quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Penedo - Francinele Valdivino

inverno, 2014

"Mas há sonhos que não podem acontecer e há tempestades que não podemos prever!" (Fantine)

            Houve um tempo em que pensava saber tudo sobre o amor. Significava que compraria flores e me lembraria de datas importantes, como aniversário de casamento, dia dos namorados e coisas do gênero. Também significava que seria eternamente fiel à Júlia e viveríamos juntos. Não seria difícil. Moraríamos numa casa simples em Resende, com jardim de amores-perfeitos e um balanço de madeira. Teríamos um Doblô — Júlia sempre preferiu carros da FIAT — para viagens de férias e idas à Penedo aos fins de semana. Uma filha ou um casal de filhos. Quanto a isso, Júlia nunca fora específica, pois acreditava que o que Deus quisesse seria o melhor. Ela era assim, muito crente, quero dizer, e estou certo que foi essa fé inabalável que me cativou. Mesmo se os nossos sonhos e projetos não fossem realizados, via-me junto a ela, deitado na cama, rindo dos acontecimentos cotidianos.
            Parece simples, não é mesmo?  
            E, na verdade, é simples, mas temos a capacidade incrível de complicar a simplicidade das coisas mais bonitas da vida. E, por mais que eu admita que tenha feito tudo errado, ainda é-me difícil ter de abrir mão. Depois que esse dia acabar, estou certo que nunca mais a verei.
            Mas, por agora, vou-me esconder por entre as árvores que ficam próximas à residência dela: uma casa ao estilo europeu, pintada de vermelho com os umbrais das janelas e da porta pinceladas de branco, um pouco afastada das pousadas e hotéis que enchem o distrito de Penedo, uma antiga colônia finlandesa situada na parte fluminense da Serra da Mantiqueira. Faz frio aqui. Vejo a vegetação branca por causa da geada da noite anterior e recordo-me que Júlia sempre amou o inverno.
            São quase oito horas da manhã e percebo a porta da frente se abrindo, lentamente, e os escassos raios de sol banharem o rosto tenro de Júlia. Uma sensação estranha se apodera de mim. Uma palpitação redescoberta. Ela desce as escadarias da frente da casa e passeia-se pelo jardim. De onde estou, vejo, além dos amores-perfeitos, girassóis e orquídeas-dálmata. As flores parecem estar murchas por causa do frio, mas a presença de Júlia faz tudo retornar à vida. Ela boceja, espreguiça e, por um instante, tenho a sensação de que ela me vê, mas sei que é impossível. Quando você precisa viver escondido, camuflar-se se torna inerente ao seu ser.
            Ouço-a cantarolar e, depois de aprumar meus ouvidos, descubro que a música é “Do you dream of me?”, de Michael W. Smith. Essa mesma música era entoada no meu carro, há tanto tempo atrás, quando, pela primeira vez, peguei-a na mão e disse que a amava. Essa recordação me faz suar, apesar do frio. Júlia entra na casa novamente e, após cinco minutos, retorna para o ar fresco, com uma xícara na mão e um cardigã acinzentado envolvendo o corpo.
            “É tudo sua culpa”, uma voz murmura em meus ouvidos e, apesar de já ter consciência disso, sempre é doloroso. E o único remédio, para mim, é reavivar as memórias que estão guardadas.
            Elas são tudo o que me resta.
            (...)
            Ainda não disse o meu nome. Chamo-me Victor Augusto e sempre gostei da sonoridade, pois me parece imponente. Nasci em Seropédica, perto da cidade do Rio de Janeiro. Costumávamos chamar a cidade, no verão, de SeroHell e a única coisa que realmente fazia o povo se orgulhar era a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Foi lá que me formei em jornalismo e foi lá que a conheci. Era minha primeira semana de aula e eu já estava me sentindo completamente perdido naquela universidade. Em regra, estudantes de Comunicação Social são extrovertidamente loucos, mas eu não sou assim.
Naquela época eu acreditava que quando encontrasse a mulher perfeita, seria amor à primeira vista. Que viveríamos lindas aventuras, que nos casaríamos e pronto, dali em diante seria feliz para sempre. Simples e fácil!
Pois bem meus caros, a grande verdade é que o amor pode ocorrer de várias maneiras e formas. Às vezes ele, sorrateiramente, entra pelas brechas das portas e janelas e se infiltra no seu coração de tal forma que nada mais importará. Seu coração amará e ponto final.
Comigo foi assim. Eu estava sentado de baixo de umas das árvores que cercam o lago da universidade, lendo Les Misérables do meu quase xará Victor Hugo, quando uma sombra surgiu em cima das páginas. Olhei para cima para ver quem era e deparei-me com um par de olhos castanhos, quase pretos, me encarando com ar de deboche.
A garota era minúscula e seu cabelo era de um castanho bem claro, ondulado e cortado nos ombros. Uma boca pequena e vermelha que me lembrava uma cereja. Delicada demais para o meu gosto, mas até que não era de todo feia.
-Você está debaixo da minha árvore, seu “bixo” folgado! - disse a garota.
Era só o que me faltava! Uma veterana chata para me infernizar. Era minha primeira semana e eu já estava com ganas de que fosse a última. Pelo jeito as coisas teriam que ser do jeito difícil.
