Não esperava nada além do tédio.
Anualmente nos encontrávamos na casa de Rodolfo para celebrarmos a existência
de nossa família. Ou algo relacionado à união dela, que eu particularmente não
conseguia notar. Rodolfo Couto era o quinto irmão de meu pai. Sete anos mais
novo do que ele, fez carreira militar no Rio de Janeiro e se casou bem moço.
Não fosse pela suposta união da família ele jamais teria retornado para Maringá,
onde o resto todo dos Couto ainda residia. O casarão que ele morava ocupava uma
área nobre da cidade e de comum acordo de todos era o melhor lugar para sediar
a celebração. Chacotas e bajulações à parte, o que mais me agradava nisso tudo era
a comida em abundância e em estrondosa qualidade. As enormes panelas postadas
no forno à lenha davam um ar mineiro. O bucolismo existia pelo fato que a festa
ocorria sempre no enorme quintal do casarão. Infelizmente, o almoço só seria
servido às quatro da tarde e no decorrer do dia beberíamos e comeríamos alguns
petiscos.
Mônica Kaneshiro era a esposa de outro
tio meu. O casal vinha do Japão, de onde não regressavam desde 1997. Mônica entrou
na casa acompanha de Fausto Couto e de uma moça que até o momento eu sequer
sabia sobre sua existência. Aparentando seus dezoito anos, a garota tem o
cabelo negro azulado em um liso irregularmente ondulado. Os traços do rosto são
bem arredondados e orientais. Os olhos eram bastante puxados e grandes,
protegidos por uma estreita e corredia sobrancelha. Os lábios eram curtos e
rosados. Seu corpo tinha curvas sinuosas o bastante para que a moça pudesse ser
confundida com uma típica brasileira formosa. Senti-me estupefato com o ar
indiferente que ela carregava e com sua beleza desnorteante. Dei-me por
convencido de que iria conhecê-la naquela tarde. E não perdi um segundo sequer.
Após todos cumprimenta-los tratei de encaminhá-los pelo casarão arranjando-lhes
um lugar um pouco mais isolado de todos. Sentei-me junto ao trio à mesa. Tio Fausto
estava satisfeito com a atenção que eu prestava a eles. Parecia que eu era o
único ali interessado em conversar com eles, o que de certa forma os agradava
muito. Mônica era mais reservada, limitando-se a apenas responder o que eu
perguntava e a sorrir quando necessário. A garota não deu um pio e olhava para
os lados frequentemente. Seu nome era Clarice e ao nos apresentarmos ela me
fitou de maneira tão fixa que senti um estranho desconforto. Contei para eles
que abandonei a faculdade de Física quando recebi uma proposta de trabalhar
como gerente de uma agência de encomendas e eles ficaram surpresos. Não dei
maiores detalhes, mas a partir daí Clarice não desgrudou mais seus olhos de
mim. Ela disse que iria até a cozinha buscar algo para beber que lhe agradasse
e eu decidi acompanha-la. Novamente a satisfação evidenciou-se no casal e eu de
certa forma senti que isso representava um sinal verde para nos dois.
No caminho até a cozinha, ela não disse
nada. Entrou pegou um copo de limonada na geladeira e misturou com um chá mate
que estava em outra jarra. Limitei-me a segui-la com um copo de refrigerante. A
garota andava de forma majestosa e pausada. Ou eu estava bastante apaixonado ou
seus pés que calçavam um par de sandálias fechadas mal tocavam ao chão. Ao
invés de voltar para a mesa de seus pais ela sentou-se em uma mureta próxima a
área de serviço da casa e me perguntou se eu queria saber por que ninguém a
conhecia. Rapidamente ela se corrigiu dizendo que todos fingiam não a conhecer.
Demonstrei interesse e acenei com a cabeça dizendo que queria saber mais sobre
isso. Ela não me deu um detalhe sequer de sua vida. Disse-me apenas que ninguém
da família tem fotos dela e que alguns prefeririam que ela nunca tivesse
existido. Contou-me que nos anos que passou no Japão desenvolveu uma doutrina
própria onde era necessário estender um lençol lilás por sobre todos os móveis
da cozinha para que sua crença se estabilizasse. Além disso, sete contas feitas
com bordado e conchas do mar deveriam estar ao redor de todos os vasos
sanitários de sua casa. Feito isso ela atingiria seu singular nirvana num transe excêntrico e
solitário, pois claro, só ela seguia sua doutrina. Naquele momento eu estava de
fato fascinado com tudo aquilo que ela me dizia, mas meu interesse maior era
apenas carnal. Ela me prendia pelo seu jeito único e claro, pela sua
inalcançável beleza.
