quarta-feira, 16 de abril de 2014

Dove - Caio Machado

Mauricinho caminhava pelo bairro após regressar da padaria e se deparou com um gatinho marrom claro miando sem parar. Largou a sacola de pão de queijo próxima ao meio fio e correu em direção ao bichano. O animalzinho não recuou e a carência fez com que ele logo se entregasse ao garoto. O filhotinho havia sido abandonado no bairro por um pai de família que mal conseguia tolerar a gata de sua filha, quando soube que ela daria a luz tratou logo de se livrar de suas crias. Por sorte, o até então amável garotinho Maurício, cruzou a vida do pobre felídeo. De tanto acaricia-lo o gato logo começou a ronronar e aquele tremor seguido de um ruído estranho, provocou risadas no garotinho. Sem pensar, ele largou os pães no caminho e saltitou até sua casa com o bichano.

César havia acabado de se divorciar. Havia ganhado a guarda de Mauricinho por unanimidade. Sua ex-namorada era completamente louca. Larissa foi pega duas vezes com lança-perfume em uma mesma balada. Tudo estaria bem se ela apenas estivesse consumindo, mas da primeira vez ela foi pega vendendo. Da segunda vez, ela estava quase ingerindo aquele líquido fornecido por um amigo farmacêutico. César entra na história por ter sido seu namorado no período em que cursavam Engenharia Aeronáutica. Mauricinho surge como resultado de tal conturbada relação. A mãe nunca trabalhou e os pais a abandonaram de vez após a gravidez. O resultado foi que ela não aceitou a dureza de ter que se sustentar e acabou se entregando a uma vida noturna regada de drogas e de tudo mais o que lhe era proposto.

O garoto já havia sofrido traumas demais para que César lhe proibisse de manter o gatinho em casa. A única admoestação que o garoto levou foi por ter deixado a sacola com os pães pelo caminho. César refez o trajeto, mas encontrou apenas um mendigo sujo dando cabo dos pães de queijo. Aquilo não o comoveu, mas pelo menos o fez lembrar que os sabonetes do banheiro estavam acabando. Voltou no mercadinho do qual seu filho havia retornado, comprou mais pães de queijo e uns quatro sabonetes Dove. Ao voltar para casa, observou Mauricinho enquanto ele alimentava o bichano com leite em um prato azul transparente. César reparou que na testa do gato havia uma pelagem escura com um desenho bem semelhante à pombinha da Dove. Perguntou se Mauricinho concordava em nomear o bichinho de Dove. Mauricinho estava tão feliz que sequer percebeu que acabará de batizar um gato com um termo que traduzido do inglês, significaria pomba.

Os dias passavam e Mauricinho se apegava cada vez mais ao gatinho Dove, e vice e versa. O animalzinho já respondia pelo nome e se mostrava extremamente esperto ao se tratar de respostas sonoras. Quando ouvia um latido, de longe já se postava numa posição de guarda e nenhum cão sequer se aproximava dele. O lado selvagem do felino falava sempre mais alto e certa vez, retrucou com arranhões as brincadeiras de mau gosto que Mauricinho fazia com ele. O garotinho de seis anos começava a enjoar de Dove. Quando ganhou um piano elétrico de seu pai sua desilusão pelo gato só cresceu. Por sorte o gato já se acostumara à vida doméstica e a ser alimentado em horários corretos diariamente. No fim das contas, Dove sempre dormia em cima das teclas do piano recém-tocado. O calorzinho que a energia elétrica deixava no instrumento, eletrizava sua pelagem.

César era fanático por futebol. Em período de fim de campeonato sempre abastecia a casa com fogos de artifício. Sempre advertiu que Mauricinho não brincasse com isso, mas sempre o deixava acender um pavio ou outro. Os primeiros estouros deixavam Dove bastante assustado. Do quinto foguete adiante, ele já não sentia mais medo, apesar de que sua sensibilidade auditiva já começava a se tornar bastante abalada. Mauricinho percebeu o comportamento estranho do bichano e por sabe se lá qual motivo, decidiu amarrar o rabo do gato em um dos foguetes. O gato não reagiu por acreditar que se tratava de um afago comum. O estrondo do foguete fez com que Dove se arremessasse contra uma das paredes do quintal e que tragicamente perdesse sua audição.

A situação era bastante infeliz. Um gato não é praticamente nada sem seus radares naturais. César ficou contrariadíssimo com a atitude negativa de seu filho. Entendia que aquilo se tratava de uma parvoíce infantil, porém sua ira fez com que ele comparasse a inconsequência de Mauricinho com o comportamento arredio de sua mãe. O garotinho passou dias sem proferir uma palavra sequer e quando Dove voltou do veterinário quase o sufocava de tanto o abraçar. A situação fez com que sua sensibilidade para as coisas simples da vida, aumentasse. A surdez do gato fez com ele passasse a valorizar sua audição. Dedicando-se aos estudos do piano conheceu a história de Ludwig Van Beethoven e sobre como, também de forma trágica, o alemão havia perdido sua audição.

Logo nos primeiros dias após o acidente Mauricinho percebeu que Dove conseguia responder ao chamado de seu nome. Não entendia bem como, acreditava que a vibração do ar pudesse ser o catalisador disso, mas ao dizer outras coisas o animal não respondia por igual. Os espasmos da criaturinha fora a pior sequela do incidente. Num certa quarta-feira, dia ao qual estava habituado a receber aulas particulares de piano, percebeu que o gato se dirigia ao seu professor sempre que ele mencionava o nome de Beethoven. Dove também se postava estranhamente sobre o corpo do piano quando ele tocava qualquer peça do compositor e de certa forma, aquilo deixava o felino em um estranho transe. Naquela noite, Mauricinho estava pensativo e repetia Beethoven diversas vezes em sua cama, quando de repente Dove saltou sobre sua cabeça. Mauricinho cuspiu alguns pelos e percebeu que o gato adormeceu ao seu lado.

