pouco depois uma se aproximou e abriu o que pareceu ser a porta do quarto ao lado, talvez o dono dos sapatos. Ouvia também uma porta ranger, um chuveiro ligar e pouco depois desligar e a porta ranger novamente. Fiz desapegar-me da curiosidade para que pudesse dormir novamente, afinal teria de acordar no meu melhor.
Segundo dia na capital...
O hotel não servia café da manhã, então pensei em acordar cedo e pegar o lanche que o hospital servia aos acompanhantes de leito. Desci as escadas e entreguei a chave agora ao que parecia o dono do hotel. Era como imaginava Tarantino dez ou vinte anos mais velho.
Julia estava exausta quando cheguei, e como no dia anterior parecia usar o resto de suas forças para um sorriso. A quimioterapia parecia tirar-lhe um pouco mais de vida a cada sessão. Sentia-me destroçado ao vê-la, mas não poderia deixar pensar que sofria, tinha de lhe devolver um pouco de sua alegria. Retirei da pasta que trazia comigo alguns desenhos que havia feito durante a viagem, ela e Luísa tinham como atividade desenhar e pintar algumas coisas. Dei-lhe algumas folhas em branco e pedi que fizesse alguns desenhos para mim.
Pelo correio eletrônico veio a confirmação do jornal que me receberiam para uma entrevista naquela tarde. As dezessete horas, tal como um inglês vizinho ao Big Bang estava lá eu, posto a esperar o editor chefe que faria a entrevista. Creio que tenha surpreendido a mim e aos outros dois candidatos ao fazer uma entrevista coletiva. Nos propôs um desafio: que escrevêssemos um artigo para a semana seguinte e que seria publicado, o melhor autor seria contratado. O tema era livre, mas deixou entender que o jornal era um tanto comprometido com matérias investigativas, denúncias e escândalos de todos os tipos. De certo tinha um cunho político esquerdista. Ao fim, pediu que mantivéssemos comunicação sobre qualquer progresso.
Na volta para o hotel, decidi que a melhor logística era de fato pegar um ônibus até a rodoviária e de lá um táxi até o hotel. As redondezas de onde me hospedara eram fatalmente hostis e não me arriscaria até conhecer um pouco mais os caminhos que tinha de tomar para chegar seguro. Também aproveitaria para jantar na rodoviária, pois dificilmente haveria algum estabelecimento aberto com tantos usuários de drogas perambulando por lá.
- Para onde? – perguntou o taxista.
- Copa hotel, na rua Andradas.
- Pô meu, vai a pé cara é logo ali.
- Desculpe, mas não conheço a cidade. – Nesse momento tive que me fazer de desentendido, sabia que era arriscado a caminhada por aqueles poucos metros.
- Cara, é logo ali, só atravesse a rua e tu já tá lá.
O fiscal de táxis se aproximou quando percebeu que o taxista hesitava e eu já abria a porta para tentar outro.
- O que está acontecendo ? – perguntou.
- Ele quer ir até o Copa, to dizendo para o cara que dá de ir a pé.
- Tu quer ir de carro? – Percebendo que aquilo poderia se estender.
- Preferiria, não conheço a cidade – respondi.
- Se ele quer ir de carro, você leva ele de carro.
- Tu quer que eu te leve eu levo meu, mas tô dizendo que dá de pé.
-Gostaria.
- Leve ele então meu, se ele quer ir de carro você leva.
Senti um mal estar quando arrancou bruscamente. Havia-lhe tirado da enorme fila a espera por um cliente por trocados.
- Tu não deve conhecer a cidade mesmo.
- Por que me diz isso?
- Se tu saí ali a noite meu, não sai andando.
No corredor do hotel, veio em minha direção um negro enrolado numa toalha. Eu, de fronte a placa que proibia tal atitude, fiquei sem reação. Passou rápido e confiante, como fosse dono daqueles poucos metros que me levavam até o meu quarto. Fitou-me despretensiosamente enquanto vozes pareciam outra vez discutir em francês. De certo haitianos, os negrim que o taxista havia mencionado, e pela placa que avisava sobre andar trajando toalha talvez viessem muito deles se hospedarem aqui. Ao lado de minha porta, outra vez o sapato postado ao lado. Desta vez ri com o pensamento que me ocorreu: “Um haitiano com hábitos nipônicos”.
