quarta-feira, 30 de março de 2011

Rita Promíscua - Henrique Donancio

Eu não consigo diferir o que é verdade, do que não é. Minhas alucinações prendem-me a duas dimensões distintas. Eu não sei quando estou acordado, nem quando estou dormindo, e não sei agora.Tudo parece ser real, mas recuso me a aceitar, prefiro crer que estou sonhando, como tantas outras vezes.
Fiz coisas do mesmo feitio, e despertei com um lindo raio de sol tocando meu rosto com seu brilho ardente, encharcado pelo suor da minha elucides, com o coração bombeando fortemente sangue pelas minhas artérias, o podia sentir, se mais um pouco, o apoiar com as mãos, acolchoando suavemente entre duas palmas calejadas de trabalho.Devo estar sonhando, devo, será questão de tempo para que minha consciência torne ao que se chama de mundo físico.
Minha garganta seca, minhas mãos tremem, estou sujo, o suor, não o mesmo de uma alucinação, mais viscoso, o de trabalho, começa a aderir ao tecido de minha camisa que já contém um odor típico de um dia inteiro debaixo o sol. Não me pertuba, mas Rita se incomodava com o cheiro, tratava de por me debaixo o chuveiro, ou debaixo do brilho da lua. Ás vezes, cansado e em dias frios, repudiava ter que ficar debaixo daquele bico d’água gelada que chamam de chuveiro. Então não me importava de ficar na rede olhando a lua até adormecer, Rita não me dava amor mais, e seu cheiro também não me agradava. Ela fedia perfume bom, e dizia que era presente da mãe. Veja se a velha moribunda e morta de fome daria um negócio granfino daqueles pra filha biscate! Quem presenteava era o talarico dono da farmácia, que bem por cá dava as caras quando me punha ao trabalho. Filho da mãe! Mal sabe gastar o dinheiro que ganhas. Logo com Rita, que cintura já não se via, as tetas caídas pendiam como saco vazio, e sua buceta mucha e gorda não dava caldo. Filho da mãe! Por quase não o pego também.- Só você pagou por isso Rita burra! – Converso com o defunto ensangüentado sobre a cama.
Deixá-la-ei bem aqui, para quando o seu amante vir lhe meter o pegue com a mesma faca, e a contorça dentro do seu cangote, não antes de lhe dar a chance de se defender e morrer como homem.
- Rita! Rita! Rita! Grito, porque amo a vagabunda esquartejada sobre a cama.
- Não era pra ser assim meu amor, não era, eu juro por tudo que é mais sagrado que te amo, não foi sua culpa, sei que não tinhas a intenção de me trair, sei que não!

- Pare de berrar homem e se arrete que já é dia! A voz de Rita estrala dentro da minha cabeça. Aconteceu de novo, era só coisa da minha imaginação, a velha Rita ainda está aí gorda como sempre. Visto-me e coloco-me a mesa para o café. Ela tagarela seus problemas.Enfim parto para a labuta, o sol arde, corre do meu chapéu uma gota de suor que cai e ofusca minhas vistas. Ouço um carro vindo em alta velocidade cortando-me, chega a frente e abre uma de suas portas, dou uma coçada no olho e os ponho em direção ao automóvel, um tipo barbudo saca uma arma e aponta para mim, dispara três e adentra novamente no automóvel, partindo com pressa. Estirado sob o sol vou perdendo os sentidos, ouço movimentos vindos de minha casa, Rita não vem ao meu socorro, outro carro, só que agora lentamente vem em minha direção, apenas sinto suas rodas tocarem o asfalto, para e sombrea meu corpo com sua estrutura, o filho da mãe tira os óculos, deve ter vindo conferir o serviço, farmacêutico filho da mãe! Ele se afasta, com velocidade agora, os raios de sol voltam a me tocar, são os últimos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Dixie - Caio Machado

O pardal pousou no muro cheio de musgo e se pos a descansar de seu longo vôo, poderia ter escolhido a fiação elétrica, mas preferiu aquele monte de tijolos preenchidos por toda aquela coloração opaca esverdeada. Do outro lado da rua a faminta gatinha Dixie a fitava e de maneira minuciosa iniciou a travessia da rua para o iminente ataque ao pássaro que garantiria seu lanche da tarde. A felina só não contava que um Volkswagen Fox beirando os 65 km/h a atropelaria lhe devolvendo ao mundo dos mortos transformando-a num ser inexistente e desprovido de vida, preservando assim a vida do pardal que nem sequer imaginou que a alguns segundos atrás se encontrava ameaçado. A roda dianteira partiu seu dorso que em instantes inundou sua pelagem branca de sangue. Dixie ainda teve forças para rastejar por uns segundos emitindo um fraco miado. O dono do veículo não se deixou ao luxo de parar e seguiu seu caminho apressadamente, provavelmente teria um compromisso mais importante do que a vida de animais alheios.