Repentinamente seu olhar se tornou
estático ao notar que um gato caminhava pelo muro da casa. A parede era repleta
de lodo e folhagens, o que sugeria um aspecto bem gótico e assustador. Aquele
gato branco se arrastava suavemente pelas relvas. Como que se recitasse uma
oração Clarice sibilou algumas palavras que remetiam a elegância e discrição do
andar dos gatos. Algo sobre como eles sobreviviam em qualquer situação e
repetia firmemente que viver pensando só em si próprio era a melhor qualidade
que o homem poderia ter para si observando o estilo de vida gatos. Assim que o bichano
pulou para a rua ela saiu de sua súbita hipnose e me disse que no seu bolso se
encontrava a única foto que havia sido feito dela. Com sua pequena mão esquerda
ela retirou um recorte amarelado de jornal e me entregou com um bizarro sorriso
no rosto. Um torcer de lábios de um mistério tão vasto que só se via algo
similar no quadro da Monalisa ou algo que o valha. A notícia do jornal era
sobre o massacre de crianças em uma escola primária no Japão. A assassina era
Clarice Couto Kaneshiro, que na foto carregava uma submetralhadora, trajava um
uniforme escolar escuro e não ilustrava nenhuma feição em seu rosto. As cores
gritantes e o mau gosto evidenciado pela escolha da foto acusava o caráter
sensacionalista do jornal que noticiou o ocorrido. A nota curta não dava muitos
detalhes e limitou-se a comparar a garota com os jovens assassinos do massacre
de Columbine. Aquele foi o único jornal brasileiro a relatar o ocorrido, no
Japão a imprensa foi totalmente barrada. Por incrível que pareça a notícia não
me chocou nem um pouco e o sentimento que ardia em meu peito incrementou-se ao
olhar novamente para Clarice após ler o jornal. Meu coração parecia que iria
explodir, eu nunca havia sentido isso por ninguém. Clarice notou o que eu
estava sentindo e se aproximou de mim. Nossos lábios se tocaram por automatismo
e ela não se mostrou evasiva. Beijamo-nos longamente e ela não hesitou.
(...)
Clarice tomava seu chá gelado. Seus
colegas de classe preferiam café. O gatinho marrom de Clarice se chamava Sembe.
Já era habitual que o felídeo ficasse aos seus pés enquanto ela tomava seu chá.
Por estranhar tanta gente na cozinha o gato deitou-se ao lado de um dos garotos
que tomava café. Katsuhito era um garotinho muito efusivo e adorava
traquinagens. Não se aguentou ao ver o gato bocejando de sono e derramou café
no dorso de Sembe. O gato estremeceu e num berro de dor se jogou janela a fora
num salto imenso. Todas as crianças se esbaldaram em risos de escárnio. Clarice
mirou Katsuhito sem qualquer expressão facial. Espatifou sua xícara no chão e vociferou
para que todos fossem embora dali.
(...)
Clarice contou-me que após o ocorrido
passou sete anos internada em clínicas, submetida a intensas sessões
psicológicas perante ingestão de medicamento pesado. O curioso é que seu
tratamento ocorria em paralelo ao de alguns colegas que sobreviveram e também
com pais de alguns outros que ela havia assassinado. Ela sorriu sem som e disse
que não sabia por que tinha feito aquilo. Disse que encontrou a arma no cofre
da casa de uma colega enquanto brincava de pique-esconde. A garota era filha de
um oficial, que por distração não havia trancado a caixa no dia em questão. Ela
guardou a arma discretamente em sua mochila. Na manha seguinte, entrou na sala
de aula e disparou contra alguns de seus colegas. Detalhou que quando atirava a
pressão que a arma exerceu contra seu corpo à fez ver intensos clarões lilases
e que foi a partir daí que passou a dar vazão a sua própria doutrina. Ela
necessitava de sentir aquilo tudo de novo. Voltamos a nos beijar. Dessa vez por
decisão minha. Clarice pareceu não estar gostando do rumo que isso estava
tomando. Disse-me que assim seria mais fácil e correu para o interior da casa.
O sentimento que passava pela minha cabeça é que eu realmente havia estragado
tudo. Eu devia ter tentado entende-la, questionando-a mais sobre o ocorrido e
sucessivamente mostrando-me interessado. Decidi não ir procura-la por agora e
me juntar aos seus pais.