-Desculpa, mas seu nome não está escrito em nenhum lugar por aqui. Não sabia que era sua. - disse isso encarando-a com o sorriso mais irônico e ácido que encontrei no meu estoque de armas fatais.
- E como você sabe? Você não sabe meu nome…
Aquele rostinho pequeno e rosado estava começando a me irritar, então resolvi que não valia a pena.
-Nem vale a pena descobrir - dito isso, me levantei e saí dali sem olhar para trás.
Procurei esquecer o ocorrido e focar toda a minha atenção nas aulas e em terminar de ler meu livro.
Les Misérables é mesmo uma história incrível. Quanto mais eu lia, mais eu me encantava com a coragem e determinação de Jean Valjean, odiava Javert e sofria por Fantine. Embora tenha um cunho bem social, esta obra traz uma grande lição: uma boa ação pode mudar para sempre a vida de uma outra pessoa.
Eu estava refletindo sobre isso quando vi a garota da árvore sentada do outro lado do refeitório, mordiscando uma rosquinha enquanto lia um livro que eu não conseguia identificar.
Resolvi que era hora de fazer uma boa ação. Fui até lá e, silenciosamente, sentei ao lado dela e fiquei esperando que ela sentisse minha presença. Como eu não tinha certeza se a demora em me notar derivava de sua distração com o livro ou de estar me ignorando mesmo, resolvi arriscar um “oi”.
-Oi, garota da árvore.
Ela sufocou um grito, completamente assustada.
-Você me odeia? Quer me matar? Ou é só um idiota mesmo? - logo em seguida colocou os cabelos atrás da orelha, tentando recuperar a postura.
-Nenhuma das opções. Só queria fazer as pazes, me desculpar pelo outro dia e talvez, quem sabe, dividir uma árvore nos intervalos das aulas.
Ela pensou um pouco e disse:
-Acho que sou eu quem lhe deve desculpas. Eu estava apenas tentando fazer amizade com você, mas acho que escolhi um jeito ruim de começar.
-Tudo bem. Podemos começar de novo, se quiser…
- OK! Meu nome é Júlia, muito prazer Sr. ..?
- Victor - completei. - Victor Augusto de Mesquita, Srta. Júlia…?
- Júlia Caillat!
Eu tinha razão. Um pequeno gesto, uma pequena ação pode mudar tudo. Pode mudar sua vida e a das pessoas próximas para sempre. Aquela amizade iniciada ali, naquele refeitório, mudaria para sempre a minha vida. Meu modo de pensar, de entender e sentir o amor. Júlia se tornaria a razão da minha existência perpetuamente.
Ela estava um ano acima de mim e, durante os três anos que passamos juntos na faculdade, afirmo que foram melhores do que eu imaginava.
Certa vez, uma semana antes da formatura dela, Júlia me perguntou o que eu esperava do futuro. O que eu faria da minha carreira.
-Quero ser jornalista correspondente no Oriente Médio - respondi.
Ela fez uma pausa. Sua expressão estava inquieta e, de alguma forma, eu parecia ter falado algo errado.
-Parece ser um lugar meio longe de tudo, não?!
Sim. Era longe de tudo. Muitos sacrifícios deveriam ser feitos para chegar lá. Deixei de pensar e respondi. - Sim. É longe. - Fiz um silêncio. - Você iria comigo?
(...)
            O sol está mais alto no céu, aquecendo um pouco o ambiente. Júlia não está mais do lado de fora da casa e, enquanto não a posso ver, responderei algo que pode estar martelando na ideia dos que leem.
            Por que a estou observando? É uma pergunta difícil de responder. Não porque seja algo errado, legalmente falando, estar aqui. Mas sim porque a resposta está no passado. Nas minhas pequenas ações e na forma como elas mudaram o rumo do meu “felizes para sempre”.
(...)
Era o último ano dela e eu a ajudei com a monografia e todos os trabalhos acadêmicos. Eu ajudei com os relatórios de estágio, falsifiquei assinaturas de atestados médicos para justificar algumas faltas que poderiam fazê-la reprovar entre outros mil favores. Cuidei de todos os pormenores, exceto o mais importante: dizer o quanto ela era importante para mim.
Eis aí o grande erro das pessoas: elas não dizem o que sentem. Se escondem atrás da muralha do medo e da zona de conforto. A verdade tem um peso esmagador e, quando dita, tem o poder de libertar almas.
Era nítido que Júlia me amara desde o primeiro instante, mas para mim, era algo que não deveria ser levado a sério. Eu tinha uma carreira para construir, lugares para conhecer e naquele momento, não havia espaço para um “nós”. Só muito tempo depois é que fui perceber o quanto a amava. Pena que tarde demais.
Eu poderia ter dito a ela o quanto a amava, mas preferi deixá-la partir. Júlia voltou para Penedo, um povoado pertencente à cidade de Itatiaia, após a festa de formatura. Festa esta que eu não fui porque estava ocupado demais com os preparativos do meu intercâmbio para a Irlanda.
Foi na Irlanda, depois de 2 meses de festas e pegação que eu percebi um pedaço faltando em mim. Era um buraquinho pequeno, sutil no início. Com o passar dos dias descobri uma voçoroca no meu peito. Uma voçoroca chamada Júlia.
Mandei várias mensagens para ela, mas Júlia não movimentava seu Facebook há meses e isso começou a me deixar preocupado. Resolvi voltar ao Brasil e entender o que eu estava sentindo.