Apenas a duas quadras dali, Gustavo voltava de trabalho deslizando vagarosamente sobre o asfalto em sua Specialized Hard Rock, a velha bicicleta que pertencera a seu pai em importantes competições ciclísticas e que agora não lhe servia mais do que meio de transporte. Na esquina da rua de sua casa quase se chocou com o mesmo assassino de Dixie, que ainda se exibia acelerado e desconexo, mas Gustavo agiu com indiferença e seguiu seu caminho, estava habituado ao desrespeitoso transito da cidade. Ao se aproximar viu o corpo da gata estirado junto ao meio-fio em cima de uma enorme poça de sangue já bastante coagulada. Seus olhos encheram d’água instantaneamente ao reconhecer seu mascote e ele rapidamente entrou em sua casa evitando de olhá-la para avisar sua mãe que ao saber da novidade disparou uma torrente de lágrimas incessantes. Rafael, seu irmão mais velho e também o mais desligado e descompromissado da família foi o último, a saber, do triste ocorrido, mas não também o último a sofrer com a perda. Ele se lembrou do zelo e das freqüentes brincadeiras que tinha com Dixie, sem também esquecer de como ele conheceu sua atual namorada quando foi comprar latas de atum para Dixie no armazém do bairro onde a garota trabalhava. Dixie sem querer o fez encontrar o possível amor de sua juventude e quem sabe posteriormente sua futura esposa com quem teria filhos que brincariam com os filinhos de Dixie. As tragédias nem sempre acontecem desacompanhadas.
Por não disporem de um local de grandes proporções de terra em sua casa, decidiram por enterrar Dixie em um terreno baldio próximo a praça do bairro. O local já fora usado pelos irmãos quando ainda eram crianças para brincarem em suas intermináveis competições de bicicleta, aliás essa era a grande paixão da família. Gustavo sempre se mostrava o mais alienado, mas dessa vez se deu todo o trabalho de cavar o leito e de enterrá-la, a sensação de perda causava um grande nó em seu estomago e consequentemente o tornava mais apegado e responsável. Rafael e sua mãe colocaram junto da sepultura uma lata de atum Gomes da Costa e sua almofada amarela de veludo onde ela estava habituada a descansar. Não dá pra se prender um animal orgulhoso como um gato em sua casa, mas aquela família de uma maneira inexplicável exercia uma enorme influência sobre a finada gatinha. Abraçados e aos prantos, mãe e filho observaram enquanto Gustavo cobria o resto do leito com aquele monte avermelhado de terra.
Após o enterro um grande problema ainda restava para ser resolvido: uma semana antes do homicídio, se assim podermos o tratar por dizer respeito a apenas um pobre animal, Dixie deu a luz a seis filhotes e naquele momento eles ainda se encontravam bastante mirrados e famintos, necessitando assim de serem amamentados antes que viessem a falecer e seguirem o desolador destino da mãe. A cidade em que a família vivia era bastante interiorana e pouco desenvolvida, não dispunham sequer de bons médicos, imaginem só se eles fossem recorrer a algum veterinário, aqueles animaizinhos estariam perdidos se não tomassem uma devia providencia. No primeiro dia Rafael foi até o armazém onde sua querida Helen ainda trabalhava e comprou alguns litros de leites pasteurizados na tentativa de saciar a sede dos inofensivos filhotes que responderam bebendo pouco ou quase nada da bebida, inclusive alguns até relutaram em sequer provar da mesma. Ao segundo dia seu irmão menor sugeriu que tentassem com leite integral, já que haviam recusado o outro no dia anterior. Nada feito. A aversão ao UHT foi ainda maior que ao pasteurizado e um dos filhotes ainda veio a falecer por estar muito enfraquecido, deixando a mãe dos rapazes ainda mais deprimida e desolada.
