Naquela manhã a última coisa que
eu precisava era de ter que me levantar. O sol já preenchia com luz todo o meu
quarto e os clarões já não ofuscavam mais minha visão. O perfeccionismo de meu
pai ao projetar a planta de nossa casa, fez com que todas as janelas dos
quartos iluminassem as camas assim que o sol nascesse. A luz incide do começo da
cintura até os pés, de maneira com que os primeiros raios não incomodem os
olhos e nem que esquentem demais a cama. Toda aquela paixão que eu estava
sentindo desaparecia e em seu lugar uma aflição bombardeava meus anseios para
que tudo aquilo fosse esclarecido. Na verdade eu nunca demonstrei que estava me
sentindo apaixonada ou algo do tipo. Definitivamente isso é algo que eu
geralmente nunca deixo transparecer, mas que de todo jeito ainda me deixa numa
posição confortável perante tudo, pois sempre houve quem pensasse e agisse por
mim nessas situações. Como se isso de alguma maneira segurasse a pessoa que
estivesse interessada em mim.
Mas dessa vez é algo maior e toda essa minha demora e errônea
impressão de desinteresse pode resultar em algo trágico e eu deveria evitar.
No caminho até o colégio eu não
tirava isso da cabeça e nem mesmo mudando de trajeto duas vezes consegui me desvencilhar
disso. Eu deveria relaxar, pois já havia tomado meu banho que em cada manhã
servia para que eu realmente despertasse e me sentisse disposta para o resto do
dia. O que geralmente sempre funcionava e, além disso, eu havia usado até o
perfume novo que ganhei de presente dele e acertado no meu penteado. Nada
sairia errado.
Parecia até que os horários
escolares se arrastavam como lesmas de uma tonelada ou mesmo que o tempo
tivesse me escolhido pra me chatear naquela manhã... O fato de estudarmos em
colégios diferentes também colocava minha ansiedade a toda prova, mas
finalmente nos encontramos e já estávamos fazendo o percurso de volta para
minha casa.
- Laura, eu consigo ver que você
está nervosa. Seu pai é tão severo assim? Porque eu estou muito tranqüilo
quanto a tudo e até...
- Não se trata dele ser severo...
– respirei fundo - O problema não é ele te aceitar e sim você aceitar ele – Foi
a coisa mais séria que eu já tinha dito em toda minha vida e eu não queria
mesmo que isso fosse um problema para nosso namoro.
- Escuta. Eu gosto de você e sei
que vou aceitar ele. – Notava-se que ele não entendia o que era pra ser
aceito... - Confia em mim!
Como eu queria que só a confiança
dele resolvesse isso. Seria a terceira vez que eu me sentiria insegura com a
idéia de alguém ir conhecer meu pai. Ao chegarmos em minha casa encontramos o
jardim recém tratado e o regador jogado ao chão, que por sinal ainda estava molhado
e bem próximo das tulipas. Mamãe nem chegou a vê-las tão lindas assim e
provavelmente que Leonardo nem tenha as notado. Claro que o cheiro do Ravióli
que meu pai preparava desviaria a atenção até da mais bela e perfumada tulipa
do planeta e o aroma que agora invadia todo o jardim. Além de invejar o vizinho
e instigar o paladar também aflorou os tremores de Leonardo que agora começavam
a desapontar freneticamente desordenados. Sabia que ele cederia e isso
utopicamente começava a me animar.