Conquistá-la novamente não foi fácil, mas foi a melhor coisa que fiz na vida. Eu terminei minha graduação e decidi que era hora de formar minha própria família. Assim, no dia 03 de novembro, nós nos casamos e os três anos seguintes foram os melhores da minha vida.
Júlia trabalhava como repórter e eu como redator no jornal local de Itatiaia. Era uma vida simples e perfeita. O dia que cheguei em casa e me deparei com um par de sapatinhos de bebê sobre a mesa de centro da sala foi glorioso.
Nesta noite, fomos ao restaurante mais caro da cidade e Júlia escolheu um prato esquisito do qual eu não me recordo. Na volta, eu dirigia tranquilamente pela avenida principal quando meu celular tocou.
Eu reconheci o número do meu chefe. Fiquei com medo de atender. Era tarde da noite e eu havia acabado de saber que seria pai em breve. Não queria estragar aquele momento, mas como Júlia insistiu, atendi. Ele ficara sabendo, por um amigo influente, que estavam precisando de um corresponde na Cisjordânia e havia me indicado!
Eu me desliguei por um minuto, em choque, dominado pela emoção e depois me dirigindo a Júlia, disse:
-Amor, eu consegui! Vou realizar meu sonho. Me fizeram uma proposta para ser correspondente na Cisjordânia!
(...)
Júlia começou a chorar e aquilo, sinceramente, me irritou.
Wanderlust é uma palavra alemã formada pelo verbo "wandern", que significa andar sem rumo específico, perambular e "Lust", que poderia ser traduzido como "drive"ou "craving" em inglês – ou seja, mais que um desejo, uma ânsia profunda. Era o que eu sentia nesse momento: uma ânsia incontrolável de partir.
-Victor, eu estou grávida! Preciso de você. Nosso filho precisa de você. Você terá de dizer não!
- Céus! Como consegue ser tão egoísta?! É meu sonho, nada mais importa. Você terá que entender.
Nossa discussão foi calorosa e tudo aconteceu muito rápido. Lembro de ter perdido o controle do carro e de, no hospital, receber a notícia de que ela havia perdido a criança.
Aquele foi o fim do nosso casamento, claro. Fui para o oriente médio e achei que poderia refazer minha vida e voltar a ser feliz de novo. Ledo engano, prezados, eu não estava pronto ainda.
Quando minha prima Helena me disse que Júlia havia se casado de novo, foi como se aquela voçoroca tomasse conta do meu peito. Como se não houvesse chão para pisar e eu não tivesse asas para voar. Apenas uma queda infinita no nada que a minha vida havia se tornado.
(...)
Mais uma vez, vocês se perguntam: o que você faz aí? Por que está escondido? Eu respondo: vim pedir perdão. Vim dizer que a amo, que nunca deixei de amar e nunca deixarei. Estou escondido porque estou juntando coragem para dizer o que preciso. Tenho feito isso nas últimas duas semanas e meu tempo está se esgotando. Volto para o oriente médio amanhã bem cedo, então, hoje é meu último prazo.
Vejo um cachorro, acho que um filhote de Golden Retriever, saltar do jardim para a calçada, Júlia o está levando para passear. Está mais linda do que nunca. Seus cabelos estão mais curtos que da última vez que a vi e isso deixa seu rosto com uma aparência ainda mais delicada. Meu coração dispara.
Saio do meio das árvores e o pequeno cão corre em minha direção. Começa a morder a barra da minha calça, mas isso não importa porque nesse momento os olhos de Júlia estão fixos nos meus.
-Oi, garota da árvore.
-Olá, bicho folgado.
Ela atravessa a rua e senta na calçada batendo a mão no chão, me convidando a sentar ao seu lado. Eu sento e o pequeno cão deita em seu colo. Sinto uma inveja sufocante daquele cão.
-Ted esperto! - diz ela acariciando a cabeça do mascote.
Percebo então o quão tarde eu cheguei. Já havia me perdoado há muito tempo, disse ela. Havia encontrado a felicidade ao lado de Maurício e o amava com toda a sua alma.
-Sinto muito, Victor!  - uma lágrima escorre de seu rosto, mas a determinação continua lá.
-Eu sou feliz Victor e sei que você também encontrará um novo caminho.
Ela levanta e me oferece a mão em cumprimento e despedida. Eis aí o terrível adeus!
Pego sua mão e a puxo para junto de mim, abracando-a. Ela não resiste e ficamos ali, abraçados. Seu corpo pequeno está colado no meu e seu perfume inebria meus sentidos.
A sensação é poderosa. Eu quero corrigir todos os erros, então volto no tempo, mas apenas em minha mente, para o dia do baile de formatura. Júlia está com um vestido azul marinho que lhe cai muito bem e eu estou lá. Sou seu par. Eu não a deixei sozinha. Nós estamos dançando “Do you dream of me?”, do Michael W. Smith e tudo deu certo… Eu não fui egoísta e covarde e nós estamos juntos.
Abro meu olhos a tempo de ver Júlia pegar o filhote no colo, sorrir para mim e cerrar a porta.
Um vento frio sopra e parece querer congelar meu coração, mas não me importo. Guardo nele o calor daquele último abraço e ele me aquece enquanto desço a rua das Laranjeiras em busca de um novo caminho. Sim, é isso mesmo: um novo caminho!
Alguns podem dizer: insensível! Outros: você não tem alma. Mas a verdade é que a vida é feita de começos e recomeços; embora  nem tudo saia “nos conformes” ou exatamente do jeito que gostaríamos, isso não quer dizer que deu tudo errado. Foi apenas um ciclo que se encerrou para que outro tenha início. Esse é, afinal, o grande “x” da equação.