Já meio sem esperanças em resolver o problema Gustavo avistou pela rua sua vizinha Lara, que assim como eles também possuía uma tara por animais. Ela possuía uma graciosa cadela feia que em sua infância lhe rendera milhares de apelidos e que agora a poucos dias coincidente também havia acabado de dar a luz a alguns cãezinhos. Numa idéia desvairada Gustavo contou-lhe sobre o falecimento de sua gatinha e propôs que experimentassem tentar que a sua cadela amamentasse os cincos filhotinhos felídeos restantes. Lara de início riu da situação comparando os animais com Cruzeirenses e Atleticanos e até mesmo com vampiros e sua aversão a luz solar, afirmando que isso nunca daria certo, mas logo notou que o garoto falava cada vez mais sério, mas não conseguia impor isso de uma maneira loquaz. Rafael que também estava de passagem pela rua observou que os dois travavam um principio de discussão no jardim e adentrou na residência de Lara. Ao se integrar da história conseguiu de uma forma devidamente manipuladora e eloqüente deixar Lara com um peso na consciência e afirmou também que a previsível morte dos filhotes se daria por culpa dela e sequencialmente a perturbariam por muito tempo. Lara naturalmente cedeu e assim se decidiu por tentarem a estranha amamentação.
E por mais bizarra que a idéia soasse, mais efetivo e inversamente proporcional os filhotes de Dixie se adaptaram ao leite da cadela feia que após os quatro primeiro dias já nem se lembrava que aqueles cincos exemplares não se tratavam de seus filhotes naturais e sim da finada gatinha Dixie que por muitas vezes a perseguiu pelo bairro. A grande incógnita agora se daria na maneira de como eles iriam desapegar os mesmos filhotes da gata de sua “nova mãe”, que agora sentia por eles o mesmo ou ainda maior afeto materno, mas que necessitavam devolve-los a verdadeira família. Mas nada a deixaria separa-la de seus novos filhotes, já se passariam trinta dias e os miados agora já se confundiam entre os latidos dos demais cãezinhos que nem de longe se aproximavam do visual repugnante de sua mãe e se apresentavam muito adoráveis com suas pelagens bastante castanhas e brilhantes. Lara assim como a família de Rafael compreendeu que seria impossível uma tentativa de separação naquele momento e conscientizou-se por pagar a metade das despesas alimentares daquela exótica família recém formada que agora crescia de maneira desenfreada em seu quintal. Pormenor Rafael conseguiu retirar o filhote que mais se assemelhava a Dixie e o batizou-o com o mesmo nome da mãe homenageando-a e presenteando sua mãe com a gatinha. Os quatro gatos ainda vivem com a cadela feia que por sinal expandiu seu paladar adicionando atum ao seu cardápio e também aos dos seus demais filhotes. Biológicos ou não.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Liberdade Incógnita - Maele Finger

Louise era o tipo de garota que escrevia em diários. Tinha seus diários de folhas coloridas com adesivos brilhosos e a cada dia da semana preenchia linhas de acontecimentos com uma caneta de gel de cor diferente. Seu pai adquirira o hábito de bisbilhotar nos diários da filha, e por isso há três anos ela começara a registrar tudo em código.
Em vários aspectos era como qualquer outra criança. Desenhava com a assimetria característica da idade o contorno da mãozinha, com linhas tortas e curvinhas discrepantes, tudo feito com lápis de grafite bem claro, meio apagado, e geralmente com borrões de tanto apagá-las e tornar a fazê-las. Em outros desenhos, perninhas grudadas no pescoço que alongavam-se até a extremidade inferior da folha. Um quarto de sol das três sempre despontando no vértice superior direito, num contexto em que o chão não existe, as flores e tudo mais ficam flutuando baixo.
Tinha a intuição apurada. Mostrava-se delicada e generosa o tempo todo. Seus gestos de gentileza encantavam a todos com quem estabelecia o mínimo contato, até mesmo através de um olhar despretensioso podia-se sentir a pureza e sinceridade da menina. Além do que, seu sexto sentido era algo perceptível, que lhe permitia exercer, sobre praticamente qualquer pessoa, um domínio quase hipnótico.
Era de uma cultura e educação tal que chegava a causar inveja nos pais das suas colegas de aula. Em encontros, jantares e outros eventos sociais, não raro era mencionada quando o assunto se tratava de casamento, era a candidata predileta à futura nora pelos pais dos colegas meninos que pertenciam ao mesmo círculo social, ou seja, as famílias da alta sociedade.
