quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um Grande Saxofonista - Caio Machado

Adalberto insistia em dizer que João iria ser saxofonista e fez questão de matriculá-lo nas aulas de teoria musical. Os dois voltavam do conservatório às cinco da tarde e Adalberto sempre colocava o CD Breakfast in América do Supertramp muito alto pra tocar no carro. Ele não ouviu a sineta da linha férrea alertando sobre o trem e avançou a parada obrigatória. A alavanca desceu e caiu em cima do carro esmagando a carroceria da Pampa. No susto ele brecou o carro, que acabou ficando preso pela mesma alavanca. O corpo deles foi velado em caixão fechado e o legista se recusou em fazer a autópsia e necromaquiagem do corpo, pois nunca tinha visto tamanho estrago como esse antes e disse que não havia muito do que se recuperar. Eu tomava vários analgésicos e comprimidos antidepressivos todas as noites. Às vezes chegava até a sete pílulas diárias, porém meu sofrimento não se esgotava. Era horrível presenciar os filhos das mulheres do centro espírita que eu freqüentava fazendo nove anos de idade, viajando em férias para Fernando de Noronha, brigando no colégio ou trocando seus últimos dentes de leite, enquanto eu me contentava com fotografias e lembranças que cada vez mais eram substituídas por meus pesadelos, agora constantes, e paranóias. Era tão grande o vazio que me inundava, o quão enorme poderia ser a dor da perda de esposo e filho em um mesmo acidente atroz.
Gabriel Gomes tinha dez anos, quase o mesmo formato de meu nariz e várias de minhas feições no traço de seu rosto. Era dado como disléxico pelos seus professores, que se contradiziam pelo ótimo desempenho escolar do garoto. Seu esquivo comportamento se justificava pela sua timidez. Era filho da socialite Mara Gomes que por sua vez, também era viúva e pelo que soube não se tratava de uma boa mãe. Coloquei em minha cabeça que ele seria o substituto ideal para o João e mesmo que não fosse faria de tudo para que ele se tornasse, pois eu precisava disso. Resolvi então roubar o Gabriel para mim. E acabei planejando tudo: Iríamos morar em Niterói, onde eu herdei uma antiga casa de praia de Adalberto e assim também eu forjaria os documentos de uma suposta adoção. Passou por minha cabeça até assassinar Mara, mas ela dispunha de muitos parentes que ainda sim poderiam alegar a adoção de Gabriel. Incrível o que o desespero em grandes doses pode te proporcionar. Conheci o Adalberto em Niterói e na época ele finalizava o curso de Artes Cênicas. Eu o ajudei tanto com seus ensaios que acabei me tornando sua esposa e também uma dramaturga nata. Não teria dificuldades em encenar assim para o Gabriel.
Suas aulas de judô aconteciam sempre nas segundas e quartas das quatro e meia às seis da tarde, e devido a constantes conturbações no trabalho, Mara sempre se atrasava ao busca-lo nas segunda-feiras. Seria essa a minha deixa para o rapto. Na segunda-feira seguinte me passei por encarregada de Mara para busca-lo na academia judoca, e aquela pobre e ingênua alminha mal se questionou se devia ou não ir embora com a até então estranha. Entrou no meu carro. A partir daquele momento eu estava decidida, de que o educaria para que tivesse o devido zelo por si mesmo e a maldade necessária para quebrar a ingenuidade que sua mãe ocupadíssima jamais oferecia a ele. Com minhas malas no carro partiríamos dali mesmo para Niterói. Apresentei-me a ele e disse que sua mãe atrasaria muito no trabalho naquela tarde. Altamente aéreo, Gabriel levou uma hora e meia para perceber que eu não estava o levando para casa.
- Ei moça, para onde estamos indo?
- Não dá mais pra esconder isso. Sua mãe não te disse, mas ela não poderá mais te ver. O juiz sentenciou sua guarda para mim. Desde que seu pai se foi, sua mãe tem se mostrado um tanto quanto ausente... Assim essa foi a melhor solução para que você não se chocasse tanto e...
Uma lágrima escorreu de seu olho direito, e antes que terminasse ele me interrompeu.
- Sinto saudades do Papai, queria que ele voltasse.
Ao dizer isso ele manteve um choro baixo, virou-se para a janela do carro e assim ficou até o fim da viagem. Era evidente que o garoto não demonstrava afeto suficiente por sua mãe. O que eu estava fazendo? Meu estomago se embrulhou trazendo junto para mim uma enorme sensação de arrependimento, quase me confundindo com suas lágrimas. Mas agora eu não poderia mais voltar. Toquei num ponto correto e errado simultaneamente e mesmo com o coração despedaçado após o ocorrido, eu não poderia mais voltar.
