domingo, 8 de março de 2015

Tampa com manteiga.

“Eu odeio ter que ir a padaria de manhã”.

Odeio, mais que tudo que odeio. Para mim, o mundo regrediu. A minha avó contava que nos seus tempos o padeiro levava os pães e o leite a porta de cada cliente, todos os dias, a mesma quantidade. Também confessou que se alguém viesse lhe visitar e pernoitasse, era preciso lembrar de deixar um bilhete no dia anterior, para que a quantidade viesse maior no dia seguinte, do contrário, faltaria.

Tenho tanta preguiça de ir a padaria que desde que me mudei para cá, ando a comprar pães de forma. Além da indisposição, gosto do pão do dia, um paradoxo que já apresentei a solução.

Desde que me mudei para cá, o maldito ás vezes me deixa com as “tampas”. Me refiro a primeira e a última fatia do pão de forma. Eu não como as tampas, e nem ele.

Espero que ele desconfie antes que minha paciência se esgote. Tentei algumas estratégias, exceto esconder a comida. Não! Isso seria demais para mim, me sentiria tão mesquinho quanto ele. Já pensei em consumir menos, tentando achar um padrão de sua mediocridade em roubar-me os pães, em vão, já que sua gula é inversamente proporcional a minha tolerância. Por vezes, acordei mais cedo, afim de diminuir minha indisposição e pegar-lhe cometendo o “crime”, mas sua astúcia era tanta que a primeira vez que o fiz não se arriscou e permaneceu em jejum, assim, passou a comer tudo a noite.

Era um jogo interminável, um xadrez sem xeque-mate. Eu então tentei a última das opções que me ocorreu: pensei em acordar e ir a padaria pela manhã. E assim o fiz, acordei e ofereci que lhe buscasse algo também, ele rejeitou obviamente, disse que não tomava café da manhã. Busquei o pão e tomei o meu café, a questão é que seus estudos eram a noite e ele sempre ia se deitar depois de mim, e o pão que havia comprado naquela manhã já não existia na manhã seguinte, exceto as tampas.

Haviam dois quartos no apartamento, e mesmo com um quarto a disposição, ele decidiu-se instalar no mesmo que havia escolhido. Escolhi acreditar que isso era devido ao espaço maior.

Ainda não havíamos comprados sequer os moveis mais básicos, inclusive uma cama. De todas as minhas preocupações a última seria uma TV. Não tenho o hábito de assistir, principalmente depois que a internet havia proporcionado tanta coisa, não fazia sentido em não escolher o que consumir, mesmo com todas as opções de uma assinatura, mas para ele era uma necessidade tão fundamental quanto ter uma privada no banheiro.

Tenho de dizer que esse fato me deixou um tanto malicioso. Todas as minhas necessidades eram tão básicas e jamais poderiam ser negligenciadas, tais como uma geladeira, uma mesa e um fogão, nem sequer uma cama era preciso, somente um colchão, já a TV... bom, a TV era tão superficial quanto um jarro de flores artificiais decorativo e sei que fiz muito bem em decidir que era algo para o futuro, mesmo que esse futuro nunca se realizasse. Ele mesmo assim insistiu, mas fiz o sentir que era uma necessidade individual (o que de fato era), no entanto um erro meu, pois ele comprou-a sozinho e tínhamos uma saída pronta para ser usada, do antigo morador, com canais a cabo mesmo que ele só assistisse um, com seu reality preferido.

Com um quarto grande e outro a disposição, ainda procurávamos outro morador e logo encontramos e ele se mudou para o outro quarto. As noites eram preenchidas com conversas até a madrugada, jogadas fora por três pseudo intelectuais teólogos filosóficos. Eu sempre era o primeiro a abandoná-los e ir deitar-me, o que ainda me deixava com as tampas pela manhã. E todas as noites durantes as primeiras duas semanas assim se seguiram. Ele assistia seu reality, junto as bolachas e o refrigerante que havíamos comprado, depois desligava a TV e começávamos a conversa. Ás vezes o assunto era o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados da federação: o mais rico, a melhor infraestrutura, os maiores aeroportos, as maior malha rodoviária, as melhores festas, a maior diversidade cultural... eu inocente, ainda guiado pela mídia dos anos 90 era um torcedor palmeirense, diante a dois corintianos paulistas.