A vida é simples, nós a complicamos e aí vem a parte mais interessante de todas: porque tornamos a vida embaraçada e insustentável, Deus dá, a cada dia, novas oportunidades, novos recomeços. Sim, Fantine tinha razão: “há sonhos que não podem acontecer e há tempestades que não podemos prever”, mas existe também um pós tempestade e todo um mundo novo, com mil cores e cheiros a serem descobertos. Então, vejamos o que esse mundo novo reserva para mim.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Uma Colherada - Paulo Cesar Corrêa

15 de junho. Seis meses de namoro.
Era provavelmente uma das datas mais excitantes para Heloísa. Tudo em seu corpo era animação e Túlio, seu namorado, sabia o quanto ela levava a sério essas comemorações: aniversário de quando se conheceram; tantos dias do primeiro beijo; mensário do primeiro “eu te amo”.
Heloísa era do tipo que ficava feliz com simples demonstrações de afeto; uma carta, uma flor e pronto: ela já resplandecia.
Enquanto revistava a caixa de correio, deparou-se com um envelope rosado, clássico e com letra de calígrafo. Estava endereçado a ela.
“Túlio”, ela pensou, com um sorriso na boca, revelando um pequeno diastema nos dentes superiores da frente. Rubem Alves dizia que cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel. Era por isso que ela amava receber cartas. Emails, em sua opinião, eram muito superficiais e nada íntimo e especial era compartilhado.
Abriu o envelope. Um cheiro de rosas foi emanado do papel e, por um instante, ela apreciou a fragrância. Túlio havia se superado. Depois de apreciar o perfume, leu a carta.
Eis o seu conteúdo.