Enquanto aquecia o quarto para que pudesse tomar um banho, pude notar que se tratava de vários alojados em um mesmo quarto. Pela quantidade de tons distintos de vozes, talvez quatro, cinco até seis dividindo o mesmo espaço. Chegavam e saiam a todo instante. Pouco mais tarde o chuveiro e a porta começaram o seu compassado ritual. Aquilo aguçava minha curiosidade... O que faziam na capital afinal? Os motivos que levava-os a ficar no Copa Hotel pude imaginar... Começava a me ocorrer a ideia a matéria que me daria um emprego estaria naquelas vozes que passavam pelo corredor.
Tomei o laptop ao colo antes que aquela curiosidade fosse sanada por uma descoberta insossa. Escrevi bem aquela noite, como um romântico escreveria para seu novo amor, pus em linhas mesmo que digitais tudo que parecia ser no Copa Hotel. Nessas horas a saudade de Luísa aguçava, uma sensação de vazio me consumia, não havia ninguém com quem compartilhar minhas pequenas vitórias, quem consolasse minhas grandes derrotas. A vida dos outros parecia tão mais fácil...
O hotel de todo não era ruim. As roupas de cama e toalhas cheiravam a amaciante, suponho bem concentrado, pois aquele mesmo cheiro havia me acompanhado durante todo o dia. Pensei que tive sorte em não estar acompanhado, as colchas mesmo com o aquecedor na máxima temperatura não me aqueciam do inverno do sul. A TV me intrigara naquela noite, não era uma TV a cabo, parecia ser uma TV via internet, com metade dos canais religiosos e a outra vendendo animais. Também havia outro que penso ter toda sua programação voltada a filmografia do Frota. Confesso que maliciosamente me perguntei se nos outros quartos haviam TVs.
Pela manhã desci as escadas lentamente, com a esperança de encontrar um daqueles haitianos. Até a recepção, somente o cheiro de suor que pairava pelos corredores. O gerente sósia do Tarantino me ofereceu as chaves, e forçando um diálogo perguntei do clima da capital. Parecia um homem tranquilo, deixei que me especulasse um pouco até lhe perguntar sobre os haitianos.
- São todos haitianos aqueles?
- Sim – respondeu gauderiamente. Sabia o que tinha de fazer para falar mais...
- O táxi que me trouxe até aqui os mencionou.
- Hmmm, é.... são boa gente, não te preocupes.
- O que fazem aqui?
- Trabalham nas fábricas aí, vez ou outra são pegos e tem de ajeitar a vida.
- São ilegais?
- É, vem atravessando as fronteiras aí da vizinhança – decidi então que era melhor parar com as perguntas já que começava a se irritar, despedi-me brevemente.
Quando tomava a rua, um deles passou por mim, parecia carregar um quadro. Esperei que tomasse um pouco de distância para que ninguém do hotel notasse que o seguia, então quando longe o bastante o abordei:
- Fala português?
Seus olhos se arregalaram, parou sua caminhada e ficou a me olhar esperando.
- Do you speaking English?
- Jacques, Jacques! – foi o que entendi do que falava e apontava para o hotel.
Parecia nervoso... Mas parou, parecia querer dizer que um tal Jacques sairia do hotel e foi o que aconteceu. Saiu do hotel um negro vestindo uma blusa três listras e boina, esperei até que se aproximasse:
- Jacques?
- Vous?
- Sabe falar português?
- Um pouco, amigo – disse com seu sotaque.
- Me acompanham em um café? – eles se olharam, falaram algo em francês, mas concordaram.