Ao entrarmos notei que havia uma
mala ao lado das escadas. Aquele cheiro esplendido estava por toda a casa e nesse
momento nota-se que a tão bem elaborada arquitetura da casa apresentava um
pequeno probleminha em dissipar o cheiro de alimentos pelos outros cômodos da
casa. Nessa situação foi um erro bem cabível, já que o aroma era agradável,
salvo algumas vezes em que eu queimava algo nas minhas frustradas tentativas em
prepara algo! Meu pai estava na cozinha e vestia um avental de uma cerveja
belga desconhecida, trajava aquelas luvas engraçadas de cozinheiros e um par de
sandálias um tanto quanto “mitológicas”. A mesa na copa estava estupenda e
havia até mesmo taças de cristal que geralmente meu pai usava para ocasiões
especiais em que ele servia o vinho chileno que ele tanto adorava. Acho que a euforia
do preparo do almoço fez ele se esquecer de que seus convidados não haviam
feito sequer dezesseis anos. Leonardo permitiu que eu os apresentasse:
- Pai, esse é o...
- ...garoto que vai cuidar muito
bem da minha filhinha! E eu espero que suas mãos não estejam tremendo assim
quando a Laura estiver em alguma encrenca!
Meu pai conseguia ser sempre
adorável. Até mesmo com meu primeiro namorado que agora já se sentia mais aliviado
e confortável ao ouvir essas palavras.
- ...a propósito, meu nome é
Alberto. E não me trate por sogro! Vocês ainda não têm idade para se casarem. –
Papai soltou uma enorme gargalhada e todos os tremores de Leonardo
despareceram!
O almoço ocorreu perfeito e
parecia agora que os dois já se conheciam a anos. Obviamente o vinho deu lugar
a um delicioso suco de uva que para quem não degustasse ousaria dizer que se
tratava mesmo de vinho, por estar tão bem translúcido naquelas luxuosas taças. Meu
pai percebeu que eu tinha encontrado uma boa companhia e se sentia bastante
orgulhoso de mim e acima de tudo se sentia satisfeito por ter cozinhado um Ravióli
tão suculento. De longe devia ser o melhor que ele já havia preparado! Claro
que Leonardo começava a notar que meu pai era um tanto quanto perfeccionista e afeminado,
mas preferiu continuar na dele...
Ao terminarmos Leonardo se levantou
e foi até a cozinha onde paulatinamente começou a lavar os pratos e talheres
que havíamos sujado no almoço. Corri até ele apavorada e disse:
- Olha não precisa se preocupar...
- Laura, eu tenho esse hábito
desde garoto e não...
- A nossa empregada sempre limpa
tudo...
- Eu nunca tive empregada! Você
pode aprender muito sem uma. Dá pra ver que seu pai faz de tudo pra vo...
O tilintar da campainha
interrompeu a nossa conversa. Meu pai que nos observava instigado da copa se
levantou serenamente e foi até a sala atender a porta. Era seu namorado Cícero
e papai não economizou folego naquele ardente beijo ao recebê-lo. Os dois deram
as mãos e foram até a cozinha. Senti um frio passando pela espinha seguido de
um arrepio breve.
- Leonardo, eu quero que você conheça...
- Tio Cícero?
O espanto foi com todos. Cícero
corou e com o impasse não proferiu uma palavra sequer. Meu pai iminente do
constrangimento dos dois postou se apenas a observar. Eu que antes me sentia
preocupada sobre o aceitamento do homossexualismo de meu pai me via agora
forçada a torcer para que uma família não fosse destruída. Quiçá duas. Os olhos
de Leonardo lacrimejavam e Cícero já pálido esfaqueou todo aquele silêncio:
- Leonardo? O que você faz aqui...?
- Eu deveria te fazer a mesma
pergunta se já não tivesse entendido tudo! Eu estava a conhecer o pai de minha namorada
que por sinal parece ser o seu namorado! Disseram-me que você tinha fugido de
casa há alguns dias? E o seu noivado com a Carmen, o que vai ser?
- Eu consigo explicar! Já não
encontrava mais o que eu queria na Carmen. Aliás, nem em mulher alguma. Você me
entende... Eu sempre tentei dizer isso pra ela, mas ela não conseguia ou não
queria entender! – Cicero agora parecia mais aliviado ao contrário de mim que
estava com as pernas tremulas e suando frio. O único aspecto positivo em tudo é
que eu não detectava nenhum sentimento preconceituoso sendo proferido de Leonardo
- Olha estou indo agora viajar com o Alberto e ficarei fora por duas semanas...