“Srta. Quemelli,
Neste dia tão importante (O tetra do São Paulo na Libertadores? Melhor. Tudo em 80% de desconto na loja da Lacoste? Muito melhor. O nascimento do primeiro hermafrodita? Quase...quase lá)... Ei, calma, pequena. É uma piada! Hoje faz seis meses que estamos juntos e sei o quanto você ama comemorações.
Está pronta? Pega a moto na garagem e sai. Vai começar a busca ao tesouro.
Espero você.
Túlio.
P.S: A primeira pista é: the praça of us. Izquierda. Ten árboles.
Vai!”

Heloísa fechou a carta, ainda sorrindo e rindo por dentro por causa do senso de humor de Túlio.
“The praça of us”, ela pensou. Certamente uma mistura bem mal feita entre português e inglês. A tradução, ao pé da letra, seria “a praça do nós”. Após pensar mais um pouco, Heloísa chegou à conclusão de que o lugar seria a Praça dos Namorados, perto da Praia do Canto. Um dos lugares que ela mais amava ir aos fins de semana.
E as outras partes? Bem... Obviamente a parte em espanhol significava “esquerda” e o restante tinha algo a ver com a décima árvore.
− Pai, − gritou da porta da sala – vou sair um pouco.
− Aonde?
Heloísa se sentia um pouco desconfortável em dizer ao pai que iria a uma busca ao tesouro proposta pelo namorado – um jovem com quem seu progenitor não se dava muito bem.
− Vou à casa da Larissa. Ficamos de estudar juntas para a prova de física de amanhã. – Mentiu, o coração começando a disparar.
− A que horas volta? Mais alguém estará?
Que inquisição era aquela?!
− Volto para jantar. Giovana e Maria disseram que também iriam. – A mentira estava ficando maior.
− Ok. Qualquer coisa, me ligue.