Seu maior pecado era pintar bigodes e dentes de preto nas capas de business magazines estampadas pelas faces dos pais com seus sócios. Louise tinha o costume de colecionar coisas, orgulhava-se disso e fazia questão de mostrar e esmiuçar em histórias infindáveis as particularidades de todos os itens de cada coleção a qualquer um que se mostrasse interessado em conhecê-las. No entanto, mantinha em segredo sua coleção predileta: um conjunto composto de cento e noventa e sete batons em tons avermelhados, peças de todos os lugares do mundo por onde já havia viajado com os pais.
Sempre dava um jeito de comprá-los escondidos e guardar sem levantar suspeitas dos pais, conhecia-os muito bem e sabia no que ia resultar se soubessem da existência dessa coleção. Seria uma ofensa para seu pai e despertaria a paranóia de sua mãe, que por fim mobilizaria no mínimo uns três especialistas em behaviorismo a fim de entender a origem desse comportamento. Supostamente uma afronta, um hábito que seria considerado repulsivo e vulgar.
No fundo no fundo, Louise sabia que as paranóias de sua mãe tinham lá algum fundamento, e que por trás da materialidade inânime de um batom vermelho qualquer existia mesmo algo mais, que até então mantinha-se subentendido. Seus pais nunca tomaram conhecimento da coleção. Mais tarde perceberam, nunca tomaram conhecimento de nada, inclusive da própria filha que pensavam ter. Sentia medo e insegurança, não gostava que as pessoas encostassem-se a ela, pelo receio que tinha de que pudessem ler ou sentir seus pensamentos, algo que a preocupava e envergonhava.
Louise cresceu, tornou-se uma moça tão encantadora e fascinante quanto era quando menina, mas agora, antes mesmo que pudessem contemplar a graça de sua personalidade, eram traídos pelos olhos. O tempo cobrou-lhe de volta a infantilidade, e como troco lhe pagou com os anos um bocado de sensualidade. Os olhares voltavam-se para seu corpo, e nele colavam-se ardendo em desejo. Em curvas que pareciam imantadas, magnetizavam-se os olhos alheios. Seu andar meigo e pueril dava lugar a passos vagarosos, substituindo o instante fisiológico de união das pálpebras dos admiradores, que por instantes, sem se darem conta as tinham paralisadas. Louise era mulher. Exalava feminilidade e delicadeza ao mesmo tempo em que transbordava em inconsciente provocação. Ela se tornou substantivo materializado, Louise era a tentação. Pura, nua e crua, tentação à flor da pele.
A superfície do corpo quente, aquecida por horas em outros corpos, entrava em contraste com as luzes frias azuis, quando na varanda da casa despedia-se do último cliente. Num robe de cetim vermelho, braços cruzados de modo a descansar as palmas das mãos sobre a cintura, apoiava-se na moldura da porta. No sereno sentia o cheiro de madrugada, exatamente no estreito daquela porta o odor de relento entrava em choque com o aroma de canela e jasmim, vindo de dentro. Louise sorria discreta, sozinha, com o cantinho da boca. Tirava do bolso do robe um batom vermelho, deslizava macio nos lábios e tornava a cruzar os braços. Ficou ali por mais três minutos... ainda conseguia ficar acordada por mais alguns, tempo suficiente para registrar, não mais em códigos, o que quisesse em seu diário.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Pacto com o Diabo - Henrique Donancio

Há homens que tem a fé como norte de suas vidas. Guiam-se pelas palavras interpretadas de livros sagrados, doam-se inteiramente aquilo que nunca viram, mas pressentem sentir. O pescador Américo, o Sr. Américo, era um desses homens. Dedicava seus domingos a família, e claro, a religião. Fazia todos que morava debaixo do seu teto seguir os mesmos hábitos, rezavam, pediam ao bom Deus proteção, agradecia a saúde, a comida no prato, o dinheiro no fim do mês para pagar as contas, e tudo que mais dele parecia provir. Quando a pesca lhe rendia algum a mais, doava uma boa fatia do excedente para a caridade. Américo era um homem generoso.
Quando sua filha mais nova Maria Lúcia de cinco anos adoeceu, Américo parecia padecer junto a ela. A menina, a mais nova de sete filhos, já era a que tinha lhe tinha mais apreço. Levava-a na boleia do barco para a pesca todas as manhas, pois a garota tinha mais necessidade de estar junto ao pai, do que dormir o sono da jovialidade, essencial para seu crescimento. A tosse incessante que lhe acometia além de a cada dia expelir um pouco mais da sua vivacidade punha fora também a vontade de viver de seu velho. O médico que raramente visitava a vila dos pescadores já fora categórico: “Não tem oração que a salve desta”.