Em outras noites a conversa puxava para religião. Eu, um batizado pela igreja católica mas agnóstico, ele um praticante de alguma igreja protestante distinguida por alguma forma geométrica, e o outro um indeciso que pendia pela dúvida. Numa dessas conversas ele enrolou sua toalha e fez uma linha que dividia a sala de estar ao meio. Me explicou que se ele seguisse o catolicismo, que não restringia e nem alertava seus crentes aos males da vida, negligenciando a vida libidinosa, ele estava se afastando daquela linha rumo ao inferno, que era retradado pela porta da sala, a extrema esquerda da minha visão da sala. Já se ele participasse dos cultos na igreja, e seguisse os conselhos do pastor e de sua fé, ele rumaria junto a Deus e ao céu, que era retratado pela janela, na extrema direita do cômodo. Foi então que o outro paulista o perguntou aonde ele estava e ele se postou ao parapeito da janela.

Para por fim as “tampas” numa conversa com o paulista recém chegado, que já a essa altura havia sobrado com elas também, decidimos criar uma caderneta onde tudo que se consumia era anotado. Se eu comprasse um pão que fosse e alguém consumisse mesmo que uma fatia, era dado a contribuição fosse dividida entre dois ou mesmo entre os três, proporcionalmente aos “clientes”. Quando propomos a medida a ele, seus olhos não poderiam tê-lo entregado tanto. De certo esperaria uma briga, uma discussão que fosse, mas aquilo era cruel a sua atitude e lhe restou aceitar, não antes de um breve questionamento se aquilo era necessário.

Creio que já me odiava em tão poucas semanas. Antes de me mudar, tomei algumas breves lições de culinária, o que me trouxe a habilidade de fazer um macarrão bastante ruim. Com o tempo, todas as minhas atitudes, quaisquer que fossem eram questionadas. Aos sábados, saíamos as compras pois todos estavam em casa. O meu macarrão eram um dos dois pratos que tínhamos conhecimento, além de frituras.

- Gosto de azeitonas, o que acham? – eu disse.

- Pegue essa, que está sem caroço, daí não temos o trabalho de tirar.

“Qual o maldito trabalho de tirar o caroço de uma azeitona e pagar quase o dobro por essa facilidade? “-pensei. Nesse mesmo dia, enquanto ele fritava steaks, disse que devia aprender a me virar. Talvez seja a hora de revelar o segundo prato que sabíamos fazer: era arroz, e não era ele quem detinha o conhecimento.

Em algumas semanas, o assunto era exclusivamente religião e o quanto São Paulo era melhor que todos os outros estados. A sua alienação era tanta que chegava a interferir nas suas escolhas amorosas. Mas tenho de dizer que isso o tocava mais que a mim, e parecia enclausurado na sua própria crença. Me senti o próprio diabo perseguindo Cristo no deserto. Era inconcebível a ideia de ter de escolher alguém dentro da própria igreja para ser feliz e continuar no bom caminho, pois essa pessoa certamente era melhor que qualquer outra que não fizesse parte daquilo. Como doentio isso soava! Não podia alguém em sã consciência dar ouvidos a isso!

Eu o testei, o questionei e diferente do que tentou, não o impus uma ideia, até pela carência delas. Ele me ouvia, tenho certeza, mas odiava-me a proporcionalmente. Sentiu-se fraco, talvez questionasse agora e tratou de arrumar uma igreja que pudesse ir. Passou a tarde a procura, e o que encontrou foi uma figura geométrica próxima a que frequentava, talvez como um triângulo de ângulo reto está próximo a um retângulo.

E nos sábados seguintes ele foi, punha a bíblia debaixo do braço e assim que colocava a mão na maçaneta me convidava:

- Vamos no culto Guilherme?

- Quem sabe na próxima! – eu o respondia.

Isso durou tanto que já nos dávamos melhor. A única discussão séria foi quando me contou do surgimento do próprio Lúcifer. Um traidor, que invejara o reino do próprio Criador.

- Mas se Deus criou o arcanjo que o traiu, então Deus criou o Diabo? – perguntei.

- Isso é blasfêmia! Tome cuidado com isso, você está blasfemando contra Deus!

Um silêncio tomou conta da sala enquanto seu dedo apontava em minha direção. Foi a única vez que o fiz perder a cabeça, que nos encontramos pela manhã receosos da conversa da noite anterior.

Nas semanas seguintes parecia que nossa convivência estava atada a um fio que sustentava o enorme peso de nossa autoafirmação. Creio eu que pessoas como nós nunca poderíamos conviver num mesmo ambiente, somos como animais que brigam pela supremacia de seu território, vamos lapidando um ao outro em busca da real natureza humana tal como uma pedra preciosa, e pouco a pouco retiramos os resíduos que nos reveste de bom senso e cordialidade.


Numa terça feira disse que precisava conversar. Estávamos os três sentados a sala quando disse que havia decidido se mudar. De fato estava a se isolar cada vez mais, e me pareceu ter tomado uma decisão acertada. Na manhã seguintes levou algumas panelas que havia trago, tapetes e sua TV.