Começo dizendo que este é um pequeno relato
sobre a minha vida. Talvez seja algo muito pessoal, mas tenho de escrever, nem
que seja para que as memórias se materializem em letras numa tela de
computador.
Sobre o criado mudo, ao lado da minha cama,
tenho um pequeno suvenir de um pedaço da minha história que deduzo ter sido o
mais feliz.
É uma fotografia...
De Letícia.
Ela está de costas, um forte ao fundo, a
água da praia roçando-lhe nos quadris, o cabelo esvoaçando ao vento. Não posso
ver, mas sei que ela tem um sorriso no rosto. Primeiramente tímido, depois uma
curva meiga — até mesmo sensual — que lhe empresta uma beleza radiante à face.
É uma foto antiga e quando a examino de perto, vejo uma mancha marrom-escura no
canto superior direito, cortesia de uma espanhola louca que tentou tacar fogo
na foto, muitos anos atrás.
Seguro a foto, só por um instante, e
lembro-me de tudo, nos mínimos detalhes:
(...)
Quando eu tinha 15 anos, sonhava em ser
fotógrafo e viajar pelo mundo.
Estávamos nas férias de dezembro, em Cabo
Frio, eu e minha família. O sol ardia, inclemente, e o vento litorâneo trazia o
cheiro de sal para o continente.
Todos estavam sob guarda-sóis, esparramados
em cadeiras de praia, tomando água de coco ou comendo camarões. Meus pais e meu
irmão não pareciam se mover, alheios a tudo o que acontecia ao redor.
Aquilo tudo parecia chato para mim. Eu
havia visto uma loja de máquinas fotográficas perto de onde estávamos e não
perdi tempo. Fui até lá, a passos largos, indo ao encontro do meu sonho. A
máquina da vitrine que eu nem sabia a marca. A máquina que eu não fazia ideia
do preço, nem de como se usava. Ela estava lá, me seduzindo, chantageando-me,
chamando-me e, aos poucos, minha testa foi-se apoiando ao vidro e comecei a
sonhar acordado.
Não sei por quanto tempo eu fiquei neste
devaneio. O que sei foi que escutei uma voz feminina, bem suave e melodiosa,
perguntando-me:
— Você sabe qual é a máquina?
Afastei minha cabeça e vi o reflexo da
menina na vitrine. Ela tinha cabelos negros, lisos em cima e cascateavam,
encaracolados, abaixo dos ombros. Os olhos eram como o céu noturno e a pele,
leitosa e lisa, refletia a luz do sol. A menina parecia ter a minha idade.
— Não sei. — Disse, desviando o olhar.
— Parece uma Nikon D3100 — ela disse.
— Como você sabe?
A menina abriu uma bolsa que parecia grande
demais para o tamanho dela. Tirou de lá a máquina e me mostrou. Parecia pesar
como um tijolo. Mas era bonita.
— Gosta de fotos? — Ela me perguntou com
uma sobrancelha arqueada.
Simplesmente meneei a cabeça. Nunca fui bom
em falar perto de meninas bonitas e minhas bochechas enrubesceram. Mal consigo
olhá-la, mas vejo um lampejo de um sorriso, os dentes perfeitamente encaixados.
Ela suspirou. — Quer que eu te mostre como
usar?
Lembro-me que meus olhos adquiriram um
brilho travesso e disse que sim. Que era tudo o que eu mais queria. Ela deu uma
risada e disse que se chamava Letícia. Cumprimentei-a, dizendo o meu nome:
Douglas. Ela tem as mãos macias, aveludadas e um calor confortável.
— Você já tirou alguma foto antes?
— Não — eu disse — Não com uma câmera
dessas.
Letícia resolveu que seria bom que eu
tirasse a minha foto na Praia do Forte. Ela me mostrou todas as ferramentas da
câmera, dizendo sobre o ajuste da abertura da lente, da velocidade e do ISO.
Também me disse que era bom eu ter um ponto de apoio, para que a foto não
ficasse tremida.