Novamente conversei com Fausto e afirmei
que sua filha era uma rapariga muito especial. Ele me retribuiu com um riso
sonoro e sincero. Seus olhos realmente brilhavam e assim faziam-se também os de
Mônica. Um calafrio percorreu minha espinha, pois pela primeira vez naquela
tarde passei a suspeitar de algo estranho, já que o casal trajava roupas com os
mesmos tons escuros que os do uniforme usado pela filha na manhã do massacre.
Tornei a mesa onde se encontravam meus pais e recordei-me amargamente do hostil
terreno de “união” no qual me encontrava. Era evidente que todos ali buscavam
apenas a herança de meu avô. O patriarca Dantas Couto já andava com um pé na
cova. Dividir os bens com catorze filhos com certeza não será uma tarefa
simples de resolver. Pra piorar o velho decidiu que sua família não necessitava
de testamento já que todos se amavam por igual. Pudera eu me fazer de bobo de
maneira tão hiperbólica.
O gato branco regressara ao muro e já era
hora do almoço ser servido. O delicioso aroma recendia por todo o jardim. Meu
estomago roncava e minha boca estava inundava de saliva. O mais engraçado é que
o sentimento de paixão intensificava essa fome de uma maneira muito excêntrica.
Eliza Ribeiro Couto, esposa do anfitrião da casa foi quem destampou as desmedidas
panelas. Enquanto isso o marido agradecia a presença da enorme família e salientava
o quanto estava feliz por ter uma família tão harmoniosa. O senil Dantas sentia-se
bastante orgulhoso em sua cadeira de rodas e foi o primeiro a despregar um
prato vazio da mesa para se servir. Ao puxar o pesado prato de porcelana um pedaço
de papel revelou-se na mesa. A seguir, todos que pegaram um prato tiveram a
mesma surpresa. Ao terminar de ler o papelucho, Dantas deixou o prato deslizar
de sua mão e inesperadamente desmaiou causando imediata preocupação em todos os
presentes no casarão. O velho estava morto. Um longo silêncio percorreu o
jardim onde todos agora liam o papel que se encontrava debaixo de cada prato.
Tratava-se de cópias do recorte de jornal que noticiava a chacina na escola de
Clarice. Era evidente que os papeis haviam sido recortados de jornais, mas tudo
soava meio falso, pois não havia nada nas costas dos recortes.
O longo silêncio foi cortado pelo som de
passos vindos à direção da cozinha do casarão. Clarice calçava um sapato preto
bastante lustrado, uma saia preta de brim e uma blusa azul escura. Tratava-se
do mesmo uniforme que a garota usava no incidente da escola e também das mesmas
cores que vestiam seus pais. A submetralhadora em suas delicadas mãos também
parecia ser a mesma. Sua beleza continuava lá, intacta. Superior. Como se um
marcador de livros em um álbum de fotos estivesse sido retirado da última
imagem que tive de Clarice. Seus pais já não se encontravam mais na mesa e
dessa vez três gatos postavam-se ao muro dos fundos. O gato branco, agora
acompanhado de um casal de gatos negros, observava a família Couto por cima da
parede. Clarice entrou repetindo uma frase curta de maneira estática e
automática. Não parou de proclamá-la nem mesmo enquanto puxava o gatilho e
dizimava sua família, que segundos antes a repudiava por provocar a falência de
Dantas Couto. Sabia que sua suave voz seria a última coisa que ouviria e sequer
senti medo. Que fim melhor todos nós poderíamos ter? A garota alvejava um por
um e a assustadora indiferença em seu rosto novamente fazia com que meu coração
chacoalhasse em meu peito. Os gatos assistiam ao banho de sangue com intensos
miados e pareciam extasiados com um febril brilho lilás que refletia o vitral
da cozinha com o clarão dos tiros disparados. Fui poupado pela moça e observava
tremendo, o sangue se misturando por todo o chão do jardim. Os gatos se
aproximaram e para que não se sujassem de sangue saltavam levemente de corpo em
corpo pelo chão. O trio se aproximou de mim, mas logo saíram em disparada
quando fui baleado no estomago por Clarice. Sua voz repetia a mesma coisa desde
que saiu de dentro da cozinha.
(...)
Sembe cortou-se ao pular da janela da
cozinha, pois caiu bruscamente em cima de uma torneira que ficava no jardim da
casa de Clarice. Não resistindo às dores da queimadura e do corte, o bichano
morreu ali mesmo. A garotinha o encontrou enquanto ele solfejava seu último
miado. Sua dor refletia a mesma dor que a de Clarice sofria por perdê-lo. Um
borrão preto percorria aquele marrom intenso.