No lado norte da cidade corria o boato que Zeferina, uma velha corcunda, enrugada, queimada de sol, praticava milagres. Habitava uma casa que caía aos pedaços, que dava de frente para um lado lúgubre do mar. Se a procurasse a noite e desconhecesse aquela região, dificilmente encontraria seu barraco, que era iluminado a velas. Américo sempre soube de sua fama, e por isso a evitava, diziam que os poderes eram devidos a parte com o diabo.
Alguns meses se passaram e cada vez mais a pequena Maria chegava próxima ao fim. Toda a reza e fé depositadas na melhora da garota não surtiam efeito algum. Foi quando Sebastiana pediu que o marido deixasse ver a velha do lado norte, talvez sua fé fosse grande demais e que nada pudesse contra, argumentava que o pacto com o cão pudesse ser só conversa daquele povo.
Depois da última visita do médico Américo atendeu aos apelos da mulher, e foi ter com Zeferina. Foi à noite, em lua cheia, conhecia bem aquela parte da cidade, fora criado ali, e a velha do barraco de madeira, bem, era sua tia Zeferina.
- Então enfim procurastes sua velha tia meu rapaz.
- Deixe de conversa sua moribunda, sabes bem por que vim.
A velha riu, num sorriso de escárnio, levantou os olhos, fixou-os bem no rosto do sobrinho e respondeu-lhe. – Certamente seu bastardo, certamente.
- Então ande logo que não estou para conversas.
- Não se afoite meu jovem, não se afoite, quero que me preste um favor antes.
- Seja lá o que for, ande, desembuche.
- Quero que tenhas o mesmo fim que sua velha tia aqui. Deslaçando o pano estampado que a cobria, pôs as vistas do sobrinho um par de seios murchos e enrugados, caídos, pendendo como um saco escrotal.
- Velha desgraçada! Vamos faça-o e rápido, não quero dar tempo ao arrependimento.
Zeferina, irmã de Consolação quase fora casada uma vez com o pai de Américo. Porém véspera do casamento se viu abandonada pelo noivo que a trocou pela irmã mais nova. Fugiram para o oeste algum tempo, mas logo tornaram quando estava grávida do primeiro filho. Zeferina se entregou a beatitude, desde que fizera um pacto com seu novo amante, o diabo, que lhe prometeu tirar a vida da irmã em troca de se guardar do gozo dos prazeres até o fim da sua existência no plano espiritual que se encontrava, e assim o fez. Consolação faleceu uma semana depois, pois escorregou bateu a cabeça numa pedra pontiaguda, quando lavava roupas no riacho que cortava a vila.
Maria Lúcia, sofregamente resistiu por duas semanas, até que por fim se viu curada de vez. O médico mostrou-se impressionado com sua recuperação, coisa jamais vista em toda sua carreira. Pouco tempo depois lá estava ela na boleia do barco de seu pai que agora se mostrava apático a radiação de seu sorriso.
Américo viu mulher e filhos morrer de velhice e outros infortúnios, só lhe restando Maria Lúcia, que agora se perdia nas esquinas das ruas que davam para o cais. Diziam ser a melhor mulher da vida daquela região, já velha e moribunda como sua tia, mas ainda competente no que fazia.
Pouco tempo depois, também morreu, vítima do vírus HIV, só restando o velho Américo com alguns netos e bisnetos, fruto de bons e maus casamentos, e também da profissão de Maria Lúcia. Em Outubro de 1953, o velho faleceu de infarto.
No julgamento final, foi posto junto a uma mesa frente a Deus, alguns anjos, Maria e outros santos. O Diabo assistia de longe numa espécie de camarote celeste, a mais um julgamento de seus filhos bastardos.
Deus então disse. – És acusado, Américo, de se juntar, de dar parte ao Diabo, para gozar de benefícios próprios, de contrariar a lei, a minha lei, de que todos os seres tem um inicio e fim determinado, que cada um tem sua hora de partir, e o senhor, que tão crente se mostrou aos meus legados desrespeitou, desrespeitou a mim!
- O senhor é injusto!