(...)

Heloísa saiu tão rápido que nem ouviu o pai a aconselhando a levar um cachecol por causa do frio do inverno que se aproximava. Ligou a moto, sentindo o motor fazer barulho e arrancou. Amava sentir o vento indo contra o seu corpo.
Na altura da Avenida Saturnino, chegou aos 70 km/h e um leve sentimento de culpa a tomou por estar andando tão rápido dentro da cidade. Mas a curiosidade era enorme e Heloísa não conseguia se conter.
Ao chegar ao seu destino, estacionou a moto e, descendo dela, correu para o lado esquerdo da praça, contando as árvores.
1, 2, 3, 4, 5...
“O que será que Túlio está aprontando?”, ela se pergunta.
...6, 7, 8, 9, 10
Um amontoado de folhas estava na raiz da décima árvore. Heloísa espalhou as folhas e um pequeno pacote foi revelado. O abriu: dentro havia um cachecol de caxemira azul e outro envelope.

Com certeza você não está usando um. Nunca te vi usar. Agora que o teu belo pescoço não sentirá mais frio, continue sua busca. Vá até o Cafuné com Pimenta – sim, esse mesmo que você está pensando. Se disser o teu nome, uma moça te atenderá e uma bela peça usará.

Heloísa subiu na moto e sorriu divertidamente, adorando este jogo romântico. Envolveu o pescoço com o cachecol. Um belo presente, pensou, e certamente não foi barato.
Ligou a moto e foi a toda velocidade ao Cafuné com Pimenta. São quase dois quilômetros de distância e Heloísa chegou em cinco minutos.
Na porta da loja, Heloísa parou. O que faria num sexy shop? Suas roupas íntimas eram todas compradas por sua mãe e tinha certeza de que os outros utensílios da loja não a interessariam.
Ao entrar na loja, uma vendedora a perguntou se necessitava de ajuda.
− Sim, sou Heloísa Quemelli.
− Ah, perfeito – disse a vendedora. – Estava me perguntando se você realmente viria. – E com um sorriso simpático, ela continuou. – Nesta caixa há cinco modelos de lingerie. Escolha uma e se vista.
O primeiro era inteiro, roxo, com desenhos transparente e ombros sutis. O segundo era de duas peças, rosa claro, com desenhos transparentes ligeiramente mais claros. Havia mais outros dois, porém Heloísa não os reparou. Chegou ao último: preto, duas peças, com a parte de baixo sendo um fio dental – mal coberto na frente; nada coberto atrás.
Heloísa estava perdida no meio daquelas roupas íntimas e a vendedora, como se lesse a mente dela, disse:
− Acho que você não faz o tipo dessa última lingerie. Aconselho a escolher a segunda. – E, dando-a nas mãos de Heloísa, indicou-lhe o trocador.
Enquanto se trocava, Heloísa pensou no que diria a sua mãe quando ela visse tais peças no meio da roupa suja. Poderia dizer que foi Larissa e as outras meninas fazendo uma brincadeira.
A vendedora tinha razão. Aquela peça lhe havia ficado magnífica e ela imaginava o que suas amigas falariam quando lhes contasse sobre toda essa loucura. Algumas até teriam inveja.
Após se vestir e entregar as roupas íntimas velhas à vendedora, um novo envelope lhe foi dado. Até onde aquilo iria? Ela não tinha ideia, mas estava se divertindo muito.

Próximo lugar, Adriana DelMaestro. Acho que você vai gostar.

Na joalheria, ela recebeu um belo par de brincos turquesa e mais um envelope. Em Splendore Atelier uma senhora lhe aguardava com o vestido de gala mais bonito que Heloísa já havia visto na vida. Também havia um envelope e nele estava escrito para que voltasse ao lugar onde tudo começou. Um táxi a esperava do lado de fora da loja e a levaria até a praça. O que fazer com a moto? "Tranque-a e deixe a noite acontecer", dizia o envelope.