(...)
Nas primeiras semanas tudo ocorreu muito bem. Meu velho amigo de Niterói, Paulo Campos, o mesmo que fornecia identidades e atestados médicos falsos na época do colégio e durante toda a universidade, logo descolou a papelada necessária para a “adoção”. Era coisa de primeira, profissional mesmo. Paulo havia se tornado PhD no assunto e falsificava documentos até mesmo para os políticos corruptos locais. Julho acabava e logo seria necessário alguns papeis para que eu o matriculasse na escola, papeis que Paulo já estava providenciando. Gabriel se adaptava e amava tudo que eu proporcionava a ele, com uma fantástica velocidade. Nem chegou a perguntar se algum dia visitaria sua mãe e notavelmente também não possuía amigos em seu antigo colégio, se tinha nunca chegou a mencionar nada a respeito. Aquela seria nossa segunda chance como família: eu não o deixando escapar novamente, sendo super protetora e atenciosa, e ele com a então sonhada presença e segurança que perdera com a morte do pai e que sua mãe jamais conseguira suprir.
Mas o que eu temia finalmente ocorreu: Campanhas de busca pelo desaparecimento de Gabriel começaram a aparecer por toda a parte em Niterói, e a partir de agora qualquer exposição dele colocaria tudo a perder. A primeira vez que eu presenciei algo do tipo foi com um pequeno anúncio no selo do bujão de gás. Nele continha a foto de Gabriel e de mais duas crianças acompanhadas de datas e informações sobre seus respectivos desaparecimentos. Sentia-me como uma pistoleira fugindo de caçadores de recompensas no velho oeste. A diferença é que eu era o bandido, e o Clint Eastwood que eu tanto admirava dessa vez almejava a minha cabeça, ou a de Gabriel, não fazia diferença. Arranquei o selo dali, mas o mesmo sentimento que me ocorreu no carro, no dia de nossa fuga, se intensificou quatro vezes mais em meu coração apertado. Imaginei todas as minhas dores sentidas após a perda de João no acidente e agreguei às de Mara. Agora, somadas ao peso de sua falha como mãe, que na tentativa de trabalhar muito para manter um futuro brilhante para seu filho, se esqueceu dos principais valores maternos e acabou caindo na frustação de sua ausência. Bastou que eu me colocasse em seu lugar para que ali mesmo na cozinha eu incinerasse os documentos falsos, usando da mesma chama do gás que serviria de publicidade para que Gabriel fosse encontrado.
Na manhã seguinte disse a Gabriel que iríamos visitar a sua mãe. Ele se mostrou indiferente e balançou os ombros. Partimos antes do meio dia e sequer conversamos durante a viagem, me parecia que ele não sentia o menor interesse em vê-la. Ao nos aproximarmos de sua casa pedi para que abrisse o porta-luvas do carro e pegasse um CD de John Coltrane que Adalberto sempre ouvia. Disse que ficasse com ele, que se quisesse poderia ser um grande saxofonista algum dia, e em seguida, sem querer o chamei de João. Ele me olhou curioso, mas logo se fez de desentendido. O beijei na testa e dei o melhor e mais confortante abraço que jamais pude dar em João enquanto ele esteve vivo. Do carro, presenciei Gabriel caminhando pelo extenso jardim até chegar ao interfone, e logo sua mãe o recepcionando emocionada aos prantos. Ela estava um lixo, com as madeixas louras e descabeladas, e apresentava olheiras enormes e profundas. Vestia um roupão branco com bolas pretas, semelhantes a pelagem de vaca, e estava muito amarrotado. Nos pés calçava um par de pantufas pretas. Se seus cabelos fossem pretos ela seria facilmente comparada com uma vaca ou mesmo um urso panda. Seria aquele o segundo grande abraço que Gabriel receberia na mesma manhã. Mara sussurrava, desesperada e repetidamente engasgada pelas suas lágrimas, que não o perderia novamente. Gabriel ainda não entendia o que estava acontecendo e se virou para onde meu carro estava estacionado. Provavelmente queria que eu descesse e o ajudasse com sua mãe chorona. Mara cessou o choro e fitou-me como se entendesse meu papel de seqüestradora ou alguma coisa que o valha por ali. Rapidamente dei partida no carro e desapareci virando na esplanada. Na manhã seguinte eu figurarei nos jornais e possivelmente serei foragida e considerada uma baita psicopata pela sociedade. Mas antes disso, passarei no orfanato de Niterói e começarei da forma certa.
Revisão: Maele Finger