- De fato tio, você fugiu!
- Não é isso garoto! Você ainda
não sabe nada sobre como conseguir felicidade plena! Vai querer abrir mão de
muitas coisas quando souber, é muito imprevisível...
- Eu não sei se quero entender!
Mas por que fugir assim da Carmen? Isso é covardia... – não conhecia esse lado
desequilibrado de Leonardo, mas confesso que ele ficava bem charmoso com essa
expressão fechada.
- Covardia ou não estamos de
saída! Desculpe-me Leonardo.
Meu pai olhava para baixo e eu o
fitei um tanto decepcionada. Será que ele tinha conhecimento que Cícero havia
abandonado mesmo essa tal de Carmen? Os dois viraram de costas e meu pai se
resumiu apenas em nos dar um olhar que serviria tanto para repreendimento de
Cícero ou mesmo de vergonha própria. Leonardo ao contrário mostrava uma visível
ânsia de choro e tudo que eu fiz foi o abraçar.
- Eu só queria que você aceitasse
meu pai e não que isso tudo acontecesse!
Agora nos dois é que chorávamos e
sem nenhum pudor ou censura de ninguém. Senti que aquele abraço carregado de
lágrimas seria um dos mais intensos que já tive em toda a minha vida.
Ouvimos o ronco do motor do carro
de Cícero e eles nem se deram ao luxo de se despedirem. Espero que essa viagem
da qual eu mesma nem tinha conhecimento sirva de reflexão sobre esse conturbado
reconhecimento ou algo que o valha.
Meu quarto com certeza não seria
o refúgio ideal para nós. Minha bagunça já se acumulava sobre minha cama e o
dia estava límpido e ensolarado demais para ser desperdiçado em apenas em uma
janela. Fomos para o jardim dos fundos e sentamos nas velhas gangorras azuis.
Embaixo de nossos pés não havia mais grama devido ao atrito dos pés para
movimentar as gangorras, mas ao redor tudo se mantinha impecável.
- Olha Leonardo, me desculpe pelo
papai... Ele não conseguiu se interessar por nenhuma mulher depois a mamãe
faleceu e agora opta por esse tipo de vida só pra se saciar, eu não sei te
explicar bem como são as coisas. – Comecei novamente a chorar – Eu sinto muita a
falta dela. Nos a amávamos tanto! Não imaginava que o Cícero fosse seu tio, se
eu soubesse eu nem teria te chamado para almoçar aqui hoje e nem...
- Laura, eu não me importo com
isso. De verdade. Não tenho nem preconceitos! Meu único susto foi com meu tio
Cícero que abandonou a Carmen de uma maneira meio bruta. Muito da minha
personalidade foi formada por ele... Não esperava que ele abandonasse tudo
assim! Mas pelo que me parece foi tudo por uma boa causa... Eu não entendo o porquê
das pessoas se interessarem por pessoas do mesmo sexo. Aceito tudo numa boa. Mas
assim como ele mesmo disse: eles só estão buscando essa tal felicidade plena.
Por Deus, eu entendi bem o que ele quis dizer! Eu sempre sinto isso quando
estou com você!
Como eu me sentia apaixonada. Não
dava mais pra fingir. Seria besteira deixar que esse garoto passar direto por
minha vida. Ele se levantou do balanço e secou minhas lágrimas com a manga de
seu moletom. Aquele gesto e aquelas palavras me davam tanta segurança que
parecia até que meu coração rodava.
- Eu só quero o seu bem e se você
quiser continuar comigo, se levante daí, esqueça tudo e venha já comigo lavar o
resto daquelas louças na cozinha!
Eu tinha apenas quinze anos e já
me sentia totalmente completa.