— Vai ficar uma foto perfeita — Ela
comentou. — Com essa paisagem e tudo o mais.
— Quase perfeita. — Eu disse. — Precisamos
de um tema.
Fiquei surpreso comigo mesmo quando disse
aquilo e vi um leve rubor nas bochechas de Letícia. Um tom de vermelho que me
fazia lembrar o blush que minha mãe
usava.
Ela contestou, dizendo que não podia fazer
isso e ficamos argumentando por algum tempo e a menina, finalmente, acabou
cedendo. Letícia tirou as sandálias, pondo os pés delicados na areia compacta.
Depois, tirou o pequeno short e a camiseta, revelando um biquíni branco, como o
leite. Seguiu em direção ao mar, lentamente. As ondas rebentavam contra algumas
pedras. Vários surfistas estavam levando “caldos” vergonhosos e, ao horizonte,
o céu se encontrava com a terra num abraço infinito. Ela tentou, em vão, arrumar
os cabelos, pois o vento os fazia balançar. Era perfeita, para mim, aquela
imagem. Então, ela se virou para trás e me disse:
— Conte até 35, ok?!
Virou-se outra vez para o mar. Eu não havia
entendido o porquê de contar até 35, mas supus que ela quisesse tempo para
arrumar a melhor pose. Ajoelhei-me, fazendo de um dos meus joelhos o meu ponto
de apoio.
Um... dois... três... quatro...
(...)
Estou deitado na cama, as persianas
fechadas, mas consigo ver o rosto de Alejandra. Uma caixa de pizza está no chão
e alguns copos sujos, jogados pelo quarto do hotel. Eu a havia conhecido no dia
anterior, num pub em Zaragoza. Espalhadas pelos lençóis da cama estão as fotos
de minhas viagens que mostrei para Alejandra. Fotos de Varanasi, Sidney,
Montevidéu, Buenos Aires e Paris. Mostro as fotos de um congresso que fui, em
Zurique. Outra que tirei de vários skinheads, em Viena. Alejandra observa que
não estou em nenhuma das fotos.
— Eu prefiro ficar atrás das lentes —
explico e é verdade.
Oito... nove... dez... onze...
Alejandra apoia-se nos cotovelos em cima da
cama e encosta-se a mim. Estende a mão até um maço de cigarros Marlboro, pega
um e acende. Eu estava cansado e disse que, se ela quisesse, podia olhar as
fotos enquanto eu descansava.
Depois de meia hora, sinto uma cutucada nas
costelas. Abro os olhos, atordoado, sentindo o cheiro forte do cigarro.
— ¿
Esta chica es tu novia, hã? —
pergunta, em espanhol. Ela havia encontrado a foto de Letícia na praia.
Alejandra queria saber se a menina da foto era minha namorada.
— No. — Respondo.
— ¿ Su
cohabitación o hermana? — Perguntou se era a minha amasiada ou irmã.
Simplesmente nego com a cabeça. Alejandra
fica a olhar para a foto e para mim. — Creo
que ella es tu esposa! — E, depois de falar isso, pega o isqueiro e começa
atear fogo na foto. Entro em desespero. Pego as fotos, minhas coisas e saio.
Quinze... Dezesseis... Dezessete... Dezoito...
De repente, mando o motorista do ônibus
parar e dar meia volta, pois tinha esquecido algo em Jerusalém. Ele murmura
qualquer coisa em hebraico, mas não consigo entender. Depois, em inglês, diz
que é inviável, pois o risco de ataques dos palestinos é muito grande.
— It’s
really important!— Digo que é muito importante, mas ele nega com a cabeça.
Desço do ônibus, determinado a não deixar nada para trás.
— What
is so important? — Ele me questiona enquanto pego minhas malas.
— Uma fotografia.
Eu a tinha esquecido na recepção do hotel,
pois havia tirado da minha carteira, para olhar e, por alguma razão, não
devolvera ao lugar. Quando cheguei, a fotografia ainda estava sobre a poltrona
de couro. Fiquei aliviado.