No dia seguinte, logo ao acordar procurou por Dove e começou a repetir novamente o nome de Beethoven. O gato respondia roçando por suas pernas e saltando em seu colo. Não entendia mais o que acontecia e foi contar o curioso fato para seu pai. César proferiu Bee-tho-ven paulatinamente e separando suas silabas. Percebeu que Dove só respondia ao seu chamado nas últimas duas sílabas. Num súbito de raciocínio certificou-se também que o animal não lhe dava atenção se não estivesse olhando diretamente para seus lábios. Mauricinho e César chegaram juntos a conclusão de que Dove fazia leitura labial de tudo que estavam dizendo. A semelhança sonora entre Dove e Beethoven, e a maneira de como seus lábios moviam os fez acreditar que se renomeassem o gato para Beethoven, não seria de toda forma ruim. Ambos perderam a audição em um trágico e acidente e ambos possuíam bastante sensibilidade auditiva. Como numa sinfonia, pai e filho chamaram o gatinho simultaneamente de Beethoven. O gato confuso, não sabia a quem atender primeiro. Deu as costas, saltou em cima do piano elétrico e repousou nas teclas, bem ao lado da partitura de Sonata ao Luar.

Patos de Minas, 16 de abril de 2014.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Choque - Caio Machado

Tomava banho avidamente e vangloriava-se da última noitada que teve com Sofia. Segurava seu membro veemente e com a mão esquerda girou a torneira para desligar o chuveiro. Uma corrente elétrica atravessou seu corpo. O chuveiro não era aterrado e ele já não se lembrava. Sentiu um fio elétrico cortar sua barriga e percorrer toda sua região peniana. Soltou o pênis de súbito e quase escorregou no chão do banheiro.

Recuperou-se do susto e desligou o fluxo da água segurando a torneira com sua toalha. Enxugou-se desacertadamente e se vestiu com o corpo ainda úmido. Foi urinar e o membro flácido retorceu-se fazendo com que ele molhasse toda sua calça jeans. Já não sentia mais o pênis entre as pernas. Tateou-se desesperadamente e não conseguiu sentir nada além da pele que seus dedos tocavam. Trocou de calças e correu até a junta de saúde do quarteirão de baixo.

O urologista disse que a sensibilidade foi perdida pela descarga elétrica e que por sorte o canal urinário não havia sido deteriorado. O tratamento de reversão lhe custaria cerca de cinquenta mil reais, e apenas um de dois pacientes havia sobrevivido ao procedimento, considerado altamente arriscado. Ele não conseguiria pagar. Recomendou-lhe que tivesse paciência com a situação e até indicou um grupo de apoio da igreja protestante.

Recorreu à pornografia pesada por várias horas a fio. Assistiu aos vídeos caseiros feitos com suas colegas de trabalho em festas da firma. Tentou pornô gay, necrofilia, scat, tortura, zoofilia. Nada feito. Na farmácia cantou a atendente e nem isso o estimulou. Ingeriu uma cartela inteira de Viagra. Lembrou-se de sua primeira vez com sua prima caçula na fazenda. Nada funcionou.

Acendia um cigarro e o esmagava contra o cinzeiro. Não sentia mais vontade de fumar. Estava ciente de ter destruído a sua única razão de existir. Sentia-se um eunuco deprimido. Imaginava seu pênis sendo guilhotinado por um cortador de charutos enferrujado a todo o instante. Tentava dormir, mas não pregava os olhos. Enfiava a mão dentro do zíper e sentia novamente sua mão tateando aquele membro lânguido e gelado.

Ligou pra Sofia e aos prantos criou coragem para contar. Ela gargalhou bastante e entendeu aquilo como uma nova fantasia dele. Aos soluços ele só conseguia dizer para que ela viesse até sua casa. Ingeriu todo o resto da garrafa de conhaque e afundou-se no sofá. Aguardou de luzes apagadas e parecia para ele que cada segundo estava perdurando por vários anos.

Viu o corpo despido de Sofia e percebeu que uma enorme excitação preenchia todo seu corpo. Suava frio, pois a única parte essencialmente necessária estava intacta e estática. Apertou seus dedos contra as nádegas de Sofia e a puxou para perto de si. Nada aconteceu. Sofia abaixou-se pelo seu corpo e colocou o membro dele em sua boca. Insistiu muito até salivar e levantou-se da cama vestindo-se constrangidamente. Ele estava arruinado.

Ainda nu, enfiou o pênis dentro do aquário de seu peixinho betta. Esperava de verdade que fosse atacado e mordido. A criaturazinha azulada reduziu-se a esconder no fundo rochoso e falso do vidro cheio d’água fétida. Esmurrou o aquário espatifando-o e assistiu com desdém o pobre animalzinho se debater até morrer no imenso carpete da sala.

Acendeu o isqueiro embaixo de seu saco e viu as gotas de sangue pingar e sentiu o forte cheiro de pele queimada. O odor não lhe parecia tão ruim. Não havia mais nada a fazer, ele já não sentia absolutamente nada ao redor de sua virilha. Pensou em fazer um empréstimo. Pensou em se matar.

Atirou-se do terceiro andar do prédio de seus pais. Quebrou três costelas e não morreu. Regozijando-se conseguiu colocar a mão dentro de sua calça. Sentia novamente o sangue quente fluindo e percorrendo o interior de seu pênis. O choque em sua costela havia reanimado seu falo desfalecido. Desmaiou de dor e não se sabe ao certo se ele acordou.

Frutal, 04/05/2013