- Injusto! Dei-lhe da maior saúde, do amor de uma mulher fiel, filhos trabalhadores e honestos, e por querer tirar-lhe uma prostituta, uma mulher da vida, me chamas de injusto!
- Sim injusto, não cumpres com tua palavra.
- Cale-se seu ser medíocre! Minhas palavras deixaram-lhe até registrada, e dizes ainda que não a cumpro?! Seguistes ela e recompensei-lhe, então desandastes e terá sua pena por isso, arderá no calor, junto com quem lhe é justo.
- Pois seja assim, mas justo é ele, que dá riqueza aos seus devotos, veja, e olhe, quantos ricos são do seu feitio? Só pobres que ardem no sol para trabalhar que lhe são fieis, e como é que lhes recompensa por isso?! Dando lhes pobrezas, pragas, doenças que não tem cura! E promete-lhes um dia ser recompensados por isso? Já vivi no inferno uma vez meu senhor, duas não será demais.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Vaga-lume - Caio Machado

Todas as luzes do meu apartamento estavam queimadas. Só me restava agora a luz que vinha da lâmpada da geladeira, mas por mim daquele jeito estava perfeito e seria o bastante para iluminar as minhas cervejas. Levando-se em conta também que eu nunca chegaria sóbrio em casa até o escurecer ou que quando isso me ocorre sempre estou em algum bar durante a noite, dispensa-se o uso de lâmpadas. Já me aconteceu de algumas vezes eu tropeçar na mesa de centro da sala, mas com o tempo você se torna um verdadeiro cego adestrado e olha que você nem precisa de um cão guia ou tampouco de muletas. Depois que aposentei por invalidez minha vida se transformou no que Rimbaud chamaria de barco ébrio. Meu gordo salário de militar era liquidado todo em bebidas, futilidades e outras cositas más. Inclusive, eu ainda não repus as lâmpadas porque elas valem menos do que eu poderia gastar em algumas boas garrafas de tequila. Sobre como consegui essa vida? Eu quase precisei amputar minha mão direita, que quase foi esmagada em um treino no exército. Não quero entrar em detalhes, mas meu dedo mindinho perdeu três milímetros e não consigo mais dobrar meu dedo anular, mas eu digo sim, que aposentar por invalidez tem suas vantagens que vem a calhar.

Com o tempo eu passei a deixar de usar desodorante, pasta dental e uma grande quantidade de porcarias que encareciam quase 60% de minhas compras. Até mesmo papel higiênico eu havia descartado, alias, eu tomo banho todos os dias, não seria necessário tamanho desperdício de papel. A natureza agradece. Alias esse papo de ecologista sustentável é uma puta hipocrisia, pro inferno com esses vegetarianos que pensam que estão salvando vacas ao deixarem de comer carne. Os açougues e abatedouros não deixaram de existir por causa deles. Se quiserem ir para o paraíso ou se desejam a salvação de suas almas pecadoras, comecem por ajudar pessoas necessitadas ou mesmo a lavar as louças para a sua mãe. Sobre deixar essas “necessidades básicas de higiene” de lado, eu ainda conseguia cheirar bem, me portando como um verdadeiro gentleman e ainda sim conseguia alguma paquera. Alguns ex-colegas meus do exército realmente invejavam meu estilo de vida e toda essa minha mania de querer experimentar de tudo o que era possível, sobretudo até me julgavam como niilista. No meu ponto de vista isto soaria como um elogio a ociosidade e dessa maneira comecei a ficar alheio a sociedade e conseqüentemente, demasiadamente abandonado.

Quando eu ainda usava pasta dental tinha o ótimo habito de escovar os dentes na pia da cozinha. Assim não gastaria detergente para lavar toda aquela louça. A cada escovada dava pra lavar quase três pratos com a espuma que eu fazia com o enxágüe e às vezes até os copos que eu sujava quando preparava minha Piña Colada, que eu já estava habituado e a nomeei como café da manhã. Infelizmente não uso mais pasta de dente e nem mais detergente, só a Piña Colada e às vezes quando o mau hálito aperta, a escova de dente.