Sentamos no café da rodoviária que agora era meu preferido. O outro haitiano se chamava Olivier. Era natural que se mostrassem desconfiados, e assim se portavam. Nos primeiros minutos senti que se fosse ao banheiro, ao retornar não os teria ali sentados. Jacques estava a mais tempo no Brasil, quatro anos me disse, e Oliver a seis dias, contou que vivia de trabalho honesto. Olivier parecia mais um dos casos de “turistas” que vieram para Copa, e Jacques parecia determinado a me fazer pensar que o era.
Creio eu que nunca antes estivesse a conversar com um haitiano ou um tipo próximo. Pela voz ríspida, alguém a lhes ouvir pensariam que eram rudes, suas vozes eram incisivas e determinadas em dizer o que diziam, mas sorriam nas vezes que pareceram esquecer da situação em que estavam. Certamente pensaram que era ou algo do governo ou alguém a lhe querer vantagens, e isso me incomodava, pouco quis ficar para que ganhasse a sua confiança.
Paguei-lhes o café e disse que também me hospedara no Copa Hotel, que se precisassem de algo poderiam contar com minha ajuda. Pareceram mais aliviados em poder sair dali.
No hospital os pais de Luísa já estavam a postos, ocupando seu imenso tempo ocioso com Julia.
- Olha quem chegou Julia! É o papai quem veio te visitar minha pequena!
- Bom dia. – disse-lhes.
Abracei Julia, que me entregou os desenhos que havia feito. Era nossa família, eu junto a Luísa e ela e um cachorro salsicha, rodeados de um jardim de copos de leite.
- E esse cachorro filha?
- É o Toby, vovô já encomendou pra mim! – um dos hábitos do velho era comprar as pessoas.
- E tu meu genro, já se arranjasse?
- Ainda falta um pouco meu sogro, mas creio que logo poderei me estabelecer e estar com Julia.
- Que ótima notícia meu querido, não achei que resolvesse suas questões em tão pouco! E onde almejas um trabalho? – perguntou minha sogra, com sua irritante voz, com seu irritante desdém.
- Há muitas latinhas na capital minha sogra – consegui interromper aquela falsa empolgação.
O meu sogro olhava furioso, decerto dariam um jeito de estragar qualquer oportunidade que tivesse. Pouco depois saiu do quarto sem nada dizer e em seguida minha sogra.
Fiquei até a hora do almoço com Júlia, que me contava seus planos para quando saísse do quarto de hospital. Contou-me sobre Toby também, e como seria sua casinha, e quais brinquedos teria e os horários e lugares que brincaria com ele. Ela sempre quis ter cachorros, mas Luísa era irredutível sobre o caso, e se defendia dizendo que todo serviço ficaria a suas custas, e que toda casa se infestaria de cheiro de cão, e que estragariam seu jardim de flores... Por minha vontade, Júlia já teria seu Toby.
Ao anoitecer, voltei ao hotel e escrevi um pouco mais. Tentei distanciar tudo que relatava para longe do Copa Hotel, afinal, logo alguns daqueles haitianos se tornariam ilegais no país. Sentia falta de uma janela que desse para rua, olhar para a cidade nos intervalos de inspiração na companhia de uma boa cerveja, ou de duas taças servidas de um bom vinho.
Ao fim, antes de deitar-me, escrevi ao redator contando-lhe sobre minha descoberta e que esperava descobrir que tipo de emprego aqueles haitianos estavam empenhados antes de concluir a matéria.
Quarto dia na Capital...
Pela manhã, nos primeiros raios de sol pus me a espreita a escutar qualquer voz que passasse pelo corredor. Através da porta vi que um deles acabara de chegar, e como a sombra demorou algum tempo para deixar a minha porta e o som tão próximo, suponho que fosse o dono dos sapatos chegando, e de certo trabalhava durante a madrugada, pois os sapatos sempre estavam lá durante o dia. Arrumei algumas coisas dentro da mochila e pensei ser melhor esperar Jacques e Olivier, pois tomariam o caminho da estação de ônibus da rodoviária e assim não despertaria nenhuma desconfiança.