Vinte e sete... vinte e oito... vinte e nove... trinta...
Em
Pequim, durmo sob viadutos. Amsterdã, num albergue junto com viciados em LSD.
Às vezes, esbanjo um pouco e vou para um hotel, tomar banho e fazer a barba. A
fotografia sempre comigo.
No Minato Mirai, em Yokohama, vejo o sol se
por, deixando um reflexo chamejante nas águas do Pacífico. Conheço dois
alpinistas que escalaram o Everest, no Nepal. Recuso uma refeição de insetos,
na Tailândia.
Em Los Angeles, vejo as estrelas brilharem.
Em Montreal, tremo com o frio da noite, mas o pensamento daquele dia ensolarado
numa praia de Cabo Frio me aquece e consigo dormir.
Trinta e um... trinta e dois... trinta e três...
Acordo num lugar que me parece ser um
hospital. O ar está pesado e cheirando a remédios. Um ventilador de teto mal
refresca o ambiente e, pelos murmúrios ao redor, sei que muitas pessoas estão
esperando para serem atendidas. Pergunto para um enfermeiro onde estou e ele
diz, em urdu, que estou na Somália. Pela sua vestimenta, sei que ele é um
muçulmano e, depois de um tempo, pergunto o que estou fazendo naquele hospital.
— Malária. — Ele respondeu. — Mas se Deus
quiser o senhor ficará bem. Allah
u Akbar. — Ele diz que Alá é grande, em urdu.
Pergunto sobre as minhas coisas. Que coisas?, pergunta o muçulmano. Todas
as minhas coisas sumiram. Minhas roupas, máquina fotográfica, meu dinheiro.
Tateio o meu bolso e suspiro. A foto ainda está lá.
— Quando eu vou sair daqui?
Ele olha para baixo e diz que,
provavelmente, eu não saia.
Pego a foto. Letícia, seu cabelo esvoaçado,
os pés descalços, o biquíni branco. O Atlântico furioso, lançando ondas
espumantes contra as pedras. O forte. Sinto um nó na garganta. “Não quero
morrer aqui”, pensei, “longe dela”.
Passa-se uma semana e melhoro. Os remédios
respondem bem e recebo alta.
Vou à Irlanda, Noruega e Dinamarca. Ando
nos belos ônibus avermelhados de Londres e nos riquixás coloridos de Nova
Délhi.
Só então, finalmente, volto para casa.
Trinta e quatro... trinta e cinco.
Clico no botão e a foto é tirada.
(...)
Não sei o que dizer dos meus sentimentos
sobre a menina da foto. Nunca mais a encontrei depois daquelas férias de verão
e admito que foi minha culpa. Eu devia ter dito alguma coisa, qualquer coisa
que a fizesse saber que ela era importante para mim. Mas não fiz.
A história está chegando ao fim. Desligo o
meu notebook e me levanto da escrivaninha. Minhas costas doem. Como
doem!Deito-me na cama e passo os lençóis por cima de mim. Neste momento —
sempre neste momento — tudo vem para mim com uma força colossal: eu estou com a
máquina nas mãos, Letícia está tirando as sandálias, lentamente, como se fosse
numa slow motion. Tira o short, a
camiseta. Seu andar é sublime. Ela põe os pés na água. Um pelicano voa ao
horizonte e vários pássaros marinhos alçam voo ao mesmo tempo, formando um
imenso V no céu. O biquíni branco parece ser algo celestial, os cabelos de
Letícia se agitam. O farfalhar do vento é como uma música. Sim. Uma música. E
lá em cima, perto das nuvens, uma pipa plaina, suavemente. As águas já batem
nos quadris dela e, então, estagna. Letícia se vira e me pede para contar até
35. Eu conto, tiro a foto e ela volta para mim. Sorri. Põe a mão direita na
minha face e, inclinando-se um pouco, me dá um beijo agridoce.
É com esta sensação que fecho os olhos,
vagarosamente, e durmo.