Fervia meu aparelho de barbear todas as vezes que o mesmo se entupia de pelos. Depois de três meses ele perdeu totalmente o fio da lâmina. Foi aí que decidi parar de me barbear. Nos primeiros dois meses minha barba não se mostrava tão repugnante, mas depois de uns dias o rapaz do armazém não permitia que eu entrasse em seu estabelecimento por eu estar apavorando e sumindo com toda a sua clientela hipócrita e conservadora que não queria ver ninguém com aparência de terrorista enquanto compravam seus chocolates, preservativos, engovs e nuggets gordurosos. Como eu não queria (e nem devia) gastar meus solados para ir até o supermercado mais próximo ou qualquer outro lugar continuei rondando pelo armazém e na minha primeira oportunidade mostrei para o caixa minha carteira recheada de dinheiro. Ele entendeu do que se tratava e pediu que eu o esperasse lá fora, nos fundos, próximo aos sacos de lixo. Ao desocupar de clientes se dirigiu até mim e me disse para que eu viesse comprar depois das nove porque o atendimento era mais escasso e quase sempre ninguém aparecia por lá. Eu provavelmente fui seu cliente mais fiel, mesmo que minhas compras só diminuíssem a cada vez que eu voltasse lá. Minha maneira de selecionar as reais necessidades vinha se tornando um dom.

Estoquei todo tipo de comida enlatada no armário inferior da cozinha. O estralo na coluna ao abaixar-me para abri-lo era cada vez mais freqüente e mesmo assim me indicava que eu ainda estava vivo. Comia milho, ervilhas, feijão, sardinha, atum e às vezes até mesmo salsichas do tipo Viena. Comia tudo, bebia aquela água amarga e todo o óleo nas latas de peixe, não poderia haver desperdício. Sempre me cortava com as latas maiores, mas mesmo assim não limpava o sangue e raramente me incomodava em preparar algum curativo. Aprendi a me relacionar melhor com a dor, diria até que estava apaixonado ou mesmo obcecado por ela. Aquele era um excêntrico sentimento e certamente o mais puro e irrefutável que eu poderia experimentar.

Provavelmente eu não passaria daquela noite. Estava com indigestão, minhas feridas no rosto não cicatrizavam mais e eu enfraquecia cada vez mais e mais em minha cama na frustrada tentativa de dormir, pois eu saberia que talvez não fosse mais acordar e caminhava por acelerar o processo. Eu suava frio, mas o ardente calor insistia e me mantinha aquecido. Na tentativa de me resfriar e de equilibrar minha temperatura na esperança de que eu não morresse por um choque térmico me despi. Não funcionou, resolvi abrir uma pequena fresta na janela para que o ar circulasse sobre o quarto. Meu colchão já se encontrava umedecido, mas eu não me desfiz dele. Continuaria por ali mesmo. O esforço para abrir a janela violentou a minha resistência e me informou de que eu estava realmente fraco. Já não dispunha mais da minha força viril que uma vez me qualificou como melhor soldado. Se ao menos meus amigos não tivessem me abandonado, mas a questão não é essa! Eles seguiram com suas vidas, arcaram com suas escolhas, e eu por minha vez só escolhi não escolher. Driblando o que seria minha última crise existencial meu último inquilino adentrou no meu quarto pela janela. Eu era motefóbico e tinha aversão a todos os tipos de insetos (bem, as baratas da casa já me fizeram por acostumado), mas a presença daquele vaga-lume não podia me aturdir o bastante. O inseto pairava pelo teto do quarto como a mais suave sinfonia de Brahms, iluminando toda aquela imundície e mofo acumulado nas paredes devido as infiltrações. Sentia que ele era meu anjo da guarda que viria em morfologia de estrela cadente, com suas pequenas e singelas foto-explosões para me aliviar do fardo de viver. Em cada lapso de luz eu imaginava a sua grandeza derivada de um pequeno corpo de inseto. Me sentia livre como ele, mas mesmo assim conseguia chamar a atenção de tudo e todos ao meu redor. Tudo se direcionava a luz que ele emitia, alguns insetos sabiam existir com mais classe do que os outros. Ele sabia bem o que eu sentia: eu era ele e ele era eu. Na medida em que nos conectávamos espiritualmente o pequeno vaga-lume se dirigiu até mim, num vôo lento e rasante, com a intensidade de seu brilho cada vez maior. O tilintar de suas asas batendo rápidas e minha respiração arfante se confundindo no ar eram os únicos e últimos sons que habitariam a atmosfera de meu quarto. Ele se aproximava sempre mais, até que a última coisa que eu conseguiria ver seria o enorme clarão, a mesma coisa que os bebês vêem ao nascer, só que do acesso. Eu estava livre.