(...)

Ao entrar no carro, Heloísa era uma nova mulher. Desde a roupa interior até o que se via por fora. Se algum conhecido a visse naquele instante, jamais a reconheceria.
O rádio tocava Tenerife Sea, de Ed Sheeran, o que parecia perfeito para aquele final de tarde/início de noite. O sol começava a baixar e, segundo os termômetros das ruas, a temperatura estava amena, não passando dos 20 C°.
Heloísa fechou os olhos, recordando tudo o que havia feito naquele dia. Era uma aventura e, no momento em que reabriu os olhos, o taxista aumentou o volume do rádio.

“You look so wonderful in your dress
I love your hair like that”

Tudo parecia certo. A forma como as esparsas luzes do sol caíam sobre a terra. A forma como o céu e o mar se abraçavam no horizonte. Os transeuntes passeando pelas ruas nem imaginavam o quão importante aquele dia era para ela e o quão maravilhoso estava sendo.

“The way it falls on the side of your neck
Down your shoulders and back”

O carro virou na Avenida Saturnino e logo chegaram à Praça dos Namorados. Ela reconheceu o Golf preto de Túlio e começou a correr. Túlio estava ali, apoiado na árvore. Heloísa, ainda correndo, abriu os braços e se lançou sobre ele, beijando-o apaixonadamente. Túlio tirou de detrás de si uma orquídea e a pôs nos cabelos da namorada, sorrindo para ela.
− Admito que tive medo de que você não entendesse nada das pistas, se perdesse no caminho e eu ficasse aqui esperando a noite toda.
Heloísa lhe deu um leve tapa, como se estivesse ofendida com tal pensamento do namorado.
− Feliz mensário. Espero que tenha aproveitado o jogo – ele comentou.
Ela disse que sim e quando ele a chamou para ir tomar sorvete na Fioretto, tudo o que pôde fazer foi beijá-lo. Heloísa quase brigou com a atendente para ter uma banana split dupla com cereja e cobertura de chocolate e menta ao mesmo tempo. Túlio pagou um adicional para satisfazê-la e tudo se resolveu.
No carro, ainda discutindo sobre o sorvete, a atendente e os fascínios pitorescos do dia, Heloísa mal percebeu que estavam indo em direção à casa de Túlio. Ele abriu a porta, percebendo que os pais não estavam. Caminharam até o quarto dele, Heloísa entorpecida pela beleza do momento. Túlio ligou o som. Kenny G soprava, em seu saxofone, a melodia de “You’re Beautiful”.
A janela foi aberta e um pouco de lua entrou no quarto e uma leve brisa balançou os cabelos de Heloísa. Túlio a beijou na testa e começaram a dançar. Da dança para um grande beijo não demorou muito.
Túlio a levou para sua cama box, tirando o belo vestido de gala de sua namorada. Ao ver a roupa interior que ela usava, disse:
− Esperava que escolhesse a preta com fio dental – falou, rindo-se.
Heloísa o beijou. Naquela noite todas as músicas mais românticas compostas foram tocadas. Ou assim pareceu para eles. Túlio era doce e terno, mas insistia em ter algo mais. Porém seus esforços foram em vão. Teve somente o prazer de vê-la em sua roupa íntima e nada mais. Um pouco mais tarde, a levou para casa e ao chegarem lá, ele a beijou, escondendo sua decepção. Depois, dirigindo loucamente pelas ruas e avenidas de Vitória, Túlio se lembrou de uma música velha de um italiano que falava sobre uma garota igual a uma torta de baunilha decorada. Uma garota feliz de não ser comida.
“Igualzinho a ela”, ele pensou. “E eu dei só uma colherada”.
Naquela noite, Túlio recordou o quanto gastou para aquele dia ser um fiasco.
Em contrapartida, Heloísa ligava para suas amigas a fim de contar-lhes o maravilhoso dia que teve.