O caminho do hotel até a rodoviária era desolador, alguns viciados dormiam enquanto todos tomavam seus caminhos. Os funcionários da limpeza urbana varriam bem próximos a eles, como se rodeassem um móvel qualquer da sala de estar.
Jacques e Olivier enfim apareceram, embarcaram na linha Distrito Industrial e eu também. Fiquei na parte dianteira do ônibus, e não atravessei a catraca, ocupei um assento preferencial por ali já que o automóvel não estava tão ocupado e assim evitar que me reconhecesse.
Paramos no Distrito Industrial, como já esperava. Pedi informações ao cobrador a fim de ganhar tempo até que desembarcassem, segui-os com os olhos. Adentraram numa fábrica de reciclagem. Alguns carroceiros faziam uma pequena fila com seus carros carregados de papelão, latas e embalagens plásticas do lado de fora, alguns até crianças. Uma mão toca meu ombro.
- O que fazes aqui amigo, podemos lhe ajudar? – Disse um homem calvo, com bigodes acompanhado de Jacques.
- Me desculpe, estava de passagem, trabalho para um jornal.
- Jornal? Tu tá de brincadeira comigo Jacques?! – Disse se voltando para o negro ao seu lado.
- Nom sabia, eu nom sabia que era jornal.
- Porra cara, está querendo me foder? Porra cara!
Jacques estava nervoso, não de raiva, de nervosismo, parecia temer algo e gesticulava com as mãos, pedia que o outro homem se acalmasse e transpirava mesmo com todo frio que fazia aquela manhã.
Eu não sabia o que dizer, mas imaginava o que passava por suas mentes exaltadas. Aquele homem decerto empregava vários imigrantes naquela fábrica, na sua maioria ilegais, explorando-os acima de qualquer lei e Jacques, o pobre temia pelo emprego dos seus companheiros.
- Jacques fala, Jacques pede para falar.
- Falar... é bom que fale ou nunca lhe vi antes seu senegalês duma figa!
Jacques pediu para que conversássemos, fomos até a esquina. O sol tocava a sua pele negra, iluminava seus olhos amarelos afligidos de uma preocupação, suas mãos ainda suavam, sua testa se desdobrava em rugas de aflição...
- Jacques tem esposa em Haiti, também filha doente. Também amigos de Jacques da fábrica tem família em Haiti.
Sua pupila se debatia, parecia faltar espaço, queria fugir do olho que a conservava...
- Trabalha em fábrica pra trazer família pra junto, para morar aqui com Jacques.
Me sentia culpado, culpado de uma culpa que ainda não entendia, mas o fato da filha... Jacques também tinha uma filha e doente, assim como Júlia, e assim como eu lutava para tê-la por perto... Me perdi, me sentia enfermo, o sol que tão sutilmente tocava os olhos daquele homem me dava náuseas agora.
- Entendo Jacques, não se preocupe - e saí, tão rápido que em pouco os gritos do calvo da fábrica que pedia que voltasse em meio a alguns palavrões se emudeceram aos meus ouvidos.
Fui ao hospital ver Júlia. Teu sorriso, teu cheiro tão doce e voz tão macia me fizeram recuperar os sentidos. Minha pequena, minha pobre pequena! Tão poucas chances terá não encontrar um doador. Me viu chorar pela primeira vez...
“Penso que será uma excelente matéria, estamos ansiosos para publicá-la no jornal.
Ressalto que o texto deverá ser entregue o mais breve.
Att,
Eduardo, Editor Chefe Alerta Capital”
Ao anoitecer dei fim a minha estadia no Copa Hotel e então tomei um táxi.
Cogitei que me esperassem, mas creio que suas esperanças eram poucas, talvez aguardassem uma visita para me oferecer estadia, mas certamente não que bateria a sua porta pedindo abrigo, ainda mais com um emprego em vista. Meu sogro sorria e não conseguia disfarçar, de certo não por minha resignação, mas pelo prazer de me ter em sua casa, e pedindo, assim como sua arrogância entendia que deveria ser.